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domingo, 20 de dezembro de 2015

O desespero da fome e o absurdo da existência





O vazio do mistério do sagrado impetrado no âmago de muitas pessoas fizera surgir um tipo de proselitismo exacerbado, cego e intolerante em nome de Alah ou de Jesus Cristo. Essa ausência clama por presença e, às cegas, fruto de uma alienação orquestrada pelas religiões deixa-se invadir por seitas fundamentalistas numa proliferação sem precedentes na história da humanidade. A profusão da peste da ignorância fomentada pela mídia internacional assegura que o neo-liberalismo torne-se o Senhor absoluto como profetizou George Orwel em 1984 pela presença onipresente do Grande Irmão (Big Brother).
A razão manca e desprovida de alcansabilidade ao simbólico da natureza convence que estamos completamente destituídos de transcendência e de mistério. Não há mais mistério, tudo fora revelado e desvendado... só estamos seguros no âmbito da memória da repetição, a novidade do mistério fora impedida de aparecer em quaisquer esfera da arte, da música, da religião, da ciência e da filosofia. O Ser constitui-se, cada vez mais, orfandade do Ente. Os deuses e os demônios disputam o lugar de ocupação no corpo dos endividados do mistério com a anuência e a propagação de exorcismos mascarados por pastores da indústria religiosa. Representantes de Satã esses ditos sacerdotes engendram com o auxílio da neo-linguística liberal a alicercização da estupidez, da alienação e da intolerância e conduzem o rebanho dos desesperados ao abismo da exclusão da vida. Diversamente, no lugar de efetuarem o salto qualitativo da fé, caem no abismo que conduz ao fundo da caverna do senso comum e permanecem para sempre no limbo do obscurantismo da ignorãncia. Como afiança um aluno/amigo: “só Jesus Cristo salva! Mas é o conhecimento (sabedoria) que liberta!”.

O homem contemporãneo suplantou o Frankenstein que buscara o criador. Atualmente, a criatura recria o criador, numa tessitura inigualável de longevidade na efemeridade da existência. A melancolia cedera lugar para a depressão e a tristeza. O cão de Saturno/Tempo companheiro do mendingo da existência não lambe mais as chagas oriundas do vazio nem deita mais ao seu lado.

Nesse ínterim, almeja-se o absoluto e escolhe-se o modo de vida mais execrável em que o Outro, A criação, A arte e a verdadeira mística da existência não são reconhecidos. Inúmeras pessoas tornaram-se a excrescência da condição humana sob a égide de seitas e de instituições financeiras; da moral cristã burguesa em detrimento da Ética; da ignorância regada pelas religiões e pela política midiática; de grupos terroristas que assediam adolescentes em troca de uma vida plena de sentidos e de vingança; de extremistas dito comandantes de Alah que ensinam crianças através de bonecos de pano como decapitar um ocidental infiel; de homens e mulheres bombas que sacrificam suas vidas em função de aniquilarem a de inocentes... e a inocência, como dissera Camus em O Homem Revoltado, é chamada a se justificar em função dos crimes de lógica... e a filosofia comete o pior dos suicídios... matar a verdade que ela própria ensinou a desvelar...
Paradoxalmente, a astrofísica reconhece no Bóson de Riggs a Partícula de Deus (a partícula maldita); o Dalai Lama apregoa que a Ética é mais importante que a Religião; O Papa Francisco clama que “Ao ateu, não diria que sua vida está condenada, porque estou convencido de que não tenho direito de fazer juízo sobre a honestidade dessa pessoa”; Albert Camus, o maior ateu místico do século XX reflete sobre a presença do sagrado: “para que um Deus se torne homem é preciso que ele se desespere... esse estranho olhar que ainda não era seu”; Sebastião Salgado em O Sal da Terra de Win Wenders prenuncia: “cada pessoa que morre é um pedaço do mundo que morre”.
Não creio mais na pessoa humana; não creio mais nas religiões; não creio mais em Deus; não creio mais no conhecimento; não creio mais nas instituições financeiras; não creio mais nos alunos nem na academia; não creio mais na filosofia nem na teologia; não creio mais na política nem na economia; não creio mais na justiça nem no judiciário; não creio mais nas instituições de caridade; não creio mais na família nem no casamento... nunca cri na moral cristã burguesa; não creio mais na Igreja nem tampouco no Vaticano; não creio nos seminaristas nem nos padres... não creio nas orações prometidas ao Outro em substituição à presença... não creio....!!!!
Não obstante, acredito no Outro absolutamente Outro que vive desde sempre na anterioridade de tudo; acredito que Deus é mudo, cego, tetraplégico, surdo e espera que a gente dê conta da existência e viva plenamente a vida, pois tudo foi posto!!!; acredito no Ser Humano; acredito na dignidade humana; acredito piamente na Ética da crueldade e na da alteridade; acredito na gentileza humana e no reconhecimento da solidariedade; acredito que somente a sabedoria pode ajudar o homem a sair desse abismo colapsado pela ignorância; acredito que o conhecimento que não se torna sabedoria é estéril; acredito que a força de um povo está em suas tradições; acredito que o amor é uma força da natureza...

