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sexta-feira, 2 de outubro de 2015

Virginia Wolf: A Melancolia em As Horas, o filme.




     

Dra. Isabelle Carolina Moreira Gonçalves
Estudante de Filosofia da UFBA, integrante do grupo de estudos: Tempo e Melancolia da  Alteridade do Prof. Lourenço Leite


 À medida que o mundo está envelhecendo, o homem vem a cada dia se distanciando mais e mais das suas origens. Apesar da modernização do mundo ter trazido evoluções imensuráveis para a vida humana, ela também nos deixou uma marca como herança e que é perceptível até hoje. O início da modernidade é marcado pelos avanços da ciência como tal concebemos hoje, pelo rompimento com a Igreja Católica, a supervalorização da razão humana, e, sobretudo pela morte de Deus. O deus do mundo passa ser o próprio homem, e a sua razão o norte guiador de suas ações. O homem está condenado a si mesmo, não há mais um legislador senão ele mesmo. Sem dúvidas alguma, a decorrência dessa morte de Deus na modernidade é a melancolia. Hélène Prigent em sua obra Mélancolie dissera que a melancolia é atribuída ao homem desde o princípio da humanidade: “o surgimento da melancolia coincide com as primeiras definições do homem enunciado pelos pensadores gregos. Após uma busca para determinar as leis e os princípios que regem a natureza, eles voltam-se para o indivíduo para defini-lo”. Ao decorrer da história ocidental a melancolia adquiriu diversas concepções, mas é na modernidade que ela ganha força que outrora não tinha, porque agora o homem está sozinho. A melancolia na modernidade é diferente, é o vazio.

    O que vem acontecendo é que esse distanciar-se das nossas origens enquanto humanidade tem brotado uma espécie de nostalgia melancólica, uma saudade que não se sabe de quê. Verifica-se no mundo atual um esvaziamento do sentido de vida, vejamos as ações cotidianas elas parecem tão banais, as relações humanas têm sido cada vez mais vazias, a humanidade tem primado a homogeneidade. O homem ocidental tem se tornado cada dia mais individual solitário, indiferente ao outro, a vida tornou-se apressada, e a sensação que vivenciamos é que o tempo parece estar passando mais depressa.
     A melancolia nesses moldes contemporâneos é brilhantemente representada no filme estadunidense As Horas. O filme As Horas é baseado no livro homônimo de Michael Cunninghan que relata a história de três mulheres separadas pelo tempo e espaço mais interligadas por um mesmo sentimento. Marilena Chauí em O Convite a filosofia afirmara que “como o livro, o cinema tem o poder extraordinário, próprio da obra de arte, de tornar presente o ausente, próximo o distante, distante o próximo, entrecruzando realidade e irrealidade, verdade e fantasia, reflexão e devaneio”, e basicamente é dessa maneira que se comporta a película, que mistura biografia com ficção que se confunde de maneira agradável ao ponto que não são saberia distinguir realidade e ficção entretendo o telespectador convidando-o a sentir a melancolia na pele. Certa vez o grande cineasta Hitchcock disse: “Filmes são a vida, com todas as partes chatas cortadas, no caso de As Horas eu diria que é o drama existencial sem recortes.
     Algumas pessoas apontam o filme como um retrato da depressão e do isolamento, ou até mesmo da bipolaridade como esse distúrbio psicológico que tanto se fala hoje em dia, mas diria que essa seria uma leitura que não conseguiu apreender a complexidade da essência do filme. As Horas é o entrelaçar de três histórias de mulheres diferentes onde o ponto de encontro é o romance Mrs. Dalloway, da escritora britânica Virginia Wolf. Esse seria o motivo secundário, entretanto o que essencialmente o que há de comum entre as três mulheres é sentimento de angústia e a constante busca humana de sentido da vida. O mais peculiar desse filme é que consegue retratar a vida cotidiana como grande tema de arte. A película é sem dúvida uma exposição poética e também filosófica, de um mal que abatendo o mundo hodierno: o vazio existencial.
