“Se hoje a
peste vos olha, é porque chegou o momento de refletir. Os justos não podem
receá-la, mas os maus têm razão para tremer. Na imensa granja do universo, o
flagelo implacável baterá o trigo humano até que a palha se separe do grão.
Haverá mais palha que grão, mais chamados que eleitos, e esta desgraça não foi
desejada por Deus. Por longo tempo este mundo construiu com o mal, longo tempo
repousou na misericórdia divina. Bastava arrepender-se, tudo era permitido. E
para se arrependerem todos se sentiam fortes. Chegado o momento, o
arrependimento viria por certo. Até lá, o mais fácil era deixar correr, a
misericórdia divina faria o resto. Pois bem! Isto não podia durar. Deus, que
durante tanto tempo baixou sobre os homens desta cidade o Seu rosto de piedade,
cansado de esperar, desiludido na Sua eterna esperança, acaba de afastar o
olhar. Privados da luz de Deus, eis-nos por muito tempo nas trevas da peste”.[1]
(A Peste, Albert Camus)
Lourenço
Leite
A semiótica do discurso do Pe. Paneloux em A Peste de Camus não fosse sua
representação da escatologia cristã/burguesa na época da ocupação nazista em
França, seria um discurso de revelação da absurdidade da peste da existência.
Outrossim, o credo na privação da luz de Deus que enseja a epidemia bubônica da
ausência do Absoluto nas esferas da cidade de Oran é a mais pura resignação
anti-sisifiana em que o Cosmo faz propagar a bactéria sem antídoto pela
transmissão dos ratos aos seres homens.
O homem moderno contemporâneo está infectado
pela peste negra. O continente latino americano começa a padecer da peste da
ignorância ao pôr de lado a força de sua ancestralidade. O Brasil se esvai nas
mãos da negação do sagrado embutido no simbólico e a Bahia vê, de perto, a
emigração de suas divindades pelas portas da Bahia de Todos os Santos.
O simbólico agoniza pelo consumo exacerbado
de modas, de fast food, de MMA, de corrida de fórmula 1, de lutas de boxe, de
futebol midiático, de músicas de sofrência[2],
de publicidade enganosa dos governos federal, estaduais e municipais, das
religiões ditas evangélicas, da podridão dos bastidores da cidade do Vaticano,
da guerra ao terror promovida pelas grandes potências bélicas, da hipocrisia do
estado islâmico, e, ao jazer, tenta se revelar pelas migalhas caídas da mesa do
banquete servido aos deuses satânicos. O
anticristo se fortalece a cada momento e bebe do cálice da ignorância e do
mundo virtual o néctar do conhecimento às avessas. Eis que seu triunfo se
profetiza ao abater de todo e qualquer resquício do campo do simbólico. A razão
inebriadora da vontade humana galga os degraus da fama e da finitude do real.
A deontologia[3]
assume o lugar da Ética; a literatura best seller esconde a verdadeira ficção;
a Estética da Existência é substituída pela fotografia aquarelada da aparência;
a moral suplanta a Ética em detrimento do Outro [haja vista o julgamento de
Mersault na obra O Estrangeiro de Camus]; a Política é encoberta pela ideologização
partidária; as religiões comprazem-se pela moral de atitudes sem Ética; os
movimentos LGBT fortalecem a convivência em guetos e propagam a epifania da
nova sexualidade e da nova família baseada nos estereótipos cristãos burgueses;
a doação de órgãos humanos adquire proporções monumentais de indústria do
sequestro e da morte; a prostituição infantil insere os pais como
intermediários do crime; a poluição sonora atinge os píncaros do insuportável
levando ao cometimento de homicídios; a poluição do meio ambiente: terra, água
e ar atingem níveis estratosféricos; os banqueiros auferem lucros exorbitantes
com o consentimento do Banco Central; os juros de empréstimos e de cartões de
crédito podem atingir 600% a.a.; a escassez de alimentos em países de
miserabilidade crescente faz a população sobreviver apenas de doações humanitárias
e dos cuidados das Ong´s internacionais, dos voluntários e das congregações
religiosas à luz de Madre Tereza de Calcutá.
A Pacha Mama[4] esconde
em seu útero a força do vulcão, a energia das águas e a renovação da vida fruto
da morte. É preciso que o planeta morra. É preciso que o homem seja
esquartejado como fora Dioniso pelos Titãs efetuando o diásparagmós[5]
que conduzirá a reunificação da existência. O problema que se instaurou com a
modernidade é que não há lugar mais para a morte; não pode haver vida sem
morte; não pode haver pecado (leia-se todo e qualquer ato praticado contra o
Todo) sem redenção; nem sentimento de culpa sem perdão.
O simbólico no leito de expiação aguarda que
se restabeleçam as matas, o Caruru de São Cosme e São Damião, as trezenas de
Santo Antônio, a fogueira de São João, as oferendas à Obaluaiyê, os presentes
para Iemanjá, o ofertório da missa criola e do vaqueiro, as procissões sobre os
leitos dos rios para evocar os espíritos das chuvas, as comemorações de
aniversários e de casamentos, das festas populares profanas. Daí advirão os
deuses e os ancestrais fortalecerão seus filhos e filhas, seus netos e bisnetos
para que retornem ao seio de suas tradições e efetuem a grande síntese em que a
sabedoria, oriunda do mito, dê sinais de sua presença.
