Dra. Isabelle
Carolina Moreira Gonçalves
Estudante de Filosofia da UFBA, integrante do grupo de estudos: Tempo e Melancolia da Alteridade do Prof. Lourenço Leite
À medida que o mundo está envelhecendo, o
homem vem a cada dia se distanciando mais e mais das suas origens. Apesar da
modernização do mundo ter trazido evoluções imensuráveis para a vida humana,
ela também nos deixou uma marca como herança e que é perceptível até hoje. O
início da modernidade é marcado pelos avanços da ciência como tal concebemos
hoje, pelo rompimento com a Igreja Católica, a supervalorização da razão
humana, e, sobretudo pela morte de Deus. O deus do mundo passa ser o próprio
homem, e a sua razão o norte guiador de suas ações. O homem está condenado a si
mesmo, não há mais um legislador senão ele mesmo. Sem dúvidas alguma, a
decorrência dessa morte de Deus na modernidade é a melancolia. Hélène Prigent em
sua obra Mélancolie dissera que a
melancolia é atribuída ao homem desde o princípio da humanidade: “o surgimento
da melancolia coincide com as primeiras definições do homem enunciado pelos
pensadores gregos. Após uma busca para determinar as leis e os princípios que
regem a natureza, eles voltam-se para o indivíduo para defini-lo”. Ao decorrer
da história ocidental a melancolia adquiriu diversas concepções, mas é na
modernidade que ela ganha força que outrora não tinha, porque agora o homem
está sozinho. A melancolia na modernidade é diferente, é o vazio.
O que vem acontecendo é que esse distanciar-se
das nossas origens enquanto humanidade tem brotado uma espécie de nostalgia
melancólica, uma saudade que não se sabe de quê. Verifica-se no mundo atual um
esvaziamento do sentido de vida, vejamos as ações cotidianas elas parecem tão
banais, as relações humanas têm sido cada vez mais vazias, a humanidade tem
primado a homogeneidade. O homem ocidental tem se tornado cada dia mais
individual solitário, indiferente ao outro, a vida tornou-se apressada, e a
sensação que vivenciamos é que o tempo parece estar passando mais depressa.
A melancolia nesses moldes contemporâneos
é brilhantemente representada no filme estadunidense As Horas. O filme As Horas
é baseado no livro homônimo de Michael Cunninghan que relata a história de três
mulheres separadas pelo tempo e espaço mais interligadas por um mesmo
sentimento. Marilena Chauí em O Convite a
filosofia afirmara que “como o livro, o cinema tem o poder extraordinário,
próprio da obra de arte, de tornar presente o ausente, próximo o distante,
distante o próximo, entrecruzando realidade e irrealidade, verdade e fantasia,
reflexão e devaneio”, e basicamente é dessa maneira que se comporta a película,
que mistura biografia com ficção que se confunde de maneira agradável ao ponto
que não são saberia distinguir realidade e ficção entretendo o telespectador
convidando-o a sentir a melancolia na pele. Certa vez o grande cineasta Hitchcock
disse: “Filmes são a vida, com todas as partes chatas cortadas”, no caso de As Horas eu diria que é o drama
existencial sem recortes.
Algumas pessoas apontam o filme como um
retrato da depressão e do isolamento, ou até mesmo da bipolaridade como esse
distúrbio psicológico que tanto se fala hoje em dia, mas diria que essa seria uma
leitura que não conseguiu apreender a complexidade da essência do filme. As Horas é o entrelaçar de três
histórias de mulheres diferentes onde o ponto de encontro é o romance Mrs.
Dalloway, da escritora britânica Virginia Wolf. Esse seria o motivo secundário,
entretanto o que essencialmente o que há de comum entre as três mulheres é sentimento
de angústia e a constante busca humana de sentido da vida. O mais peculiar
desse filme é que consegue retratar a vida
cotidiana como grande tema de arte. A película é sem dúvida uma exposição
poética e também filosófica, de um mal que abatendo
o mundo hodierno: o vazio existencial.
