Translate

quarta-feira, 28 de setembro de 2016

Mito e Melancolia





O conhecimento simbólico antecede ao conhecimento racional desde os primórdios da civilização humana. Na anterioridade da anterioridade o mistério do mundo e do cosmos era sagrado. O homem se vislumbrou com a fenomenização da natureza (Physis em grego), ou seja, com o seu constante vir-a-ser (Devir para Heráclito) entrando em estado de torpor e espanto (Thaumázein em grego) ao mesmo tempo reverenciando e evocando o mistério. Ao responder ao chamado, os fenômenos da natureza configuraram-se em divindades. Para suportá-los nas suas epifanias e hierofanias o homem os antropomorfizou. Foram-lhes atribuídos sentimentos e comportamentos humanos. As divindades deleitaram-se com essa interação. A partir de então, era-lhes permitido sentir o cheiro da vida pelo fumar do charuto, beber o néctar e comer a ambrosia do banquete que sazonalmente o homem lhes oferecia.
Sem embargo, faltara ao homem a capacidade de sintetizar o que era percebido. Sua mente ainda era insipiente para gerar a compreensão sob a forma representativa de um conceito. Todas as percepções eram captadas pelo corpo e intuídas pelo espírito. Só havia lugar para a constituição do símbolo. Surge Prometeu, o benfeitor e criador da humanidade, que apodera-se do fogo contido na pira do Olimpo sob a égide de Zeus, o Numinoso/Inefável para conceder aos homens o que até então era reservado aos deuses. Inicia-se a passagem do cru para o cozido, da intuição para a racionalização da existência. O homem pudera, assim como os deuses, conhecer as coisas como elas são. Mas essa acessibilidade custara-lhe um quinhão a pagar para sempre com o cansaço do trabalho (nasce aí a Ética), com a dor e o peso da existência, com os infortúnios ao longo do caminho da vida e, sobretudo, com a instauração da Melancolia.
Estabelecera-se, desse modo, a ambivalência humano/divina. A revelação era apenas superficial e sua demonstração era advinda por uma máscara. Apolo era a máscara racional da natureza humana e atrás dele estava Dioniso. Anteriormente, o homem houvera experimentado o entendimento da existência pela via do simbólico, sem o fogo do conhecimento. Agora poderia iniciar a pensá-la. Permanecia, contudo, o mistério do sagrado embutido na própria natureza. A inalcansabilidade da razão fizera reduzir o irredutível ao âmbito de si mesma. Todas as coisas deveriam ser renomeadas e configuradas conceitualmente. Era a instauração por excelência do momento da memória. O esquecimento presente no conhecimento simbólico fora desertado. Era chegada a hora da razão humana poder ver o oculto e dizer o não dito de forma clara e distinta. Inaugurara-se o desvelamento (Alétheia em grego) do mistério do sagrado. Estava decretada a falência do Ser. De agora em diante o Ser se tornara inacessível. Destituíra-se a transcendência e impusera-se a imanência em que a única relação ontológica é a do Ente com o Ser. A metafísica que habita acima do teto da casa da existência tornara-se inalcançável. A escada que ligara o mundo sensível ao mundo inteligível fora destruída pela razão científica e ideológica. A indústria religiosa fundara a hermenêutica da opinião (Doxa em grego) em detrimento do mistério do sagrado. Olvidara-se o mito e a filosofia se prostituiu com as esferas aparentes do real. A memória aprendera a repetir o real e a criação imorredoura da Arte fora sufocada pela reprodutibilidade técnica.
A melancolia tornara-se a revelação da ausência do absoluto. Um buraco formara-se no homem, acentuadamente no homem moderno. Um vácuo ético se formara cedendo lugar a totalização da moral cristã/burguesa. O “não matarás” fora substituído pelo assassínio do Outro e o simbólico fora demonizado. Restara apenas a Palavra sem o Verbo. O messianismo contemporâneo anuncia a Salvação escatológica. E a vida cotidiana é posta de lado porque não tem valor de redenção. Paradoxalmente, exterminar o Outro sentenciado como infiel, porque só “Deus é Fiel”, tudo se torna permitido para a obtenção de bens materiais sem constrangimentos de ostentação. Não há mais lugar para os Santos, os Orixás, os Inkisis, os Caboclos, os Índios, os Boiadeiros, as Caiporas, os Espíritos das Florestas e das Matas, o Espírito das Folhas, o Espírito da Água, o Espírito do Fogo, o Espírito do Vento (Tempo), o Espírito da Terra, o Espírito do El condor, o Espírito das Baleias e dos Golfinhos. Restara apenas Alá ou Jesus Cristo como concepções transcendentais anti-simbólicas. O sentido desaparecera da esfera do sagrado e seu mistério fora banalizado e interpretado como significado da existência.
