Translate

segunda-feira, 2 de janeiro de 2017

A morte do simbólico e a instauração da Melancolia (...) ou a criação de Deus





“Se hoje a peste vos olha, é porque chegou o momento de refletir. Os justos não podem receá-la, mas os maus têm razão para tremer. Na imensa granja do universo, o flagelo implacável baterá o trigo humano até que a palha se separe do grão. Haverá mais palha que grão, mais chamados que eleitos, e esta desgraça não foi desejada por Deus. Por longo tempo este mundo construiu com o mal, longo tempo repousou na misericórdia divina. Bastava arrepender-se, tudo era permitido. E para se arrependerem todos se sentiam fortes. Chegado o momento, o arrependimento viria por certo. Até lá, o mais fácil era deixar correr, a misericórdia divina faria o resto. Pois bem! Isto não podia durar. Deus, que durante tanto tempo baixou sobre os homens desta cidade o Seu rosto de piedade, cansado de esperar, desiludido na Sua eterna esperança, acaba de afastar o olhar. Privados da luz de Deus, eis-nos por muito tempo nas trevas da peste”.[1]
(A Peste, Albert Camus)

Lourenço Leite

A semiótica do discurso do Pe. Paneloux em A Peste de Camus não fosse sua representação da escatologia cristã/burguesa na época da ocupação nazista em França, seria um discurso de revelação da absurdidade da peste da existência. Outrossim, o credo na privação da luz de Deus que enseja a epidemia bubônica da ausência do Absoluto nas esferas da cidade de Oran é a mais pura resignação anti-sisifiana em que o Cosmo faz propagar a bactéria sem antídoto pela transmissão dos ratos aos seres homens.
O homem moderno contemporâneo está infectado pela peste negra. O continente latino americano começa a padecer da peste da ignorância ao pôr de lado a força de sua ancestralidade. O Brasil se esvai nas mãos da negação do sagrado embutido no simbólico e a Bahia vê, de perto, a emigração de suas divindades pelas portas da Bahia de Todos os Santos.
O simbólico agoniza pelo consumo exacerbado de modas, de fast food, de MMA, de corrida de fórmula 1, de lutas de boxe, de futebol midiático, de músicas de sofrência[2], de publicidade enganosa dos governos federal, estaduais e municipais, das religiões ditas evangélicas, da podridão dos bastidores da cidade do Vaticano, da guerra ao terror promovida pelas grandes potências bélicas, da hipocrisia do estado islâmico, e, ao jazer, tenta se revelar pelas migalhas caídas da mesa do banquete servido aos deuses satânicos.  O anticristo se fortalece a cada momento e bebe do cálice da ignorância e do mundo virtual o néctar do conhecimento às avessas. Eis que seu triunfo se profetiza ao abater de todo e qualquer resquício do campo do simbólico. A razão inebriadora da vontade humana galga os degraus da fama e da finitude do real.
A deontologia[3] assume o lugar da Ética; a literatura best seller esconde a verdadeira ficção; a Estética da Existência é substituída pela fotografia aquarelada da aparência; a moral suplanta a Ética em detrimento do Outro [haja vista o julgamento de Mersault na obra O Estrangeiro de Camus]; a Política é encoberta pela ideologização partidária; as religiões comprazem-se pela moral de atitudes sem Ética; os movimentos LGBT fortalecem a convivência em guetos e propagam a epifania da nova sexualidade e da nova família baseada nos estereótipos cristãos burgueses; a doação de órgãos humanos adquire proporções monumentais de indústria do sequestro e da morte; a prostituição infantil insere os pais como intermediários do crime; a poluição sonora atinge os píncaros do insuportável levando ao cometimento de homicídios; a poluição do meio ambiente: terra, água e ar atingem níveis estratosféricos; os banqueiros auferem lucros exorbitantes com o consentimento do Banco Central; os juros de empréstimos e de cartões de crédito podem atingir 600% a.a.; a escassez de alimentos em países de miserabilidade crescente faz a população sobreviver apenas de doações humanitárias e dos cuidados das Ong´s internacionais, dos voluntários e das congregações religiosas à luz de Madre Tereza de Calcutá.
A Pacha Mama[4] esconde em seu útero a força do vulcão, a energia das águas e a renovação da vida fruto da morte. É preciso que o planeta morra. É preciso que o homem seja esquartejado como fora Dioniso pelos Titãs efetuando o diásparagmós[5] que conduzirá a reunificação da existência. O problema que se instaurou com a modernidade é que não há lugar mais para a morte; não pode haver vida sem morte; não pode haver pecado (leia-se todo e qualquer ato praticado contra o Todo) sem redenção; nem sentimento de culpa sem perdão.
O simbólico no leito de expiação aguarda que se restabeleçam as matas, o Caruru de São Cosme e São Damião, as trezenas de Santo Antônio, a fogueira de São João, as oferendas à Obaluaiyê, os presentes para Iemanjá, o ofertório da missa criola e do vaqueiro, as procissões sobre os leitos dos rios para evocar os espíritos das chuvas, as comemorações de aniversários e de casamentos, das festas populares profanas. Daí advirão os deuses e os ancestrais fortalecerão seus filhos e filhas, seus netos e bisnetos para que retornem ao seio de suas tradições e efetuem a grande síntese em que a sabedoria, oriunda do mito, dê sinais de sua presença.
A destituição do simbólico conduz o homem a uma esfera de negligência do sagrado e o insere no reino da melancolia sem a presença do absoluto. O melancólico, por excelência, sente o sagrado na experiência de sua ausência. O homem contemporâneo assassina o sagrado em prol de sua individualidade. Não há mais lugar para o sentimento de perda, logo, não há luto. A melancolia é invadida pela depressão, pela tristeza e pela acedia.
Restauram-se dos escombros os edifícios da nostalgia mascarados pela onda do pugilato do combate com a diferença. Resta criar um deus que seja o Deus do amparo, da misericórdia e da redenção. Todavia, que Ele não me peça de me jogar no rio para salvar alguém que se lançou no mar da solidão e do suicídio. A água continua fria, felizmente, parafraseando Camus em sua obra A Queda.
Almejo um Deus que sofra no meu lugar; que dê sua vida por mim; que se jogue do cais no rio da existência para salvar o outro; que não me peça compreensão diante das falhas humanas; que me deixe livre de agir no anonimato de minha existência sem culpa; que assuma em meu lugar os remorsos da indiferença; que não me cobre a dívida da traição; que me deixe ir aos infernos sem temeridade e retornar com Eurídice como tentara Orfeu sem êxito; que me permita sonhar com o que não tenho direito de obter; que o cotidiano de minha existência seja pleno de repetições sem nenhuma novidade que me desconcerte; um Deus que não veja a minha destruição do sagrado; que abençoe as dádivas recebidas dos fiéis ingênuos e cumpridores da moral sem Ética, que não julgue os pedófilos dentro e fora das igrejas. Que os seminaristas e os pastores que usaram de trampolim as instituições religiosas para a obtenção do status quo não sejam condenados nem perseguidos. Que os vereadores e prefeitos das cidades do Brasil não sejam punidos por desviarem as verbas da merenda escolar. Que Deus se faça homem sem desespero e sem angústia da existência humana. Que os advogados e juízes continuem a aceitar subornos em prol da família e da propriedade.
O simbólico, desse modo, não mais conduzirá a Música para a transcendência nem o conhecimento para a libertação. Lendo Camus às avessas em O Mito de Sísifo, a grandeza de Deus não será mais a sua inconsequência, nem sua prova a sua inumanidade. Deus deve e tem que ser puramente humano, haja vista que sua presença ostensiva e onipresente já fora substituída pelas redes sociais.
“Senhor cidadão, eu quero saber com quantos quilos de medo se faz uma tradição” um dos refrãos da música de Tom Zé reproduzindo um dos lamentos do sertanejo, através da música que denuncia a crueldade instalada no seio da cultura popular em que o simbólico, mesmo agonizando, apela para a sua continuidade.
Estarei salvo de Deus.
Ilha de Itaparica, outubro de 2016.