O filme é passado em três épocas diferentes,
mostrando o acordar das três mulheres distintas em uma mesma realidade, descrevendo
cenas triviais do cotidiano das três. Por ser uma película baseada na obra de
Virginia Woolf é interessante ressaltar o encantamento que a escritora via no
despertar pela manhã, ela dizia que a vida é um sonho e é o acordar que nos
mata, portanto não poderia começar de outra forma senão essa. O filme inicia
sua exposição retratando o momento de criação da literária Virginia Woolf, em
1923, nos seus primeiros vestígios de sua grande obra o livro Mrs. Dalloway que
servirá como ponto de encontro entre as outras duas histórias. Assim como uma
mãe que sente dores de contração antes de dar à luz a um filho, Virginia é
consumida pela sua criação, por ser tomada de uma complexa reflexão que remete
a sua própria maneira de viver.
Virginia Woolf foi uma grande escritora
britânica na década de 30, considerada umas das maiores pensadoras feministas, por
ser umas das primeiras a demonstrar o mundo feminino numa roupagem moderna para
sua época, além de ser basicamente uma das poucas mulheres no mundo literário
predominantemente masculino. Virginia sem dúvida era aquele gênio como Aristóteles
atribuiu o caráter melancólico ao homem de gênio, possuidor de uma imaginação
fecunda, sendo até por vezes considerada louco.
No livro de Prigent A melancolia e
suas metamorfoses há uma passagem que define o gênio melancólico da
seguinte forma: "Aqueles cuja
inteligência é muito aguda e penetrante caem facilmente na melancolia, pela
razão que eles têm gestos espertos e que eles são toda premeditação e
imaginação" (apud PRIGENT, 2005). As suas ideias foram consideradas além de seu
tempo, em uma época onde a existência da mulher é tida como apêndice do homem,
sendo toda vida resumida em função do outro. A vida da mulher resumia-se em
casar-se, ser uma boa esposa, cuidar do marido, dos filhos, e da casa. Deste
modo a existência de ser humano que se revela na subjetividade é suprimida,
esvaziando o sentido de viver. Woolf é apontada como aquela que deu um grito de
descontentamento, revelando-o assim o ser da mulher, o ser humano independente
de gênero. Revelando um mundo de mulheres encarceradas em seu mundo solitário,
incompreendidas, sufocadas pelo desejo de querer libertar-se o seu verdadeiro
eu. No filme a escritora inglesa foi muito bem interpretada pela atriz Nicole
Kidman ao qual lhe rendeu o Oscar de melhor atriz em 2003.
A vida de Virginia entrelaça-se com a de
Laura Brown. O drama de Laura (Juliane Moore) é passado em Los Angeles em 1951,
uma mulher dona de casa, casada, gestante do seu segundo filho, tomada pelo
desespero de levar uma vida superficial. Muitos diriam que a vida que Laura
levava seria um ideal de muitas mulheres de sua época, isso é perceptível na
cena em que Laura recebe a visita de sua vizinha Kitty Barlowe. Nessa cena é
sutilmente exposta a hipocrisia da sociedade em sustentar felicidades
aparentes. Laura recebe a visita de Kitty e no meio da conversa há um momento
em que Kitty desmorona e chora admitindo para Laura a sua impossibilidade
biológica de gerar filhos e culpa de uma mulher reprimida pela necessidade de
atestar seu papel como mulher na gestação. Em contraste estaria Laura ouvindo
todo aquele desabafo, grávida de seu segundo filho, esposa de um homem
satisfeito e feliz enquanto que ela possuia tudo aquilo que muitas mulheres
almejavam, ela não encontrava nenhum sentido naquela vida.
