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terça-feira, 6 de fevereiro de 2018

O Amor da Justiça e a Inalcançabilidade do Outro na Filosofia Mística da Melancolia




 (...) tenho de responder por outrem sem me ocupar da responsabilidade dele para comigo. Relação sem correlação ou amor do próximo que é amor sem Eros.
(De Deus que vem à idéia, E. Lévinas)

A força de Eros representada na mitologia grega quando partícipe das potestades criadoras juntamente com Kaos, Géia e Tártaro, apesar de estéril, é a energia mais descomunal para garantir que a matéria permaneça unida. Por analogia, seria a energia atômica que garante a junção dos prótons com os neutros para que a matéria seja viva e possa evoluir. Quando de sua dispersão provocada pela explosão nuclear desencadeia a mais tenebrosa e devastadora reação em cadeia do universo cósmico. O homem aprendeu pela via da ciência a manipular essa força dispersora quando engendrou a bomba atômica. Contudo a força originária cósmica recupera em segundos a reunião da matéria com a sua energia vital. Todavia, as conseqüências no espaço/tempo são avassaladoras e deixam seqüelas irreparáveis na natureza e no homem. Outrossim, a responsabilidade ética perante Outrem deve estar presente como a priori no seio das ciências e das relações humanas sem se preocupar ou esperar uma reciprocidade dele para comigo, como bem afirma Lévinas em sua obra De Deus que vem à Ideia. Diferentemente de Eros que expecta a mutualidade, o amor da marca indelével da ancestralidade e da atualidade percebido pelo rosto do outro no encontro da face-a-face, desencadeia a justiça que proporciona o Outro a ser além da ontologicidade em que a relação se restringe apenas entre o Ente e o Ser. É o amor sem concupiscência. Obtivemos uma falta de responsabilidade por Outrem “como princípio de individuação humana é talvez, parafraseando Lévinas, que Deus ajuda a ser responsável. (...) mas para merecer a ajuda de Deus, é necessário querer fazer o que se impõe fazer sem sua ajuda”.
Lamentavelmente, em nossos dias atuais o “querer fazer sem ajuda de Deus” fora do ateísmo salutar, potencializou-se o contrário: toda a responsabilidade do agir moral está atrelada a participação de Deus, haja vista o que se comete em nome Dele e supostamente com Sua ajuda. O Talibã e/ou o Estado Islâmico anunciam suas atrocidades e seus assassinatos públicos fazendo explodir prédios por meio de homens bombas ou jogando automóveis em meio a multidões em diversas partes do mundo em nome de Alá, quando, antes de se sacrificarem, gritam: Alá é Grande.
Similarmente, os neo-evangélicos oriundos da Igreja Universal criada pelo magnata bilionário Edir Macedo que se propagaram por todo o continente latino-americano, agem da mesma forma. Em nome de Jesus Cristo e de uma doutrina evangélica completamente distorcida, difundem à seus fiéis seguidores alienados a homofobia, a transfobia, a demonização do simbólico, a invasão aos terreiros de candomblé e umbanda, a perseguição aos filhos e filhas de santo, aos Babalorixás e as Yalorixás, a negação de Deus verdadeiro e de todos os santos, de todos os Xamãs, dos curandeiros e das curandeiras, dos Pajés indígenas, do espírito das águas, das montanhas, das entranhas da Terra, das benzedeiras, das baianas de acarajé. Optaram por negar e execrar as tradições de seu próprio povo donde herdaram a sabedoria, a fé oculta nos mistérios da natureza, da vida e da morte. Abominam o vinho e toda sorte de bebida que contenha álcool e todo tipo de comida de santo que contenha dendê. Contudo, praticam a profanação do que deve ser preservado como sagrado, propagam em público nos transportes coletivos e nas praças públicas heresias e cometem sacrilégios sem dó nem piedade. Elegem vereadores, deputados e prefeitos corruptos sem nenhum traço ético e, atualmente, preparam-se para eleger o presidente da República do Brasil. O liberalismo capitalista insano e antiético se regozija com essa expansão de um povo alienado tornando a moral cristã burguesa sua plataforma por excelência. A moral com sua força estonteante detona e ofusca todo tipo de comportamento ético. Albert Camus ao escrever uma das maiores e grandiosas obras da literatura universal do século XX – O Estrangeiro denuncia a supremacia da moral em detrimento da Ética ao demonstrar no julgamento do protagonista Meursault o quão os membros da justiça e a igreja da época representada pelo capelão do presídio não tinham a menor preocupação com a morte do Árabe cometida por Meursault, mas, sobretudo, pela supervalorização dos costumes morais que se deve chorar no velório de um ente familiar, principalmente da mãe. Aquela da Argélia e essa nossa sociedade fortificam-se pela égide da lei jurídica e dos mores culturais.