O outro fora reduzido ao mesmo e a concepção de infinitude do Ser dissipara-se na mera finitude da contingência humana.
A modernidade iniciada no Séc. XVI revelara o homem como anti-herói (leia-se Hamlet de Shakespeare) incapaz de se decidir entre o Ser e o Não Ser; o Ente sem Ser protagonizado por Frankstein de Mary Shelley apresentara a ânsia do poder da razão em substituir o Criador montando e costurando uma criatura órfã de Ser. O Drácula de Bram Stoker anunciara a vampirização do outro devido a sede que nunca se sacia proveniente da falta do absoluto. Parafraseando Djavan, “se o homem bebesse o mar não encheria o que tem de fundo”. Dom Quixote de La Mancha de Cervantes sai pelo mundo à procura de sua Dulcinéia (absoluto) e nunca a encontra. Contudo, depara-se com as intempéries da vida e o tempo movido pelos moinhos do mundo se mostram como monstros a serem combatidos. O Outro tornara-se adversário da existência porque se mostrara destituído de sentido. O simbólico fora, mais uma vez, vilipendiado pela significação da razão.
A jornada sisifiana (alusão ao mito de Sísifo) que outrora representava a condenação dos deuses à Sísifo em rolar uma pedra ao cume da montanha de modo interminável fizera que o homem moderno, por analogia, se distanciasse do rochedo e experimentasse apenas o ciclo vicioso do cotidiano da existência. “É preciso imaginar Sísifo feliz” advoga Albert Camus. Sísifo age na contracorrente da história imposta pela dominação insana das ideologias totalitárias e das religiões sem o verdadeiro Deus. Sísifo é a marca indelével do humano demasiado humano; da interação melancólica da vida com a Arte; do retorno ao Éden onde Tudo é Um (Hén Panta em grego); Sísifo confunde-se com a rocha e deixa os deuses indignados e frustrados porque doravante o homem aprendera a superar seu destino trágico.
O sentido da existência fora instaurado e a reles significação racional fora posta em seu devido lugar. Mas muito embora a razão não possua a capacidade de apreender o sentido das coisas e da existência, ela, de modo filosófico, auxilia preponderantemente na interpretação da realidade. Sem a Filosofia não há o verdadeiro conhecimento, mesmo sem alcance mítico. Sua tarefa de conduzir o homem a pensar o real é insubstituível. A Filosofia gera conhecimento enquanto que o mito engendra a sabedoria. Daí a imperiosa necessidade de se manifestar atéia e dessacralizadora. O sagrado do mistério está no Mito, na Religião, na Arte e na Poesia. Por meio dessas instâncias é que se percebe e se capta a totalidade do mundo transcendental pelo via do Tempo oportuno (Kairós em grego). Todavia, a Filosofia, apesar que se fizera epistemológica e ontológica ao longo da modernidade pode atingir o Ser sem fissuras e sem reduções racionalistas desde que empreenda uma ascensão ao mundo metafísico. Nesse contexto reside a Ética, a Estética e a Ideia Universal originalmente apresentada por Platão.
A Filosofia é filha de Palas Athena gerada por Zeus e Métis; é a profanação do sagrado ao desvelar o Ser das coisas e do Mundo; é a instauradora da verdade nua e crua; é a senhora vestida do mais puro linho egípcio e ornada das joias mais reluzentes; é a beldade que seduz e ao mesmo tempo liberta. Fascina e cativa aquele que se deixou conduzir por sua forma de pensar. É a que conduz seu amante para a majestosa alcova da liberdade de Ser e Pensar. Após esse enlace, ninguém nunca mais será o mesmo de outrora e seus filhos, fruto dessa volúpia, enveredarão rumo à verdadeira Revolução e reconstruirão dos escombros a síntese primordial [...]
Lourenço Leite
Prefácio  da 2a edição do livro: Do Simbólico ao Racional, do mesmo autor.