Sem embargo, continuo todos os dias a regar as plantas, a cuidar dos animais, a ouvir a música de Ballaké Sissoko, Ali Farka, Toumani Diabaté, Tiganá Santana, da melancolia Inka, da flauta de bambú japonesa, do canto gregoriano... a preparar comidas temperadas com salsa, ki io iô, gengibre, sal do himalaya, manjericão, alecrim, açafrão, alfavaca e azeite de oliva... a beber bons vinhos, whisky´s e cachaças envelhecidas em barris de carvalho, a me deliciar com queijos de Minas, Francês e Suiços... a ver filmes da cinematografia mundial; a ler romances e filosofia mística; a viajar pelo mundo no vale sagrado do Inkas e no deserto de Marrakech, a caminhar na cidade fortificada da Ilha de Malta ou nas montanhas do Pirineus franceses, a conversar com os orixás e com os caboclos; a fazer oferendas aos deuses da natureza; a me encantar com o coelho do meu jardim que corre atrás da galinha; a apreciar o chocar de ovos por uma pata e uma galinha no mesmo ninho; a me maravilhar com os gestos de carinho e de cumplicidade dos meus cães e gatos; a ver todos os dias o nascer do sol e a rezar Ave Maria para N S de Guadalupe (protetora da América Latina) na hora do angelus; a pedir desculpas; a dar bom dia, mesmo que não respondam; a fazer fila para comprar bilhete de passagem e sacar dinheiro nos caixas automáticos; a não fazer concessão com as injustiças; a não conceder compaixão aos alunos em fase de orientação de pesquisa e de iniciação acadêmica; a cuidar dos amigos...
Parafraseando Mestre Eckhart: “ que Deus me livre de Deus”, pois “não suporto esse mundo que somos reduzidos a Deus” (Camus)
Bom Natal verdadeiro e 2016 propagado de ateus e de solidariedade.
Lourenço Leite

terça-feira, 8 de dezembro de 2015

Frankenstein de Mary Shelley e a Melancolia do Ente sem Ser.




Quisera eu mesma escrever uma história que
despertasse um medo inominável,
levantando um horror sem tamanho.
História que não deixasse o leitor olhar a sua volta.
Congelaria seu sangue e fizesse seu coração disparar.

Mary Shelley's – Frankenstein




            Marcello Luís Lemos Chaves
Mestre em Filosofia pela Universidade Federal da Bahia