Laura Brown configura-se perfeitamente naquilo
que Kierkegaard definiu como desespero. O filósofo dinamarquês defendia em sua
obra O desespero humano que o homem
nada mais é do que a junção de corpo (matéria) e espírito. O espírito o é eu,
responsável por definir o sujeito. Posto isto, a maior tarefa existencial
humana está em fazer a síntese, que é viver equilibradamente nessas
polaridades. O eu é tudo aquilo que nos torna subjetivos, tais como as
vontades, os desejos, o modo de pensar, ou até mesmo a verdade que vivemos.
Quando o ser humano não assume o seu eu, se permitindo que ele seja moldado
pelo mundo exterior, ou pelos moldes da sociedade, é aí que a face da sua subjetividade
confunde-se na multidão dos outros. É quando o eu perde justamente aquilo que
define o indivíduo, que é a subjetividade humana. O homem que deixa perder a
sua subjetividade é uma das formas evidentes do desespero.
Laura desespera-se diante de toda essa
superficialidade, aquela rotina, aquele ofício de esposa não lhe pertencia, ela
não se sentia pertencente a tudo isso, sobretudo diante da demonstração de
afeto do filho e do marido que lhe trazia um sentimento de culpa mediante a
angústia que ela sentia por não pertencer àquela vida. A uma pessoa que leva
uma vida que não lhe apraz as horas se tornam um pesar, e a rotina um
passatempo indiferente. A problemática da alteridade é ilustrada na relação de
Laura com o seu filho Richard que na sua infância por mais que fosse ainda tão
criança, ele foi sensível o suficiente para perceber um estranhamento da
relação dos dois e o esforço constante da mãe em inseri-lo no cotidiano e na
vida dela, tentando não transmitir para ele aquilo que assolava a sua mente. O
sentimento ao ver As horas é de
silêncio, é o momento em que percebemos a impossibilidade de compreender o
sentimento do outro em sua totalidade, porque o outro é inalcançável.
O desespero, assim como afirmou Kierkegaard
é a doença mortal, doença que aflige o homem e pode leva-lo à morte. A morte
não no sentido literal da palavra, mas morte no sentido que aniquila o viver,
porque o homem desesperado não consegue viver uma vida plena enquanto não
efetuar a síntese, que nada mais é do que assumir perseverante o seu eu. O desespero
é um estado humano que denota o avanço desequilíbrio interiormente. O seu extremo
caso pode levar ao suicídio. Laura era afligida por essa ideia. Ela planejou o
seu suicídio semelhante a quem organiza as suas tarefas diárias. Ela refaz o bolo para o aniversário do marido, pega os remédios
e coloca na bolsa, leva o filho na casa da vizinha, que chora muito ao se
despedir da mãe, e então parte para o hotel, se tranca no quarto e lê um trecho
de à Mrs. Dalloway que diz : “Seria
relevante? Ela se perguntou andando em direção à Rua Bond. Seria relevante se
ela inevitavelmente acabasse? Tudo aquilo deveria continuar sem ela? Ela
ressentia ou não seria confortante crer que a morte terminaria com tudo
absolutamente? É possível morrer. Sim é possível morrer”. Após a leitura
ela desiste da ideia suicida, optando por viver. A essa imensurável
possibilidade humana damos o nome de liberdade. O homem é livre de tal maneira
que é capaz de decidir pela sua própria vida, por isso diria Sartre que o homem
está condenado à liberdade, deste modo que a existência é angústia, e não há
como ser de outra forma, porque o saber dessa infinidade de possibilidades nos
remete a responsabilidade da existência e nos angustia.