A justiça é divina por excelência, desde o mito grego até a chegada dos Orixás e dos Inkisis e da Mama África. Xangô, o deus da Justiça, garante espiritualmente a efetivação da justiça no meio humano, mas não materialmente, como se costuma apregoar. É preciso aprender a praticar a justiça no devir da existência, heraclitianamente pensando; aprender a se deixar levar pela sophrosyne do ponto de vista aristotélico; reconhecer e acolher o Outro semelhante em raça, em etnias e em espécie como afirmara metafisicamente Emmanuel Lévinas em sua filosofia da alteridade. A razão moderna habita sob o alpendre da existência. Não sobe no telhado. A metafísica do ser do Outro está em cima do telhado, daí precisar-se-á de uma escada que nos conduza a chegar até lá. A filosofia é a única ciência que conduz o homem a subir até a esfera do Ser como tal onde se encontra, igualmente, a Justiça que é a Ética e somente aí o Outro pode ser alcançado. Logo, devido a inalcançabilidade do Outro por conta da limitação do pensar, do reducionismo das ciências, da super valorização da moral o Outro sempre é reduzido ao Mesmo e a repetição memorial se impõe a cada dia em todos as esferas dos relacionamentos humanos.
É preciso aprender a morrer; é necessário aprender a esquecer para que o novo brote do solo das consciências como a semente que precisa cair na terra para morrer e depois nascer (João-12,24-25 = Em verdade, em verdade vos digo: Se o grão de trigo que cai na terra não morrer, permanecerá só; mas se morrer, produzirá muito fruto. Quem ama sua vida a perde e quem odeia a sua vida neste mundo guardá-la-á para a vida eterna). Dever-se-á entrar no reino de Plutão e de Omolú para que Deméter e Nanã efetuem a passagem da semente velha para a semente nova. Sem se deixar cair na terra a semente da existência continuará velha, sozinha e fenecerá. Dever-se-á acolher os refugiados do absurdo, eles nos conduzirão à morte de nossas idiossincrasias, de nossas indiferenças e permitirão que se venha conhecer novos hábitos, novos tipos de alimentação de grãos, peixes, carnes, legumes, coalhadas de leite, novos tipos de bebidas e de queijos, novas maneiras de meditar e de acolher, novos tipos de dança, novas formas de cura com remédios caseiros. É mais do que necessário que as fronteiras de todos os países sejam liberadas; que todos os muros assim como foi o de Berlin da Alemanha pós-nazista sejam derrubados. Faz-se urgentemente necessário que as cordas dos blocos carnavalescos da cidade do Salvador que protegem a burguesia zumbi, decadente, colonialista e preconceituosa sejam retiradas; é preciso restaurar a verdadeira democracia do voto livre nas eleições políticas, mesmo sabendo que o TRE sofrerá um baque descomunal de receitas extravagantes para manter seus desembargadores, juízes, advogados e funcionários de carreira; é preciso que o Portal da Transparência Brasil contenha dados de remuneração dos servidores da Justiça e do Legislativo; é preciso que se faça uma auditoria de caráter de preservação das instituições que realmente prezam pela verdadeira formação profissional de nossos jovens estudantes e o não favorecimento do capital estrangeiro que cada vez mais entra no país sob a pretensão de compra e revitalização das faculdades e universidades privadas; é preciso estancar o sucateamento das Universidades e das Escolas Técnicas federais; é preciso que a farmacologia abra espaço além da alopatia, também para a homeopatia e para os remédios caseiros oriundos das tradições indígenas, dos caboclos e das rezadeiras; que se restaurem os banhos de assento e de folhas de Ossanhã; que seja obrigatório para todos os cidadãos brasileiros cumprir a formação de ensino fundamental condicionado ao recebimento de bolsa família, do seguro defeso e do salário mínimo; que as instituições religiosas responsáveis pela educação e formação de crianças e jovens de todo país paguem os devidos impostos ao Estado e abram cotas significativas em todos os turnos de ensino para os excluídos; que os professores de ensino fundamental e médio possam ter acesso a pós-graduação de modo diferenciado e recebam salários pela isonomia dos professores doutores das Universidades Federais; que os vereadores de todos os municípios do Brasil recebam salários simbólicos e passem a trabalharem como todo cidadão empregado com carteira assinada e cumprimento de todos os direitos e deveres dos operários.