     O filme é passado em três épocas diferentes, mostrando o acordar das três mulheres distintas em uma mesma realidade, descrevendo cenas triviais do cotidiano das três. Por ser uma película baseada na obra de Virginia Woolf é interessante ressaltar o encantamento que a escritora via no despertar pela manhã, ela dizia que a vida é um sonho e é o acordar que nos mata, portanto não poderia começar de outra forma senão essa. O filme inicia sua exposição retratando o momento de criação da literária Virginia Woolf, em 1923, nos seus primeiros vestígios de sua grande obra o livro Mrs. Dalloway que servirá como ponto de encontro entre as outras duas histórias. Assim como uma mãe que sente dores de contração antes de dar à luz a um filho, Virginia é consumida pela sua criação, por ser tomada de uma complexa reflexão que remete a sua própria maneira de viver.
     Virginia Woolf foi uma grande escritora britânica na década de 30, considerada umas das maiores pensadoras feministas, por ser umas das primeiras a demonstrar o mundo feminino numa roupagem moderna para sua época, além de ser basicamente uma das poucas mulheres no mundo literário predominantemente masculino. Virginia sem dúvida era aquele gênio como Aristóteles atribuiu o caráter melancólico ao homem de gênio, possuidor de uma imaginação fecunda, sendo até por vezes considerada louco.  No livro de Prigent A melancolia e suas metamorfoses há uma passagem que define o gênio melancólico da seguinte forma: "Aqueles cuja inteligência é muito aguda e penetrante caem facilmente na melancolia, pela razão que eles têm gestos espertos e que eles são toda premeditação e imaginação" (apud PRIGENT, 2005).  As suas ideias foram consideradas além de seu tempo, em uma época onde a existência da mulher é tida como apêndice do homem, sendo toda vida resumida em função do outro. A vida da mulher resumia-se em casar-se, ser uma boa esposa, cuidar do marido, dos filhos, e da casa. Deste modo a existência de ser humano que se revela na subjetividade é suprimida, esvaziando o sentido de viver. Woolf é apontada como aquela que deu um grito de descontentamento, revelando-o assim o ser da mulher, o ser humano independente de gênero. Revelando um mundo de mulheres encarceradas em seu mundo solitário, incompreendidas, sufocadas pelo desejo de querer libertar-se o seu verdadeiro eu. No filme a escritora inglesa foi muito bem interpretada pela atriz Nicole Kidman ao qual lhe rendeu o Oscar de melhor atriz em 2003.
     A vida de Virginia entrelaça-se com a de Laura Brown. O drama de Laura (Juliane Moore) é passado em Los Angeles em 1951, uma mulher dona de casa, casada, gestante do seu segundo filho, tomada pelo desespero de levar uma vida superficial. Muitos diriam que a vida que Laura levava seria um ideal de muitas mulheres de sua época, isso é perceptível na cena em que Laura recebe a visita de sua vizinha Kitty Barlowe. Nessa cena é sutilmente exposta a hipocrisia da sociedade em sustentar felicidades aparentes. Laura recebe a visita de Kitty e no meio da conversa há um momento em que Kitty desmorona e chora admitindo para Laura a sua impossibilidade biológica de gerar filhos e culpa de uma mulher reprimida pela necessidade de atestar seu papel como mulher na gestação. Em contraste estaria Laura ouvindo todo aquele desabafo, grávida de seu segundo filho, esposa de um homem satisfeito e feliz enquanto que ela possuia tudo aquilo que muitas mulheres almejavam, ela não encontrava nenhum sentido naquela vida.
     Laura Brown configura-se perfeitamente naquilo que Kierkegaard definiu como desespero. O filósofo dinamarquês defendia em sua obra O desespero humano que o homem nada mais é do que a junção de corpo (matéria) e espírito. O espírito o é eu, responsável por definir o sujeito. Posto isto, a maior tarefa existencial humana está em fazer a síntese, que é viver equilibradamente nessas polaridades. O eu é tudo aquilo que nos torna subjetivos, tais como as vontades, os desejos, o modo de pensar, ou até mesmo a verdade que vivemos. Quando o ser humano não assume o seu eu, se permitindo que ele seja moldado pelo mundo exterior, ou pelos moldes da sociedade, é aí que a face da sua subjetividade confunde-se na multidão dos outros. É quando o eu perde justamente aquilo que define o indivíduo, que é a subjetividade humana. O homem que deixa perder a sua subjetividade é uma das formas evidentes do desespero.