            A epígrafe acima, introdução do filme dirigido por Kenneth Branagh baseado na obra de Mary Shelley, traz na metáfora do horror a problemática filosófica da modernidade. Abre-se o abismo no qual mergulha a existência humana, no qual estão a solidão do eu cartesiano, a angústia de Kierkegaard, o pessimismo de Schopenhauer, os conflitos entre fé e ciência e do qual, armado apenas com a razão, esse mesmo homem tentará emergir, valendo-se da astronomia de Copérnico, da física de Newton, do evolucionismo de Darwin. A matematização da natureza aponta mais que um caminho, constitui-se como a única esperança de “salvação”. Nesse cenário surgem inúmeros autores não só na filosofia, como os citados acima, mas também na literatura, que, em obras geniais, põem em evidência as chagas e as dores do homem moderno, principalmente no que se refere a perda do amparo metafísico: Shakespeare, Dostoievski, Mary Shelley, Bram Stoker, entre outros. O Deus morto é arrancado a fórceps das mentes modernas, restando-lhes a solidão e a finitude. Perdemos o consolo do absoluto, o conforto das garantias eternas, ficamos a sós com a efemeridade da nossa existência; como crianças órfãs, abandonadas à sorte de um futuro incerto a ser construído a cada dia, tendo na sua própria construção a experiência da elaboração de uma nova maneira de viver, de estar no mundo. Um sendo no mundo que vai deliberando no ato de ser a própria maneira de ser, tateando. Por isso a dor maior do ser humano na modernidade, daquele que testemunhou a morte, velou e sepultou o absoluto de Deus. Decerto tentar esgotar a descrição de um período histórico tão grande e rico como a modernidade em poucas páginas, mesmo se tratando de um assunto específico como a Melancolia, seria uma tentativa tão pretensiosa quanto estéril. Busca-se com esse ensaio, apenas relacionar as características principais da Melancolia na modernidade e os fatores culturais responsáveis pelo agravamento desse sentimento em relação aos períodos históricos anteriores, tendo Frankenstien, o clássico da literatura de Mary Shelley como base para interpretação. Trata-se de evidenciar traços gerais de uma cultura e época específicas.
            A afirmação contumaz da Melancolia como um mero sintoma da depressão, muito comum nos dias de hoje, nos quais a depressão foi considerada realmente uma patologia e assumiu epítetos de “mal do século” ou “doença da alma”, ganhou mais notoriedade e consequentemente mais interesse e estudos, é uma afirmação extremamente reducionista e navega em sentido contrário a toda uma tradição filosófica e literária, que desde a antiguidade grega, desde o mito, manifesta-se no sentido de buscar entender, descrever, evidenciar a M, ou até prescrever maneiras de lidar com ela. Aqui, aborda-se a Melancolia enquanto conceito e problema filosófico, referenciado na tradição, direcionado à modernidade, mas sem perder as perspectivas contemporâneas. O tema M está presente nos textos de autores antigos com uma abordagem mais “literária”, como Homero e Hesíodo, ou autores com uma abordagem mais científica/filosófica, como Hipócrates e Aristóteles. Essa dupla abordagem não se limita à Idade Antiga, percorre toda a história até os dias de hoje. A modernidade não se fez de exceção; pelo contrário, esse foi período no qual a M foi mais tratada, seja através da racional ou do simbólico, o tema foi abordado em diversas obras, algumas dessas posteriormente tornaram-se clássicos da literatura e da filosofia.
            No seu título original, Frankenstein: or the Modern Prometheus, impossível não perceber a clara referência à mitologia grega, as origens da problemática tratada decerto remete a outras épocas, estão fundadas no passado, mas assumem novos aspectos a cada era. A mitologia nos oferece importantes chaves para a análise filosófica da M, a começar pela Queda Adâmica. Ao serem expulsos do paraíso Adão e Eva, caídos no mundo, são apartados do convívio com o absoluto, fadados às agruras de Tempo e ao cruel, ao contingente e ao efêmero da vida. A lacuna gerada pela queda não pode mais ser preenchida e surge a consciência da distância impossível de ser reaproximada. A M se constitui exatamente como esse sentimento latente gerado pela consciência justamente dessa lacuna, aperceber-se do infinito na finitude. A relação com o mito de Prometeu mostra o enfoque naquele que pretende restaurar o convívio com os deuses, reverter a queda, aquele que busca a reconciliação com o fogo divino. A busca desse novo eu moderno, retalhado, multifacetado nas suas referências e significados, perseguindo um sentido na metáfora da perseguição a um pai (ou absoluto) que se esquiva e repudia sua criação. Homero já avança no sentido de uma reconciliação com o cosmo e consigo, a volta à Ítaca como a volta a si, a jornada do herói, da fragilidade humana que busca vencer os desafios e a superioridade da natureza apenas armado com a razão, que busca conhecer e se autoconhecer para viver bem, para vencer a natureza e a Ὓβρις (Hybris). A jornada homérica prevê o eterno conflito da Μῆτις x Φύσις (Métis x Physis). Outras chaves também são oferecidas por pensadores antigos, descrições mais detalhadas da M, Μελαγχολία ou Bile Negra, dos estados da alma provocados por ela, os humores e suas influências nos comportamentos, bem como as supostas substâncias e hábitos que amenizam ou acentuam a M; as obras “Da Natureza do Homem” e “O Problema XXX”, atribuídas a Hipócrates e a Aristóteles respectivamente, são relevantes exemplos.
            Na Idade Média a M foi associada diretamente a um fastio de Deus, a Acedia ou a melancolia monástica, era caracterizada por um tédio, uma preguiça associada a um excesso do divino. A forte presença do sagrado na explicação do mundo e nas garantias eternas gerou uma falsa proximidade, uma falsa reconciliação com o absoluto, encontrada na cultura, nas técnicas e nos atos, mas não encontrada no interior de cada um. Mesmos embriagados pela fé a lacuna do absoluto não era preenchida, essa embriaguez, esse transbordar do absoluto se revelou em fastio. E mesmo na época onde o divino esteve culturalmente mais próximo e enraizado no humano, ainda assim, a marca da M se impôs como denúncia constante da finitude humana.