A destituição do simbólico conduz o homem a
uma esfera de negligência do sagrado e o insere no reino da melancolia sem a
presença do absoluto. O melancólico, por excelência, sente o sagrado na
experiência de sua ausência. O homem contemporâneo assassina o sagrado em prol
de sua individualidade. Não há mais lugar para o sentimento de perda, logo, não
há luto. A melancolia é invadida pela depressão, pela tristeza e pela acedia.
Restauram-se dos escombros os edifícios da
nostalgia mascarados pela onda do pugilato do combate com a diferença. Resta
criar um deus que seja o Deus do amparo, da misericórdia e da redenção.
Todavia, que Ele não me peça de me jogar no rio para salvar alguém que se
lançou no mar da solidão e do suicídio. A água continua fria, felizmente,
parafraseando Camus em sua obra A Queda.
Almejo um Deus que sofra no meu lugar; que dê
sua vida por mim; que se jogue do cais no rio da existência para salvar o
outro; que não me peça compreensão diante das falhas humanas; que me deixe
livre de agir no anonimato de minha existência sem culpa; que assuma em meu
lugar os remorsos da indiferença; que não me cobre a dívida da traição; que me
deixe ir aos infernos sem temeridade e retornar com Eurídice como tentara Orfeu
sem êxito; que me permita sonhar com o que não tenho direito de obter; que o
cotidiano de minha existência seja pleno de repetições sem nenhuma novidade que
me desconcerte; um Deus que não veja a minha destruição do sagrado; que abençoe
as dádivas recebidas dos fiéis ingênuos e cumpridores da moral sem Ética, que
não julgue os pedófilos dentro e fora das igrejas. Que os seminaristas e os
pastores que usaram de trampolim as instituições religiosas para a obtenção do status quo não sejam condenados nem
perseguidos. Que os vereadores e prefeitos das cidades do Brasil não sejam
punidos por desviarem as verbas da merenda escolar. Que Deus se faça homem sem
desespero e sem angústia da existência humana. Que os advogados e juízes
continuem a aceitar subornos em prol da família e da propriedade.
O simbólico, desse modo, não mais conduzirá a
Música para a transcendência nem o conhecimento para a libertação. Lendo Camus
às avessas em O Mito de Sísifo, a
grandeza de Deus não será mais a sua inconsequência, nem sua prova a sua
inumanidade. Deus deve e tem que ser puramente humano, haja vista que sua
presença ostensiva e onipresente já fora substituída pelas redes sociais.
“Senhor cidadão, eu quero saber com quantos
quilos de medo se faz uma tradição” um dos refrãos da música de Tom Zé
reproduzindo um dos lamentos do sertanejo, através da música que denuncia a
crueldade instalada no seio da cultura popular em que o simbólico, mesmo agonizando,
apela para a sua continuidade.
Estarei salvo de Deus.
Ilha de Itaparica, outubro de 2016.
[1] Paneloux — “Si, aujourd’hui, la
peste vous regarde, c’est que le moment de réfléchir est venu. Les justes ne
peuvent craindre cela, mais les méchants ont raison de trembler. Dans l’immense
grange de l’univers, le fléau implacable battra le blé humain jusqu’à ce que la
paille soit séparée du grain. Il y aura plus de paille que de grain, plus
d’appelés que d’élus, et ce malheur n’a pas été voulu par Dieu. Trop longtemps,
ce monde a composé avec le mal, trop longtemps, il s’est reposé sur la
miséricorde divine. Il suffisait du repentir, tout était permis. Et pour le
repentir, chacun se sentait fort. Le moment venu, on l’éprouverait assurément.
D’ici là, le plus facile était de se laisser aller, la miséricorde divine
ferait le reste. Eh bien, cela ne pouvait durer. Dieu qui, pendant si
longtemps, a penché sur les hommes de cette ville son visage de pitié, lassé
d’attendre, déçu dans son éternel espoir, vient de détourner son regard. Privés
de la lumière de Dieu, nous voici pour longtemps dans les ténèbres de la
peste!”. (CAMUS, Albert. La peste. Paris :
Gallimard,1999, p.108-109)
[2] Vale salientar que esse
termo não existe nem no dicionário Houaiss.
[3] Teoria moral criada pelo filósofo e jurisconsulto inglês Jeremy
Bentham 1748-1832 que, rejeitando a importância de qualquer apelo ao dever e à
consciência, compreende na tendência humana de perseguir o prazer e fugir da
dor o fundamento da ação eticamente correta; deontologismo.
[4] Pacha Mama ou Pachamama
(do quíchua Pacha, "universo", "mundo", "tempo", "lugar", e Mama,
"mãe",[1] "Mãe Terra") é a deidade máxima dos Andes,
Bolivianos e Peruanos do noroeste argentino e do extremo norte do Chile. Vários autores consideram Pachamama como uma
divindade relacionada com a terra, a fertilidade, a mãe, o feminino. [2] Pacha Mama é uma deusa que produz, que engendra. Segundo a tradição, sua
morada está na Favela de Cerro Blanco (Nevado de Cachi), em cujo cume há um lago que rodeia uma ilha habitada por um gordo de chifres dourados e saliente, que, ao mugir,
expele nuvens de tormenta pela boca. Fonte: Wikipédia,
acesso em 07 de outubro de 2016.
[5] Arte do despedaçamento
como rito de passagem iniciático.
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