      Laura desespera-se diante de toda essa superficialidade, aquela rotina, aquele ofício de esposa não lhe pertencia, ela não se sentia pertencente a tudo isso, sobretudo diante da demonstração de afeto do filho e do marido que lhe trazia um sentimento de culpa mediante a angústia que ela sentia por não pertencer àquela vida. A uma pessoa que leva uma vida que não lhe apraz as horas se tornam um pesar, e a rotina um passatempo indiferente. A problemática da alteridade é ilustrada na relação de Laura com o seu filho Richard que na sua infância por mais que fosse ainda tão criança, ele foi sensível o suficiente para perceber um estranhamento da relação dos dois e o esforço constante da mãe em inseri-lo no cotidiano e na vida dela, tentando não transmitir para ele aquilo que assolava a sua mente. O sentimento ao ver As horas é de silêncio, é o momento em que percebemos a impossibilidade de compreender o sentimento do outro em sua totalidade, porque o outro é inalcançável.
                            

     O desespero, assim como afirmou Kierkegaard é a doença mortal, doença que aflige o homem e pode leva-lo à morte. A morte não no sentido literal da palavra, mas morte no sentido que aniquila o viver, porque o homem desesperado não consegue viver uma vida plena enquanto não efetuar a síntese, que nada mais é do que assumir perseverante o seu eu. O desespero é um estado humano que denota o avanço desequilíbrio interiormente. O seu extremo caso pode levar ao suicídio. Laura era afligida por essa ideia. Ela planejou o seu suicídio semelhante a quem organiza as suas tarefas diárias. Ela refaz o bolo para o aniversário do marido, pega os remédios e coloca na bolsa, leva o filho na casa da vizinha, que chora muito ao se despedir da mãe, e então parte para o hotel, se tranca no quarto e lê um trecho de à Mrs. Dalloway que diz : “Seria relevante? Ela se perguntou andando em direção à Rua Bond. Seria relevante se ela inevitavelmente acabasse? Tudo aquilo deveria continuar sem ela? Ela ressentia ou não seria confortante crer que a morte terminaria com tudo absolutamente? É possível morrer. Sim é possível morrer”. Após a leitura ela desiste da ideia suicida, optando por viver. A essa imensurável possibilidade humana damos o nome de liberdade. O homem é livre de tal maneira que é capaz de decidir pela sua própria vida, por isso diria Sartre que o homem está condenado à liberdade, deste modo que a existência é angústia, e não há como ser de outra forma, porque o saber dessa infinidade de possibilidades nos remete a responsabilidade da existência e nos angustia.

                            
     O filme As horas é um filme que abarca todos os motivos que demonstram o pesar da existência. Há uma cena no filme que somos levados a pensar que até mesmo a racionalidade causa no homem um sentimento de angústia. A cena da morte do pássaro no jardim da casa da escritora alude a um dos mais antigos questionamentos do homem. Desde o princípio do pensamento humano, aquilo que define a atitude filosófica iniciou-se mediante a uma inquietação da vontade de saber do homem sobre sua gênese enquanto ser. Faz-nos lembrar da recorrente pergunta que o homem se faz há séculos “Quem somos? De onde viemos? Para onde iremos após a morte?”. Nessa cena em questão a sobrinha de Virginia que brincava no seu jardim depara-se com um pássaro morto, e se entristece perplexa perante o fato ocorrido, ela pergunta a Woolf “o que acontece depois de morrer?” e a tia responde “iremos para onde viemos”. Essa pergunta é tautológica que remete a outra pergunta- de onde viemos? - o que torna o argumento circular e sem um fim conclusivo. Diante dessa dificuldade somos levados a perceber que por mais que a razão seja capaz de responder uma infinidade de perguntas, ela algumas vezes cala-se diante dos mistérios da vida. Portanto como pode o homem racional por natureza não se angustiar por não ser capaz de responder questões que tanto o inquieta existencialmente?