            Na modernidade esse Deus medieval que se sobrepunha a tudo a ponto de entorpecer a razão e os sentidos, que gerava o fastio, é dado como morto, é superado pela razão. O trauma dessa morte gera um eu estilhaçado, é assim que chega a humanidade à modernidade, sem referências absolutas, fragmentada por várias crenças e possibilidades. A falta de um caminho ou sentido absoluto para a vida torna-a ainda mais angustiada, rebaixada à frieza e à solidão da existência. A obsessão de Victor Frankenstein, nome do personagem que cria o monstro, pois assim a autora se refere ao fruto da obsessão de Victor, como “criatura”, “monstro”, “demônio”, “desgraçado”. Essa obsessão o leva a se afastar de sua família e do mundo, para na apatia da solidão o gênio criativo se lançar em sua busca pelo divino, pelo absoluto perdido, criar a vida, imitar Deus, reconciliar-se com o absoluto. Melancolia dupla, do pai e do filho, do criador e da criatura, ambos perdidos na busca de significados e sentidos, criatura de aparência monstruosa, mas de razão apurada, sempre condenado à solidão pelo que aparenta ser, a clara mostra da perda do valor de ser em função do aparentar ser. A modernidade se vê em um quarto escuro e sem janelas, onde a única porta que se mostra à luz chama-se razão.
            Contemporâneo ao Frankenstein também surge a figura do Vampiro, Polidori mais tarde escreveria o romance “O Vampiro”, que seria a primeira história ocidental contendo o vampiro como conhecemos hoje, e que décadas depois inspiraria Bram Stoker no seu Drácula. Percebe-se as transfigurações propostas à figura humana, a maneira distorcida e aterrorizante de caracterizar simbolicamente esse novo humano. A solidão do vampiro é a solidão do eu moderno; alimentar-se do sangue do outro, da sua essência, daquilo que pulsa nas veias, apreendendo-o, definindo o outro, garantir a sobrevida do eu ao roubar a vida do outro, ao torná-lo o mesmo; a sua fuga da cruz – a representar a fuga do simbólico, do divino, do absoluto; a sua falta de reflexo no espelho como a metáfora da falta de significado, de sentido para a vida; frieza fúnebre, palidez mórbida; a capacidade de esfumar-se ou metamorfosear-se em bestas; sugar o sangue é sugar a essência vital, o que constitui o outro como outro, sua singularidade. Essas deformidades desse novo corpo refletem, ou buscam refletir as nossas deformidades de caráter. O Capitão Ahab, da obra Moby Dick, do escritor estadunidense Herman Melville, também nos traz as mesmas reflexões – o corpo mutilado pela besta é o motivo do seu ódio, que representa o conflito entre razão e corpo, entre racional e animal. A perda da integridade do eu e a impossibilidade de sua reconciliação com o absoluto. Uma ambição tão grande em vencer o bestial em nós tornando-se a própria bestialidade, uma busca tão desenfreada pela razão que em si torna-se irracional. A ambição da razão humana de atingir níveis cada vez mais altos, feitos cada vez mais gloriosos, uma ambição desmedida, a mesma que impedia Odisseu de retornar à Ítaca.
            No campo da filosofia o eu cartesiano inaugura a modernidade, o que até agora necessitava de significação externa passa a ser significado pelo eu. Essa inversão de sentido filosófico tem consequências diretas na teoria do conhecimento, ética, política, religiões e também no tema M. Autores como Kierkegaard e Schopenhauer ao tratarem de temas como a angústia e o pessimismo, inauguram uma nova etapa na tradição filosófica e trazem a M de volta à evidência. Cabe relembrar que não pretende-se o esgotamento de toda a explicação acerca do tema no período proposto, mas apenas seus aspectos principais, dentre os quais se destacam a perda do amparo metafísico e das garantias eternas, bem como as deformidades de caráter expressas nas metáforas literárias.
            Na versão de Frankenstein (1994) para o cinema, dirigida por Kenneth Branagh e com a atuação magistral de Robert DeNiro, a história começa com o capitão percebendo o quanto custa a obsessão de conhecer o mundo, neste momento depara-se com o Dr. Frankenstein, atormentado e perseguido por uma besta aterrorizante, pela sua própria criatura. A fuga sem êxito até os confins da terra apenas refere-se à impossibilidade de fuga, um mal que não se desfaz, que não tem lugar ou tempo, do qual não se escapa, pois é atributo inexorável da condição humana. Desde pequeno, o sempre ávido Frankenstein é fascinado pelo conhecimento – uma razão infante, curiosa por natureza e que, se bem alimentada, estará propensa a um futuro muito promissor. Assim cresce o jovem cientista, uma razão ávida, capaz de solucionar os mais intrincados mistérios, de desvelar os maiores segredos da natureza, de elevar-se ao absoluto.
            Tudo se encaixa perfeitamente bem na vida do jovem cientista até chocar-se com a finitude e a efemeridade da vida. A morte da mãe, a quem ele era por demais ligado, prostra-o em profundo estado de M. A impossibilidade do jovem e promissor gênio de vencer a simplicidade e a objetividade da morte acarreta em uma mudança radical na vida do futuro Dr. Frankenstein. A evidente lacuna deixada pela perda do amparo metafísico, “ninguém deveria morrer” - a promessa no túmulo da mãe intenta por fim a morte – o humano tentando através da razão buscar a transcendência, a eternidade. A morte da mãe torna-se uma obsessão: a busca desenfreada por vencer a finitude. Surge então a saga do Prometeu moderno... a busca da explicação racional para o absoluto, aquilo que vai além do domínio da razão, a síntese metafísica. God will punish you” – DeNiro (ainda como o corpo que será a base da criatura) antes de ser enforcado nega a vacina contra a peste (ciência) e clama por Deus, seu clamor é interpelado pela lei (a lei positivista, senhora dos atos). A irracionalidade que clama por Deus é executada sob o deleite do olhar frenético da turba – a razão que o condena e mata aplaudida pela própria irracionalidade, igualando-se a ela no extermínio. Deus está morto! Porém a transição é penosa, abrir mão de todas as garantias divinas em prol de uma razão que não dá garantia nenhuma é angustiante. No filme Creation (2009) sobre a vida de Darwin, o diretor Jon Amiel mostra claramente a angústia do homem temente a Deus, com a crença enraizada nas suas entranhas através dos séculos, em franca luta com o cientista, que através da razão, contradiz os dogmas religiosos.