A tarefa política de transformar um país numa democracia requer que suas autoridades públicas tornem-se e vivam como cidadãos; que recusem auxílio moradia, carro oficial, dezenas de assessores, viagens em aeronaves do governo incluindo familiares e amigos.
Dizia S. Tomás de Aquino que a Política é infinitamente mais importante que a Filosofia. Mesmo porque, a Filosofia em sua maioria ensinada nas academias filosóficas das Universidades não passa de pura especulação. Desse modo ela é estéril e não se habilita a nada, nem a ensinar a pensar. Seus interlocutores permanecem no senso comum, pois falta-lhes subir na escada e andar no telhado da metafísica em que se pode vislumbrar não somente o Ser como Tal, mas igualmente o Outro. Pois o rastro deixado por ele no mundo da existência, como afirmara Lévinas, dirige-se a anterioridade da anterioridade, ou seja, à origem da origem, quando tudo começou e onde o Outro revelou sua face. Concernentemente, a força de um povo está em suas tradições.
A negação e a indiferença perante o Outro faz do homem moderno contemporâneo das cidades em todo o mundo um ser alienado, tosco, efêmero, solitário, líquido, vazio de mistério, conseqüentemente de sagrado, tecnologizado, repetitivo, estereotipado, religioso sem mística, depressivo e triste. A única e soberana salvação estaria na melancolia sem cura onde se experimenta o Absoluto da Natureza e doravante se sente saudade. É na verdadeira melancolia que o Bispo do Rosário teceu em mantos sua experiência de revolta contra a instituição manicomial do Rio de Janeiro durante 50 anos. Foi na obscuridade melancólica que Camille Claudel ao transformar em escultura de pedra e barro uma das maiores obras artísticas em França do século XX competindo com Rodin seu mestre e amante. Foi na experiência da La noche Oscura que São João da Cruz um dos maiores místicos da cristandade ocidental escreveu poemas de profunda melancolia sobre a Noite e a chegada do Dia.
É na vida dos andarilhos melancólicos acompanhados de seus cães que Omolú e São Roque, Obaluayé e São Lázaro caminham pelo mundo, mancos, feridos, com fome, sem teto, sem nenhum tipo de acolhimento nem de compreensão que se mostra a simplicidade da existência em que o conhecimento filosófico e científico cede lugar à verdadeira sabedoria. Saturno é o seu planeta, azul é a sua cor, a mística é a sua religião, a generosidade é a sua esmola enquanto desfrutam de Del em Del o cenário magnífico das entranhas da Terra, dos picos e sopés das montanhas, dos vales e dos rios de Oxum, dos mares de Yemanjá, do reino dos mortos de Omolú e Yansã.
O Outro se torna alcançável quando se pode olha-lo de frente através do face-a-face no deserto; aquele que não aprendeu a viver no deserto da melancolia jamais saberá nem sentirá a força da natureza embutida em todas as árvores e animais. Em todos os córregos, riachos e rios. Aprender a viver no deserto é deixar de lado o excessivo vício de postagens imbecis e medíocres nas Redes Sociais da Internet, no acesso contínuo às mensagens do WhatsApp ao lado do Outro que aguarda uma  interlocução. Experimentar o deserto é escutar uma boa música que ajude ao espírito à transcendência.  Deixar que o deserto se revele é não permitir que a lei jurídica seja superior à Ética; é questionar os ditames da razão em detrimento da inteligência filosófica; é denunciar as ciências que manipulam genes humanos em favor do surgimento futuro da eugenia; é tornar público o nome dos cientistas que fabricam ogivas nucleares; é mostrar ao mundo o assassinato de golfinhos e baleias que ocorrem na baia de Taiji no Japão; é assinar petições contra a extração de barbatanas de tubarões para servir em sopas de restaurantes asiáticos, a China é o maior mercado consumidor de barbatanas do globo. Estima-se que 80% das barbatanas pilhadas no mundo vão para Hong Kong (o maior centro desse comércio), onde são distribuídas para o restante do país e da Ásia; é propagar e pedir que se acabe o extermínio dos Curdos sem pátria; é acolher em nossas cidades os refugiados de toda parte permitindo-lhes que a sua dignidade de pessoa humana seja restaurada e o direito à vida, ao trabalho, à moradia e aos estudos sejam-lhes garantido.
Em sua obra polêmica e devastadora das hipocrisias liberais e socialistas O homem revoltado (1951) Albert Camus afirma: “Eu me revolto, logo existimos”. A partir da revolta o homem se torna cidadão do mundo e solidário; a partir da revolta de muitos cidadãos nasce a Revolução da Diversidade em que o Mesmo hegeliano cede lugar ao Outro.

Ilha de Itaparica, Carnaval de 2018

Meursault Babalaxé