               
    Outro ponto relevante a ser percebido nessa cena da morte do pássaro é que assim como a criança ao desvelar o mistério do mundo se espanta diante da realidade, do mesmo modo deve proceder à atividade filosófica, como dissera Platão em Teeteto “é absolutamente de um filósofo esse sentimento: espantar-se. A filosofia não terá outra origem...” (PLATÃO, Teeteto, 155 c8).
     Outra delicada e complexa controvérsia exposta no filme que deve ser pontuada aqui é o suicídio. O suicídio aparece enfaticamente na trama, e para abordar essa questão se faz fundamental relembramos do que foi proposto por Albert Camus em O Mito de Sísifo. Para Camus a problemática do suicídio é importante porque nos faz pensar se a vida vale ou não ser vivida. O suicídio nesse caso pode ser visto como a resposta que se dá a essa pergunta. O suicídio aparece concomitante nas três histórias do filme como sendo uma possível saída para essa questão existencial: a vida vale a pena ser vivida?  Camus problematizou essa delicada questão do suicídio quando sem titubear afirmou: “Só há um problema filosófico verdadeiramente sério: é o suicídio. Julgar se a vida merece ou não ser vivida, é responder a uma questão fundamental de filosofia”.
     Camus defende que essa questão sobre a vida valer a pena ou não é a mais crucial da filosofia, sendo as demais secundárias mediante a esta. A questão não é avaliar o caráter psicológico do suicida, mas sim levantar uma análise filosófica sobre a problemática da vida e do indivíduo. À luz do pensamento camusiano a atitude do ser humano que tira a sua própria vida não remete a não reflexão do ato, mas a partir do momento que se levanta essa hipótese de matar-se como uma possibilidade o homem já está sendo consumido por tal pensamento. A pessoa que tira a própria vida não quer dizer que ela não tenha encontrado sentido para a vida, isso pode ser um dos motivos também, e paradoxalmente alguém pode se suicidar por ter razões para viver e aquela vida que ela leve não seja de acordo com suas idealizações. Para o pensador argelino a grande verdade é que quem se mata admite que a vida não valha a pena de ser vivida. Confessa que se é ultrapassado pela vida e que a não compreende.
     E foi diante do absurdo da existência, que o personagem Richard confessa que já não há mais sentido para viver. Richard (Ed Harris) foi marcado por uma infância de estranhamento em relação à angústia da mãe Laura Brown, enquanto adulto levando uma vida debilitada por conta do hiv, assume para sua grande amiga Clarissa no dia do seu aniversário, que já não fazia mais sentido ele viver, que todos esses anos ele vivia por ela, mas a sua vida se perdera. O filme demonstra a indiferença dele no mundo, ao tempo, a vida se tornara absurdo, ele havia se tornado um estrangeiro no mundo. Ele se remete a Clarissa e diz “tudo no mundo. Tudo o que está confuso, da forma que se confunde agora, e eu fracassei” numa só frase ele sintetiza esse sentimento descrito por Camus como sendo uma confissão da incapacidade de forças para enfrentar a vida perante o absurdo que ela é.“Matar-se, em certo sentido (e tal como no melodrama), é confessar. É confessar que se é ultrapassado pela vida e que não a compreendemos. Não vamos, em todo caso, tão longe nas analogias: voltemos às palavras correntes. O suicídio é apenas a confissão de que a existência “não vale a pena”. Viver naturalmente, nunca é fácil. Continuamos a fazer os gestos que a existência ordena, por muitas razões, a primeira das quais é o hábito. Morrer voluntariamente implica reconhecermos, mesmo instintivamente, o caráter irrisório desse hábito, a ausência de qualquer razão profunda de viver, o caráter insensato dessa agitação cotidiana e a inutilidade do sofrimento.” (CAMUS,...).