            Vencer a morte torna-se o sentido da vida do Dr. Frankenstein, sua baleia-branca, a coisa, sua obsessão. A M se instaura de tal maneira em sua alma que gera uma obsessão sem limites, a desmesura desse sentimento intenta a superação do humano, busca a transcendência na imanência, não mais se espera a morte (ou uma suposta vida após a morte) para se reconciliar com o divino, para obter os aspectos da infinitude e eternidade, isso agora passa a ser desejado em vida. Vencer a própria condição humana enquanto homem, a desmesura, a hybris. Mas o desespero do criador perante o resultado da experiência remete-nos à reflexões recorrentes acerca dos limites da nossa humanidade e das consequências éticas. Há muito mais dor e medo nas consequências dos atos de uma razão sem limites, que busca o absoluto desmedidamente, do que nas consequências naturais implicadas no ser humano. A criatura gerada causa medo, repulsa e negação, a tentativa de uma vida proveniente do desrespeito ético, da desmesura humana, não significa realmente um viver.
            A criatura é expulsa da cidade, causa repugnância nos moradores – o outro causa repulsa ao mesmo, as novas e diversas formas de ser, criadas a partir da falta de um modelo padrão divinamente orientado, faz com que as diferenças passem a ser reguladas pelos próprios diferentes. Não há mais um paradigma externo onisciente, presente e potente que regulamente o modo de ser. A criatura vaga pela floresta, busca um significado nas coisas, na natureza. O que na verdade o homem moderno tem como sua maior contribuição: a matematização da natureza. Desde a Revolução Copernicana se instaura a possibilidade de se conhecer e utilizar a natureza e os recursos naturais da maneira mais precisa possível, matematicamente. Essa possibilidade é um dos fatores que fortalecem a obsessão do cientista e diminuem a sua capacidade de deliberação. Apesar de toda a capacidade de significação da natureza, a criatura só volta a maravilhar-se, a encontrar sentido, quando é atraída pela flauta do ancião cego. A humanidade resgatada através do divino no próprio humano, algo que é apenas intuído, que não pode ser compreendido. O romantismo expresso na música reflete claramente o “outro da razão” da modernidade. No seio da própria Idade da Razão já aparece a denúncia da tentativa de absolutismo dessa mesma razão.
            A criatura vive escondida entre os porcos, se alimenta com eles, conhece as noções básicas de humanidade através da perspectiva da pocilga. Alfabetiza-se a sombra de uma família camponesa. Alimentando o corpo e a alma com migalhas e restos de humanidade, vive à margem. O conhecimento lhe traz luz e trevas, liberta a sua mente, mas ao mesmo tempo, aprisiona-a; ao começar a ler o diário de seu criador desperta a consciência do seu eu e o desejo de vingança. Dá-se início à busca pelo Pai, não pelo amor, mas pelo ódio. A vingança começa por Willie (jovem irmão do seu criador) e Justine – a Justiça que morre condenada por um crime que não cometeu. O indivíduo agora liberto da culpa e do olhar vigilante de Deus, tem o potencial para ser afetado pela beleza da melodia da flauta do cego e para estrangular com as próprias mãos uma criança até a morte, olhando nos seus olhos, vendo-a morrer: os poderosos filhos da razão e suas criações não nascem éticos. A natureza humana necessita ser acolhida e trabalhada. A extrapolação do “estar liberto de Deus” se dá em comportamentos como o de Fíodor Karamazov, da obra “Os Irmãos Karamazov”, de Dostoiévski (excelente tradutor do espírito moderno), que é considerado um dos maiores escritores de todos os tempos e que aborda a problemática da M moderna sem metáforas, mostra as distorções e deformidades humanas no próprio homem. A obra do Marquês de Sade também apresenta características similares, entre outros exemplos modernos. Não estar mais sob a égide de uma presença que a tudo vê, deixa-nos apenas em contato com a solidão do próprio eu, regulador primaz da ética e da moral.
            O encontro entre criador e criatura na caverna gelada, momento crucial do filme, confronta um criador desesperado, frágil, angustiado e “demasiadamente humano”; perante uma criatura também desesperada, robusta e poderosa, capaz de resistir às agruras de tempo e da natureza, mas frágil, desprezada pelo pai, desprovida do principal: de sentido. Na descrição da morte de Willie “Tu me destes estas emoções mas não me ensinou a usá-las... será que tenho uma alma?” a criatura cobra do criador o sentido da sua existência, que nem seu criador, a razão, pode lhe dar. Deu-lhe um poder quase ilimitado, mas não deu-lhe os meios de controlá-los ou de lhe conferir sentido. Questiona ainda a impossibilidade de sentido dentro da própria diversidade humana, um questionamento de si através das partes que lhe compõem, A necessidade de identidade com o mesmo criando e fortalecendo a possibilidade consolidar o império do eu e negação da alteridade. O pedido pela criação de uma criatura igual a ele, uma fêmea que lhe proporcionasse a reconciliação com a humanidade, sua Eva, um semelhante que lhe desse significado – um mesmo de si: o eu só se sente significado através do próprio eu refletido no outro. Aqui já se evidencia mais uma vez a impossibilidade da significância do eu por si.
            Que homem/monstro é esse filho da razão?! Quem é essa criatura multifacetada? Esse eu estilhaçado, retalhado em vários? A significação através do uno perde o sentido, há um vácuo gerado pela questão da possibilidade de significação através de vários “eus”. O anti Adão e Eva, a antiqueda ou o novo Adão representando uma nova queda? Esse novo Adão, não criado por Deus, mas pela Ciência; não gerado do uno, de um elemento natural básico, mas um Adão que não foi gerado por um criador também contingente (apesar de não se aperceber), fruto da obsessão individual, subjetiva. Será que a capacidade tecnológica, física, de criar a vida é condição suficiente para criá-la?! Como essa obsessão pode ser compreendida frente a uma teoria do significado: capacidade de criar o outro a partir do eu como metáfora da capacidade do eu dar significado ao outro? A obsessão melancólica em superar o absoluto gerando o ente sem ser e instaurando a melancolia como a dor latente da finitude que vislumbra o infinito.
Uma enxada e uma pá logo em seguida
Um lençol que amortalha o corpo todo
Um buraco depois feito no lodo
Eis ao que se resume a humana vida”
(O Coveiro, Hamlet – Shekespeare).