O filme As horas é um filme que abarca todos os motivos que demonstram o
pesar da existência. Há uma cena no filme que somos levados a pensar que até
mesmo a racionalidade causa no homem um sentimento de angústia. A cena da morte
do pássaro no jardim da casa da escritora alude a um dos mais antigos
questionamentos do homem. Desde o princípio do pensamento humano, aquilo que
define a atitude filosófica iniciou-se mediante a uma inquietação da vontade de
saber do homem sobre sua gênese enquanto ser. Faz-nos lembrar da recorrente pergunta
que o homem se faz há séculos “Quem somos? De onde viemos? Para onde iremos
após a morte?”. Nessa cena em questão a sobrinha de Virginia que brincava no
seu jardim depara-se com um pássaro morto, e se entristece perplexa perante o
fato ocorrido, ela pergunta a Woolf “o
que acontece depois de morrer?” e a tia responde “iremos para onde viemos”. Essa pergunta é tautológica que remete a
outra pergunta- de onde viemos? - o que torna o argumento circular e sem um fim
conclusivo. Diante dessa dificuldade somos levados a perceber que por mais que
a razão seja capaz de responder uma infinidade de perguntas, ela algumas vezes cala-se
diante dos mistérios da vida. Portanto como pode o homem racional por natureza
não se angustiar por não ser capaz de responder questões que tanto o inquieta
existencialmente?
Outro ponto relevante a ser percebido nessa
cena da morte do pássaro é que assim como a criança ao desvelar o mistério do
mundo se espanta diante da realidade, do mesmo modo deve proceder à atividade
filosófica, como dissera Platão em Teeteto “é absolutamente de um filósofo esse
sentimento: espantar-se. A filosofia não terá outra origem...” (PLATÃO,
Teeteto, 155 c8).
Outra delicada e complexa controvérsia exposta no filme que deve ser pontuada aqui é o
suicídio. O suicídio aparece enfaticamente na trama, e para abordar essa
questão se faz fundamental relembramos do que foi proposto por Albert Camus em O Mito
de Sísifo. Para Camus a problemática do suicídio é importante porque nos
faz pensar se a vida vale ou não ser vivida. O suicídio nesse caso pode ser
visto como a resposta que se dá a essa pergunta. O suicídio aparece
concomitante nas três histórias do filme como sendo uma possível saída para
essa questão existencial: a vida vale a pena ser vivida? Camus problematizou essa delicada questão do
suicídio quando sem titubear afirmou: “Só há um problema filosófico
verdadeiramente sério: é o suicídio. Julgar se a vida merece ou não ser vivida,
é responder a uma questão fundamental de filosofia”.
Camus defende que essa questão sobre a
vida valer a pena ou não é a mais crucial da filosofia, sendo as demais
secundárias mediante a esta. A questão não é avaliar o caráter psicológico do
suicida, mas sim levantar uma análise filosófica sobre a problemática da vida e
do indivíduo. À luz do pensamento camusiano a atitude do ser humano que tira a
sua própria vida não remete a não reflexão do ato, mas a partir do momento que
se levanta essa hipótese de matar-se como uma possibilidade o homem já está
sendo consumido por tal pensamento. A pessoa que tira a própria vida não quer
dizer que ela não tenha encontrado sentido para a vida, isso pode ser um dos
motivos também, e paradoxalmente alguém pode se suicidar por ter razões para
viver e aquela vida que ela leve não seja de acordo com suas idealizações. Para
o pensador argelino a grande verdade é que quem se mata admite que a vida não valha
a pena de ser vivida. Confessa que se é ultrapassado pela vida e que a não
compreende.
E foi diante do absurdo da existência, que
o personagem Richard confessa que já não há mais sentido para viver. Richard
(Ed Harris) foi marcado por uma infância de estranhamento em relação à angústia
da mãe Laura Brown, enquanto adulto levando uma vida debilitada por conta do hiv,
assume para sua grande amiga Clarissa no dia do seu aniversário, que já não
fazia mais sentido ele viver, que todos esses anos ele vivia por ela, mas a sua
vida se perdera. O filme demonstra a indiferença dele no mundo, ao tempo, a
vida se tornara absurdo, ele havia se tornado um estrangeiro no mundo. Ele se
remete a Clarissa e diz “tudo no mundo. Tudo
o que está confuso, da forma que se confunde agora, e eu fracassei” numa só
frase ele sintetiza esse sentimento descrito por Camus como sendo uma confissão
da incapacidade de forças para enfrentar a vida perante o absurdo que ela é.“Matar-se, em
certo sentido (e tal como no melodrama), é confessar. É confessar que se é
ultrapassado pela vida e que não a compreendemos. Não vamos, em todo caso, tão
longe nas analogias: voltemos às palavras correntes. O suicídio é apenas a
confissão de que a existência “não vale a pena”. Viver naturalmente, nunca é
fácil. Continuamos a fazer os gestos que a existência ordena, por muitas
razões, a primeira das quais é o hábito. Morrer voluntariamente implica
reconhecermos, mesmo instintivamente, o caráter irrisório desse hábito, a
ausência de qualquer razão profunda de viver, o caráter insensato dessa
agitação cotidiana e a inutilidade do sofrimento.” (CAMUS,...).