quarta-feira, 23 de março de 2016

Tributo aos 120 anos do Cinema




Lourenço Leite
Professor de Filosofia e Crítico de Cinema


Foi há 120 anos, no dia 28 de dezembro de 1895, no Grand Café, no Boulevard des Capucines, em Paris, que os irmãos Louis e Auguste Lumière organizaram a primeira sessão de cinema da história. Esses irmãos nasceram com a Luz, faltava-lhes o movimento e o som. Com seu cinematógrafo o mundo acabara de ser presenteado com a sétima inigualável arte – o Cinema.
De Serguei Eisenstein com seu Encouraçado Potemkin (Bronenosets Potyomkin /The Battleship Potemkin) até À Garota Dinamarquesa (The Danish Girl) de Tom Hooper o cinema se superou em qualidade técnica, efeitos especiais e em interpretações magistrais. Quisera poder elencar a lista de filmes, de diretores e atores ao longo desses 120 anos, mas me é impossível, contudo posso destacar que o cinema contribuiu para que pudéssemos efetuar uma compreensão do passado, do presente e do futuro sem deixar de conduzir-nos de volta à realidade existencial.
Os geniais diretores de cinema ultrapassaram em seu vanguardismo a filosofia, a técnica e a ciência; mostraram no mundo virtual a possibilidade de imaginarmos como seria o que pode ser diferente. A alteridade sempre fora o esteio de suas obras cinematográficas, haja vista o que se pode vislumbrar em O Vampiro de Dusseldorf de Fritz Lang ou em O Corcunda de Notre Dame de Peter Medak além de inumeráveis películas sobre o Outro.

O cinema nasce com a magia consolidada nos rituais de projeção das salas em todos os cantos do planeta terra. Das montanhas do Tibet à Monte Santo no sertão da Bahia, crianças, jovens, adultos e idosos estiveram maravilhados diante de uma tela, às vezes tosca montada de um lençol roto ou nas salas especiais de shoppings com recursos de HD e som surround o cinema fez chorar em silêncio e a regozijar seus espectadores com os reencontros inesperados e almejados.  Fez nos sentirmos mais humanos e mais diabólicos; ensinou-nos a amar um E.T. e até mesmo um robô. Abrilhantou-nos com a sutileza da vida simples do cotidiano em O Fabuloso Destino de Amélie Poulain de Jean-Pierre Jeunet ou em O Porco Espinho (Le Hérisson) de Mona Achache. Através dessas grandiosas obras cinematográficas o mundo pudera perscrutar o não-dito do dito, as sutilezas do dia a dia da existência humana. Pôde revelar O divino do Outro e o Mistério do Sagrado mesmo em sua inescrutável epifania. A inalcançabilidade do Outro fora aproximada pela cena tênue e sofisticada demonstrada pelo gesto do ator, mesmo coadjuvante, ao levantar o véu do suposto Tuaregue em O Céu que nos Protege de Bernardo Bertolucci.

O cinema tivera a proeza de servir de permuta da vida real como se fora real, ao menos no imaginário dos personagens em Lisbela e o Prisioneiro de Guel Arraes em que a atriz Débora Falabella age de acordo com o que vê na tela do cinema de sua cidade e sempre aguardando que se efetive o que fora mostrado. O filme é mais que um deleite para a alma e para o espírito ao mostrar que o cinema pode tudo sem alterar o nosso dia a dia nem nosso destino tecido pelas Moïras fiandeiras. O mundo do cinema é a realidade virtual alternativa para que a mente humana possa alçar vôos sem limites e plainar acima da realidade com um olhar de acuidade como de uma águia para, ao descer, capturar a preza nefasta do preconceito, da dor inesperada, da frustração sem sentido, da indiferença sem culpa, da música não tocada, do beijo que não fora dado, da verdadeira trepada que nunca acontecera.
Meu olhar sobre o cinema é como o olhar de Hermes e Exú que quer interpretar para as gerações vindouras o simbólico da arte maior. Parabéns, Cinema! Que seu espírito perpasse o Tempo e traga-nos de volta o possível verdadeiro...