Querelle

Querelle



“Todo mundo mata aquilo que ama”


Oscar Wilde













Thiago Felipe Lima da Mata
Graduando em Filosofia pela UFBA com projeto de pesquisa em Filosofia Mística


O Filme “Querelle” é um clássico do cinema europeu do ano de 1982 dirigido por Rainer Werner Fassbinder. Considerado um verdadeiro clássico do cinema LGBT, o filme Querelle conta a história de um marinheiro homônimo interpretado por Brad Davis que ao longo da trama vive uma relação conflituosa com as pessoas que o circundam e consigo próprio. O marinheiro parece assumir para si o significado que seu nome encerra, isto é, querela. Embora pouco usada no português, esta palavra encerra significados como conflito, disputa, lamento, desgosto e queixa. Nada disso pode ser desassociado de nosso Querelle do filme de Fassbinder. Por vezes, estas significâncias estão relacionadas ao estado chamado de melancolia. Querelle melancólico de si mesmo, de seu verdadeiro eu, assume perfeitamente as feições do homem de gênio apontadas desde a antiguidade por Aristóteles. Para que se entenda a melancolia vivida por Querelle é necessário levar em consideração alguns elementos que compõe a sintomática aparecida com o aumento da bile negra.[1]
Na trama inspirada no romance de Jean Genet (1947), nosso marinheiro é representado com aparente jovialidade, porte másculo e singular beleza. Um estereótipo sem praticamente nenhuma barreira que impossibilite a sedução de homens e mulheres. Traz ainda a marca de um ‘sex symbol’ tipicamente francês da cinematografia LGBT. Cabe dizer que este estereótipo não é por mero apelo à sensualidade e aposta em algum sensacionalismo tal como percebemos nas atuais novelas. O Querelle “sex symbol” é a alegoria do melancólico que reforça o exterior para esconder suas verdadeiras questões interiores, sérias e profundas. Questões que nem sempre são percebidas pela camuflagem imposta pelo ego, mas que se encontram recônditas no âmbito da existência. Talvez isto se dê pelo afastamento do verdadeiro eu que faz refletir nada mais que algo um tanto aparente e não condizente com o real exteriormente. Se quiséssemos, poderíamos comparar nosso Marujo ao jovem grego Narciso que, encantado com sua beleza exterior paralisou-se ante ao seu próprio reflexo não conseguindo mais encontrar sua identidade, se perdendo na aparência e cada vez mais longe de sua verdadeira natureza: paralisado. Aqui recorremos ao simbolismo do espelho tão caro aos estudiosos da melancolia. Objeto amado por muitos, o espelho reflete o que há de mais imediato no exterior dos corpos. Assim é possível se ajeitar conforme os gostos individuais e ter uma “ideia” de como estará esta “imagem” refletida. É, portanto símbolo da beleza e da vaidade presente praticamente em todas as culturas como na mitologia africana em que Oxum, divindade arquetípica da beleza e vaidade é representada empunhando um espelho ritualístico chamado abebé.
O Espelho devolve para quem o olha a sua própria imagem. Associa-se, no entanto à melancolia dada à fugacidade da aparência física em detrimento da verdadeira essência sempre relacionado a uma ideia de destituição.  O Espelho da melancolia faz enxergar os efeitos de tempo e refere-se ainda ao estado de apatia tipicamente do melancólico, que como Narciso, prostra-se e paralisa-se como se não houvesse ânimo para fazer mais nada.
Por analogia o “espelho” de Querelle é o outro. A alteridade é quem mostra a Querelle a sua imagem. Percebe-se claramente isto na cena em que luta com o próprio irmão numa sincronia perfeita de passos e golpes. Destarte, compreende-se que a luta com o outro é a tentativa de aniquilação de seu próprio eu. Propositalmente o filme é embalado pela trilha sonora baseada na fala de Oscar Wilde “Todo mundo mata aquilo que ama.” O que Querelle ama e busca não é apenas o outro, mas o seu Eu refletido. Em uma cena do filme nos é dito que quando o marinheiro beija um homem pela primeira vez “era como se aproximar sua boca perto de um espelho”. Por vê aquilo que lhe falta projetado no outro e não tê-lo, ele reage com um típico gesto do homem de gênio melancólico: a agressão. Tomemos emprestadas as palavras de Baudelaire para expressar o sentimento do Jovem Querelle:
Eu te golpearei sem cólera
E sem ódio como um açougueiro,
Como Moisés fez ao rochedo!
E farei de tua pálpebra,
Para embeber meu Saara,
Jorrar as águas do sofrimento.
Meu desejo inchado de esperança
Em tuas lagrimas salgadas há de nadar.
Como um navio que se faz ao largo,
E no meu coração, ébrio deles,
Teus caros soluções ressoarão
Como um tambor que bate a carga!
Não sou um acorde em falso
Na divina sinfonia,
Graças à voraz Ironia
Que me sacode e que me morde?
Ela está em minha voz, a estridente!
Este veneno negro é todo o meu sangue!
Sou o sinistro espelho
Em que a megera se contempla.
A megera de que fala o poema de Baudelaire é a melancolia alegorizada. E toda esta fala agressiva é compreendida dentro da problemática desta “megera que se contempla”. Como nota Starobinski (2014,p.19) “É da energia que atinge outrem, sem motivação explicita, que deriva o tormento infligido a si mesmo”. É como se o outro acusasse Querelle ou lhe apontasse algo terrivelmente doloroso. Portanto os versos finais da poesia de Baudelaire também refletem o drama de Querelle:
“Sou a ferida e a faca!
Sou o tapa e a face!
Sou os membros e a roda
Sou a vítima e o Carrasco!
Sou de meu próprio coração o vampiro
- um desses grandes abandonados
Ao riso eterno condenados,
E que não sabem mais sorrir".
Os espelhos e vidros do Cabaré também não distam da significância abordada na melancolia, pois refletem justamente este comportamento promíscuo e vicioso que é apenas aparência e vazio dos frequentadores do bordel. Trata-se de “um espelho de volúpia solitária e um espelho de sofrimento igualmente solitário” (2014,p.20), pois as pessoas não se comprometem seriamente umas com as outras.
ao hedonismo que não deixa de ser um tipo reação agressiva. Em concordância com os gregos em relação à noção de hybris compreendemos que todo prazer excessivo passa a ser desmesura ao ponto de ser completamente destituído de seu verdadeiro sentido. Deste modo a desmesura do sexo configura um tipo de agressão ao corpo. Cabe lembrar aqui que os “excessos” são facilmente encontrados entre os melancólicos. Seja pelo sexo, álcool, tabaco ou medicamentos, estes excessos atestam justamente a busca de um preenchimento do vazio que se instaura no ser do melancólico. Portanto, a aparência tísica, pálida, envelhecida é característica dos melancólicos, pois com estas agressões o corpo é frágil e entra em devir 
O símbolo do falo em diversas partes do cenário é a referência
No caso de Querelle e sua beleza tipicamente apolínea, não se vê enfraquecimento da aparência. O que nos pode fazer pensar especialmente que se quer ressaltar a terrível melancolia instaurada no ser mais íntimo da personagem. No entanto, é justamente na agressividade que será evidenciado o caráter melancólico pois o efeito corrosivo da bile negra tira a doçura do humor sanguíneo transformando em agressão (STAROBINSKI, 2014 p.31). Cabe ainda dizer que esta agressividade não é justificada na exterminação por si, mas numa revolta de não se ter algo ou num sentimento não assumido. Como a personagem confessa em uma das cenas em relação ao outro: “Te amo mais que a mim. Meu ódio era camuflagem. Uma melancolia me aproxima de você!”.