[1]  Paneloux — “Si, aujourd’hui, la peste vous regarde, c’est que le moment de réfléchir est venu. Les justes ne peuvent craindre cela, mais les méchants ont raison de trembler. Dans l’immense grange de l’univers, le fléau implacable battra le blé humain jusqu’à ce que la paille soit séparée du grain. Il y aura plus de paille que de grain, plus d’appelés que d’élus, et ce malheur n’a pas été voulu par Dieu. Trop longtemps, ce monde a composé avec le mal, trop longtemps, il s’est reposé sur la miséricorde divine. Il suffisait du repentir, tout était permis. Et pour le repentir, chacun se sentait fort. Le moment venu, on l’éprouverait assurément. D’ici là, le plus facile était de se laisser aller, la miséricorde divine ferait le reste. Eh bien, cela ne pouvait durer. Dieu qui, pendant si longtemps, a penché sur les hommes de cette ville son visage de pitié, lassé d’attendre, déçu dans son éternel espoir, vient de détourner son regard. Privés de la lumière de Dieu, nous voici pour longtemps dans les ténèbres de la peste!”. (CAMUS, Albert. La peste. Paris : Gallimard,1999, p.108-109)
[2] Vale salientar que esse termo não existe nem no dicionário Houaiss.
[3] Teoria moral criada pelo filósofo e jurisconsulto inglês Jeremy Bentham 1748-1832 que, rejeitando a importância de qualquer apelo ao dever e à consciência, compreende na tendência humana de perseguir o prazer e fugir da dor o fundamento da ação eticamente correta; deontologismo.
[4] Pacha Mama ou Pachamama (do quíchua Pacha, "universo", "mundo", "tempo", "lugar", e Mama, "mãe",[1] "Mãe Terra") é a deidade máxima dos Andes, Bolivianos e Peruanos do noroeste argentino e do extremo norte do Chile. Vários autores consideram Pachamama como uma divindade relacionada com a terra, a fertilidade, a mãe, o feminino. [2] Pacha Mama é uma deusa que produz, que engendra. Segundo a tradição, sua morada está na Favela de Cerro Blanco (Nevado de Cachi), em cujo cume há um lago que rodeia uma ilha habitada por um gordo de chifres dourados e saliente, que, ao mugir, expele nuvens de tormenta pela boca. Fonte: Wikipédia, acesso em 07 de outubro de 2016.
[5] Arte do despedaçamento como rito de passagem iniciático.

Nenhum comentário:

Postar um comentário