     Clarissa Vaughan (que é a verdadeira Mrs. Dalloway) ao escutar as palavras de Richard e logo em seguida presencia o seu suicídio entra em choque, mais do que o sofrimento por ver a morte de um grande amigo que muito ela amava, mas por ver o quão banal pode ser a vida que levamos as ações, o cotidiano perto da morte, que passamos toda uma vida idealizando, vivendo por conta de outros, ostentando aparências de sermos fortes felizes, e quando por dentro as coisas podem não está indo bem. O sentimento de presenciarmos a morte é uma lembrança da vida, porque dialeticamente uma completa o sentido da outra. Só teme a morte quem ama a vida, e vê-la de perto nos faz lembrar-se da efemeridade que é a vida, e o próprio filme narra um momento em que Virginia é questionada pelo marido o “por que” da necessidade de fazer morrer a protagonista do seu romance Mrs Dalloway, e então ela responde fabulosamente que é necessário que alguém morra para quem está vivo possa dar valor a vida, para ilustrar essa passagem cito Camus em seu belíssimo questionamento: “Não amaremos talvez insuficientemente a vida? Já notou que só a morte desperta nossos sentimentos?”.
     O senhor da vida é o tempo. O tempo contabiliza a vida dentro dos anos, meses, dias, horas. O deus da melancolia é o tempo. O tempo nos faz pensar a cada segundo que se passa que somos humanos finitos, e que aquilo em que tanto prezamos que é a vida, ela é limitada. Um dos grandes filósofos que tratou da vida nesse viés melancólico foi Schopenhaeur, ele diria que “a vida é apenas a morte sendo evitada e adiada. (...) Cada vez que respiramos, afastamos a morte que nos ameaça e assim lutamos com ela a cada segundo.” (SCHOPENHAUER, Arthur, vol. 1, p.311.).
     Assim como Camus afirmou que viver nunca foi fácil, Schopenhauer foi um dos pensadores que compartilhavam dessa concepção, e enfaticamente afirmou que a vida é dor e sofrimento, e que a felicidade humana consiste no intervalo que tem entre um sofrimento e outro. Schopenhauer dizia que o homem é vontade de potência, e os seus desejos são ilimitados semelhantes a um balde furado que nunca o preenche, por conta disso passamos toda a vida em busca de felicidade tentando satisfazer as vontades e objetivos, sem sentido algum. Como pode o homem possuir uma vida em que o seu fim será a morte e ter vontade ilimitada? Logo viver é sofrer. A saída do homem ao sofrimento é aceitar essa condição existencial, encarrar a vida aceitando-a desta maneira, renunciando o mundo, assim torna-se o verdadeiramente livre o homem.
     Kierkegaard diria que a única forma de o homem tem de consolar-se dessa existência angustiante é viver na esfera do presente, é ter a plena consciência de sua vida passageira neste mundo e viver o infinito. Viver o infinito pode nos parecer estranhos num primeiro momento, mas o que ele quis dizer é que o infinito se faz no agora, o agora é o único momento que podemos de fato aproveita-lo. “O tempo é, portanto, a sucessão infinita; a vida que apenas está no tempo e só pertence ao tempo não tem nenhum presente. É verdade de que se costuma, às vezes, para definir a vida sensual, dizer que ela é (vivida) no instante e somente no instante... O presente é o eterno ou, mais corretamente, o eterno é o presente, e o presente é o pleno.” (KIERKEGAARD, 2010, p. 94).
     O tempo é inexorável. Ele não retrocede, o passado se torna impossível por cada segundo que se passa, e o futuro um mar de incertezas para o homem. Sobre essa questão do tempo e da vida Nietzsche escreveu em Gaia e Ciência um trecho que causa uma profunda reflexão:
“O maior dos pesos- e se um dia, ou à noite, um demônio lhe aparecesse furtivamente em sua mais desolada solidão e dissesse: ‘Esta vida, como você a está vivendo e já viveu, você terá de viver mais uma vez e por incontáveis vezes; e nada haverá de novo nela, mas cada dor e cada prezar e cada suspiro e pensamento, e tudo o que é inefavelmente grande e pequeno em sua vida, terão de lhe suceder novamente, tudo na mesma sequência e ordem- e assim também essa aranha e esse luar entre as arvores, e também esse instante e eu mesmo. A perene ampulheta do existir será sempre virada novamente- e você com ela, partícula de poeira! ’. – Você não se prostraria e rangeria os dentes e amaldiçoaria o demônio que assim falou? Ou você já experimentou um instante imenso no qual lhe responderia: “Você é um deus e jamais ouvi coisa tão divina”!”. Se esse pensamento tomasse conta de você, tal como você é, ele o transformaria e o esmagaria talvez; a questão em tudo e em cada coisa, “Você quer isso mais uma vez incontáveis vezes?”, pesaria sobre seus atos como o maior dos pesos! “Ou quanto você teria de estar bem consigo mesmo e com a vida para não desejar nada além dessa última, eterna confirmação e chancela” (NIETZSCHE, Friedrich, Gaia Ciência, 341).