A melancolia de Querelle era a saudade de um amor familiar. E esta era sua cruz. Suplicio evidenciado quando uma via crucis corta o cenário no exato momento em que se envolve numa briga com o irmão. O Irmão de Querelle é como se fosse seu próprio pai. Por ser mais velho, a relação incestuosa com o irmão aceita por ambos, pode revelar um desejo recôndito de Querelle pela figura paterna.  Apesar de ir contra os padrões morais da sociedade, a atual psicologia não teria dificuldade alguma em explicar esta relação por meio da análise freudiana. No fim desta cena ao subir a escada, evidencia-se um marujo com a cruz nos ombros. No entanto cabe a quem ver a cena refletir era um “Cristo” ou um “criminoso” que seria crucificado? Um inocente ou um culpado?
 A busca de Querelle não se dá apenas no âmbito do prazer sexual. Mas num desejo de “um pai” para si. Talvez por isso se comportasse como o passivo nas relações sexuais e preferia parceiros mais velhos que gozavam de cargos de autoridade. Esta passividade, assim como entre os gregos antigos, alude a uma ideia de proteção e iniciação. Por isto Querelle tinha dúvidas se conseguiria ocupar a posição de ativo na relação como é apontado numa cena na prisão. Querelle queria proteção e ansiava por um cuidado paternal. O que nos parece bem claro no final do filme quando o tenente, melancólico de um amor, age com atitudes paternais em relação ao marujo embriagado que se mostra debruçado de amor ao líder do barco. Querelle enxergara no tenente a possibilidade de que ele fizesse o papel de pai e amante. E assim, o marujo seria quem ele é na verdade: um homossexual carente de uma paternidade, desejoso de uma proteção e de afetos sinceros. Realidade que até então não compreendera...


