Prelúdio: decidi postar este texto de Horta devido a singular e emergente vida de milhões de brasileiros que, como heróis e heroínas, resistiram as humilhações e opressões de uma sociedade excrescente e de uma política de Estado sem Ética.
Fernando Horta
Quando
cheguei em Brasília para fazer mestrado na UnB, vim de "mala e cuia",
como se diz na minha terra. Vim com filhos e minha
avó, que na época ainda era viva e necessitava de cuidados 24 horas,
pois tinha esquizofrenia e tinha tido as pernas e as mãos inutilizadas
por ação de filhos ganaciosos. O tempo que eu tinha dava banho e a
levava até ao banheiro. Mas, precisávamos de uma pessoa
para nos ajudar.
Foi
quando encontramos a Wal. Wal tinha já mais de 40 anos e estava
desempregada. Era do nordeste e morava em Brasília há mais
de 25 anos. Tinha dois filhos que estavam em escola pública e por quem,
depois aprendi, Wal dava literalmente o sangue. Wal era meu braço
direito, tornou-se amiga e parte daquele esforço de sobrevivência. Wal
tinha perdido o emprego fazia quatro meses. A outra
"patroa" a havia proibido de comer enquanto fazia o serviço. Wal me
contou que ela estava quase desmaiando por pressão baixa e comeu uma
banana, pelo quê foi ofendida e repreendida como "muleca". Wal não
aguentou e respondeu. Foi demitida.
Quando
contratei Wal, gastei alguns meses convencendo-a a assinar sua
carteira. Com mais de 30 anos de trabalho (25 anos só em
Brasília) tinha uma carteira de trabalho em branco. Tentou me convencer a
pagar para ela o valor do inss e outros encargos. Disse-me que o
"Pastor" tinha dito que assim era melhor. Wal ia usar parte disto para
pagar a Igreja. Não vou entrar na discussão do
mal que causam estas igrejas e como roubam das pessoas mais pobres. Meu
problema era a Wal. Ameacei de demissão, caso ela não aceitasse a
carteira assinada. Fiquei dois dias em pânico dela não aceitar e eu
perder uma pessoa honesta, capaz e tão correta. No
final Wal aceitou.
Eram
tempos finais de Lula e o país ia bem. Podíamos pagar e o salário dela
era reajustado. Wal sonhava que seus meninos iriam
para a faculdade. Conversávamos diariamente. Eles tinham futuro. O
Brasil tinha futuro. Eu tinha presente. Wal tinha trabalho. O governo
tinha planos e carteiras assinadas recolhendo impostos.
Em 2014, Wal começou a faltar ao trabalho alegando dor de cabeça e desmaios. Insisti para que fosse ao médico. Foi e não acharam
nada. Continuou faltando ao trabalho, com desmaios até na parada de ônibus.
Levaram de emergência a um hospital, fizeram tomografia (que em seis meses nenhum médico havia pedido) e constataram o pior. Wal
tinha um tumor do tamanho de uma laranja na cabeça. Precisa operar, precisava parar de trabalhar para lutar pela sobrevivência.
Graças
aos governos do PT e a um gaúcho de esquerda que foi para Brasília, Wal
pode receber auxílio saúde. Depois evoluiu para
aposentadoria por incapacidade. Não fosse por Lula, aquela nordestina
que trabalhava desde os 10 anos para gente rica e branca teria ficado
morrendo à míngua.
Vejam a importância das políticas sociais de um governo.
Veio o golpe. Veio Temer.
Com
a redução nos investimentos em saúde, Wal não pode ter na velocidade e
no número a quimioterapia e a radioterapia que precisava.
Os tumores voltaram e outras operações foram feitas. Pior, com as
"auditorias" de Temer, Wal foi classificada como "possível fraude" ao
sistema de seguridade pois tinha 40 e poucos anos, contribuído apenas 3
ou 4 e estava aposentada. Temer cortou a aposentadoria
de Wal por quase seis meses até "perícia extraordinaria". Wal passou
necessidade. Não tinha dinheiro, nem conhecimento para advogados
desfazerem aquele absurdo. Os absurdos de um governo neoliberal contra
os pobres, para "diminuir números", ficam sempre impunes.
Wal me pediu ajuda para fazer rancho, eu já estava apertado. Os tempos
do golpe e da crise de Temer já se faziam sentir. Ajudei como pude. Me
contaram depois que aquela guerreira nordestina, forte e orgulhosa que
eu conheci, passou a pedir ajuda aos vizinhos
para poder comer. Uma perícia teve a cara de pau de dizer que Wal estava
"parcialmente apta" ao trabalho, não podendo fazer força. Falei com Wal
ao telefone e depois pessoalmente. Ela chorava por não conseguir se
expressar. As operações lhe haviam deixado sequelas
e apesar de usar um lindo turbante para esconder a falta de cabelos, a
gente via como um governo canalha e desonesto havia quebrado a vontade
de Wal. Os tumores voltavam, ajudados pelo pequeno número de sessões de
quimio e rádio. Wal precisava fazer outra operação.