     Portanto, mais importante do que viver toda uma vida buscando um sentido para ela, e vivê-la. A vida não tem sentido. É preciso aceitar o absurdo, e encara-la de frente, com coragem.  Se a vida não tem sentido, e somos livres, vamos então dar o sentido que quisermos a ela. Somos então responsáveis por nossa existência, somos o artista e a vida a nossa obra de arte.
     Virginia transpôs para sua obra toda a inquietude de sua alma e sua visão sobre a vida humana. A intensidade da sua criação lhe sucumbiu, e se você olha demais para o abismo, o abismo olha para você. O sobrinho de Virginia Quentin Bell escreveu a biografia da vida, e narrou o seu suicídio de forma poética e disseNa manhã de sexta-feira, 28 de março, um dia claro, luminoso e frio, Virginia foi como de costume ao seu estúdio no jardim. Lá, escreveu duas cartas e atravessou os prados até o rio. Deixando a bengala na margem, ela esforçou-se para pôr uma grande pedra no bolso do casaco. Depois encaminhou-se para a morte”. A problemática da vida e da morte lhe consumiu, e ela então optou por não mais viver. O intrigante é como ela se matou, colocando pedras no seu casaco e imergindo no rio, afogando-se. O peso da sua existência levou-a a morte. Os poetas são grandiosos por conseguirem de maneira lúdica e simples dizer em poucas palavras aquilo que os filósofos se esmeram para expressar. Diante dessa exposição, deixo-lhes como a conclusão a carta que Virginia dedicou ao seu marido Leonard, que poderia dizer que além de uma carta de despedida da vida é um poema existencial que sintetiza de forma belíssima tudo quanto foi dito.
Querido Leonard, é preciso enfrentar a vida de frente, sempre enfrentar a vida de frente... e conhecê-la pelo que é. Finalmente conhece-la... amá-la pelo que é, e então deixa-la de lado. Leonard... sempre os anos entre a gente. Sempre os anos, sempre... o amor. Sempre... as horas”.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

·       NIETZSCHE, Friedrich. A gaia e a ciência. (tradução de Paulo César de Souza). São Paulo: Companhia das Letras, 1ª ed. 2001.
·     KIERKEGAARD, SöerenAabye. Diário de um sedutor; Temor e Tremor; O desespero humano. Trad.: Carlos Grifo, Maria J. Marinho; Adolfo C. Monteiro. In. Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1979.
·       SARTRE, Jean-Paul, O existencialismo é um humanismo. 3° ed., São Paulo, Nova Cultural, 1987.
·       YALOM, Irvin. A cura de Schopenhauer. (tradução de Beatriz Horta). Rio de Janeiro: Ediouro, 2006.- 2° revista.
·       Platão, Teeteto. Tradução de Adriana Manuela Nogueira e Marcelo Boeri. Digitalizado por: A.F.A.O. 3° edição. Fundação Calouste Gulbenkian. Disponível em < http://charlezine.com.br/wp-content/uploads/Teeteto-Platão.pdf>. Acesso em 12 agosto, 2015, 17h47min.
·       LOURENÇO, Leite. A filosofia no cinema da Melancolia. Disponível em < http:// http://tempomelancolia.blogspot.com.br/2013/08/a-filosofia-no-cinema-da-melancolia.html >. Acesso em 12 de agosto, 2015, 15h39min.

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