A melancolia na trama recorre também ao cenário e às cores: do tom amarelado dos “fauve[2]” ao azul acinzentado dos “dândi”[3] e do mar. Ambas as cores profundamente relacionadas à melancolia. As cores do “fauve” mais do que fazer alusão às feras dizem do momento crepuscular e aurora. Momentos em que as energias são transmutadas e surgem as transformações. O crepúsculo é a hora em que treva e luz se misturam. É o momento da trégua melancólica já assinalada pelos estudiosos da Melancolia como Robert Burton e Hélène Prigent. O tom azulado que também aparece no filme nos remete ao simbolismo do planeta Saturno “frio, gélido e seco” que, na antiguidade era considerado o “causador” do aumento da bile negra no organismo.

Dos aspectos ainda a serem considerados para uma reflexão critica, seria abordar o papel da mulher praticamente sem vez no filme. Principalmente tida como um objeto disputado pelos homens também a presença feminina é perpassada pela melancolia de um amor real. Cantora de cabaré, a personagem interpretada pela talentosíssima Jeanne Moreau desponta de alguma maneira como a “senhora do destino” ligando-se a figura de tempo, fator tão caro aos melancólicos. Por meio das artes oraculares do tarot ela traça o destino de seu amante abrindo e fechando o tempo da trama. Freguesa do “Clube da Espada” ela também se submete ao poder sedutor do jovem Querelle que lhe faz ver o que ela representa de fato para os homens do cabaré.                                                                                           
                             
 
Repleto de símbolos e interpretações, o filme de Fassbinder implica numa provocação que pode ser pensada desde as relações de gênero á problemática existencial da ausência de sentido na modernidade. Podemos ainda nos convocar a uma reflexão no âmbito da ética onde as relações de alteridade têm sempre relevância. Estas relações que às vezes não levam em consideração uma ética que salvaguarde a vida humana e acabam por se deslanchar numa situação de extermínio do outro sem levar em consideração a vida que lhe pertence por direito, gerando por consequência disso sentimentos de culpa, rancor e amargura. O Jovem Querelle percebeu ao fim da trama que pode ser melhor expor suas emoções do que se fechar em um mundo carcomido por uma tristeza paralisante capaz de lhe tirar o verdadeiro prazer de gozar.

Referências:
·         QUERELLE. Direção: Rainer W. Fassbinder: 1982. (102 min.).
·         BAUDELAIRE, Charles. As Flores do Mal. São Paulo: Saraiva 2012.
·         PRIGENT, Hélène. Mélancolie, les métamorphoses de la dépression, Paris, Gallimard (Découvertes Gallimard), RMN (Arts), 2005.
      STAROBINSKI, Jean. A Melancolia diante do Espelho: Três leituras de Baudelaire. São Paulo: Editora 34, 2014.


[1] Conforme nota Hélène Prigent  (2005) em sua obra Mélancolie, les métamorphoses de la dépression”:Que ela tenha sido observada ou não, a bile negra está presente em todas as descrições da doença melancólica. Ela é evocada pelos partidários da teoria humoral, que liga as doenças aos humores, porém, paradoxalmente, ela também o é pelos detratores da mesma teoria, para quem a bile negra não é a causa da melancolia. Os primeiros fazem dela uma substância tão variável que parece tocar (beira) o irreal, os segundos pelo contrário, atribuem-na sem dúvida, porque a vêem pelo o que ela é: uma bile de cor escura. No entanto todos estão de acordo em um ponto: a doença chamada melancolia é impensável sem o recurso da bile negra. É então em primeiro lugar um nome mais de que uma substância real, que parece importar e, depois dele, esta cor negra ligada nele, espécie de poder metafórico suscetível de explicar o inexplicável e finalmente de fundar o consenso que se estabelece sobre o tema, independentemente do papel da substância que ela designa.
[2] O “fauvismo” foi um movimento artístico, caracterizado pela utilização de cores puras em grandes manchas e com fortes contrastes, para acentuar ao máximo o valor expressivo da cor, exaltando a sua sensualidade e sugestão emotiva. O termo fauvismo deriva de “fauve” (fera selvagem), exclamação feita pelo crítico de arte Louis Vauxcelles perante a exposição de pintura do Salão de Outono de 1905, em Paris onde a violenta expressão cromática das telas expostas contrastava com o pendor clássico-renanscentista de uma escultura aí presente. Foi um movimento de curta duração, na passagem do Século XIX para o Século XX, que constituiu o primeiro, senão o mais importante, movimento de renovação da pintura francesa depois do Impressionismo.
[3] O “dandismo” é uma corrente artístico-cultural iniciada na Inglaterra que prezava pela elegância e suntuosidade. Sua principal manifestação era na moda onde as cores cinza e azul se destacavam em meio às cartolas, casacos e calças. Conforme nota Baudelaire, no “manual do dandi”: Denominem-se eles refinados, incríveis, belos, leões ou dândis, não importa: têm todos uma mesma origem; são todos dotados do mesmo caráter de oposição e de revolta; são todos representantes do que há de melhor no orgulho humano, dessa necessidade, bastante rara nos homens de hoje, de combater e de destruir a trivialidade. Vem daí, nos dândis, essa atitude altiva de casta provocadora, até mesmo em sua frieza.” O dandismo trazia um certo “ar de superioridade” em relação aos demais homens onde a diferenciação se dava sobretudo pelo modo de vestir, apurada intelectualidade e alta erudição dos dândi.