Não havia agenda. Os médicos se multiplicavam para dar conta da
precarização de Temer. Atrasaram a operação em alguns meses. O tumores
eram agressivos. Quando Wal foi restituída para receber a aposentadoria,
após duas outras perícias atestarem a sua incapacidade,
os atrasados não foram pagos. Wal precisava entrar na justiça. Assim age
um governo neoliberal. Coloca barreira na frente de barreira para fazer
com que o cidadão pobre não receba o seu direito.
No
final do "exercício", algum tecnocrata canalha vai usar o direito não
pago de Wal e de milhões de outros como propaganda de
"boa gestão", de "redução de custos". Algum senador desonesto e
cafajeste vai usar Wal como número para mostrar como "mamam no Estado".
Finalmente,
Wal vai operar novamente. Me disseram que os médicos deram poucas
chances de sobrevivência. Se sobreviver vai ficar
com sérias sequelas. Para mim, a imagem de Wal que quero reter é a Wal
do governo Lula, que na sexta feira fazia piada comigo dizendo que ia ao
forró "viver a vida". Dizia que gaúcho não sabia o que era de bom um
"forró" e emendava um "oxente" de orgulho e
com uma força que só mulheres negras, solteiras e mães sabem o tamanho.
Não
falei propositadamente dos maiores amores de Wal. Três filhos. Um mais
velho de quase 25, um de 18 e um de 16. Enquanto ela
ajudava a cuidar dos meus filhos - com um amor de impressionar - me
contava tudo sobre os dela. Ralhava com eles no celular. Cobrava as
aulas, as lições. Dei aula no colégio que eles estudavam. Wal me
perguntava sobre os professores, sobre o "ambiente". "Minha
mãe era empregada doméstica, eu trabalho com limpeza e faxina, mas estes
meninos vão estudar e ser gente", dizia ela. Mal sabia
Wal que eu a achava "gente", mesmo que ela se colocasse fora deste grupo. Era o Brasil do PT. O Brasil que quebrava as correntes
da pobreza e a prisão do imobilismo social. Eu sabia tudo "daqueles meninos". Wal lutava como uma leoa por eles.
Com
Temer, o mais velho está há dois anos sem emprego, os mais novos
largaram o colégio e hoje estão nos pequenos crimes e nas
drogas. Quando a aposentadoria de Wal foi cortada, eles foram empurrados
ainda mais para os braços do crime. Sem dinheiro ou comida em casa,
eles tiveram que "se virar". "Se virar" como todo negro jovem, morador
de periferia e com pouco estudo no Brasil se
vira. Um dia (e eu rezo para que não) algum policial ou "homem de bem"
vai dar-lhes um tiro e se vangloriar por ter "matado bandido". Eles já
viraram estatística para o governo Temer. Tal qual Wal virou.
Estatística para aprovar intervenção, para fazer ppp
para construir presídio e para colocar a classe média contra os pobres.
Wal, muito provavelmente, não vai ver o destino dos seus filhos, mas eu
li em seus olhos, na última vez que a abracei, que ela sabia que tinha
perdido a luta. Eu vi como um governo neoliberal
acabara com aquela nordestina que tanto me ajudou e por quem eu tanto
tenho apreço. Eu vi como um "gestor" mata. Duas gerações. Eu vi como as
panelas trouxeram "o Brasil de volta". E eu não perdoo estes canalhas.
A
história de Wal é a prova de como um governo dá esperança e condições
de vida (lula e dilma) e como tira e destrói as pessoas
(Temer). A Wal que marcou a minha vida e a de meus filhos é a Wal pela
qual eu luto. Era o símbolo de um país orgulhoso e com futuro, que as
panelas e as camisas da seleção transformaram em "vagabunda e
aproveitadora".
Não vão conseguir devolver Wal. Não vão conseguir devolver o futuro dos filhos dela. Não vão conseguir tirar a minha dor de ter
visto esta história de perto.
Fora Temer é pouco. Por mim, Temer e todos os seus apoiadores morreriam como estão deixando Wal morrer.
Fora Temer é pouco. É preciso Lula presidente.
E eu prometi que iria conhecer um forró com Wal. Eu vou Wal, eu vou. Depois que arrumarmos esta merda toda, eu vou. E você vai
estar comigo. Você já é parte de mim. Parte da minha luta.
Muito obrigado, por tudo. "Óxente"!