Clarissa Vaughan (que é a verdadeira Mrs.
Dalloway) ao escutar as palavras de Richard e logo em seguida presencia o seu
suicídio entra em choque, mais do que o sofrimento por ver a morte de um grande
amigo que muito ela amava, mas por ver o quão banal pode ser a vida que levamos
as ações, o cotidiano perto da morte, que passamos toda uma vida idealizando,
vivendo por conta de outros, ostentando aparências de sermos fortes felizes, e
quando por dentro as coisas podem não está indo bem. O sentimento de
presenciarmos a morte é uma lembrança da vida, porque dialeticamente uma
completa o sentido da outra. Só teme a morte quem ama a vida, e vê-la de perto
nos faz lembrar-se da efemeridade que é a vida, e o próprio filme narra um
momento em que Virginia é questionada pelo marido o “por que” da necessidade de
fazer morrer a protagonista do seu romance Mrs Dalloway, e então ela responde fabulosamente que é necessário que alguém morra para quem está vivo
possa dar valor a vida, para ilustrar essa passagem cito Camus em seu belíssimo
questionamento: “Não amaremos talvez insuficientemente a vida? Já notou que só
a morte desperta nossos sentimentos?”.
O senhor da vida é o tempo. O tempo
contabiliza a vida dentro dos anos, meses, dias, horas. O deus da melancolia é
o tempo. O tempo nos faz pensar a cada segundo que se passa que somos humanos
finitos, e que aquilo em que tanto prezamos que é a vida, ela é limitada. Um
dos grandes filósofos que tratou da vida nesse viés melancólico foi
Schopenhaeur, ele diria que “a vida é
apenas a morte sendo evitada e adiada. (...) Cada vez que respiramos, afastamos
a morte que nos ameaça e assim lutamos com ela a cada segundo.” (SCHOPENHAUER,
Arthur, vol. 1, p.311.).
Assim como Camus afirmou que viver nunca
foi fácil, Schopenhauer foi um dos pensadores que compartilhavam dessa
concepção, e enfaticamente afirmou que a vida é dor e sofrimento, e que a
felicidade humana consiste no intervalo que tem entre um sofrimento e outro. Schopenhauer
dizia que o homem é vontade de potência, e os seus desejos são ilimitados
semelhantes a um balde furado que nunca o preenche, por conta disso passamos
toda a vida em busca de felicidade tentando satisfazer as vontades e objetivos,
sem sentido algum. Como pode o homem possuir uma vida em que o seu fim será a
morte e ter vontade ilimitada? Logo viver é sofrer. A saída do homem ao
sofrimento é aceitar essa condição existencial, encarrar a vida aceitando-a
desta maneira, renunciando o mundo, assim torna-se o verdadeiramente livre o
homem.
Kierkegaard diria que a única forma de o
homem tem de consolar-se dessa existência angustiante é viver na esfera do
presente, é ter a plena consciência de sua vida passageira neste mundo e viver
o infinito. Viver o infinito pode nos parecer estranhos num primeiro momento,
mas o que ele quis dizer é que o infinito se faz no agora, o agora é o único
momento que podemos de fato aproveita-lo. “O tempo é, portanto, a sucessão
infinita; a vida que apenas está no tempo e só pertence ao tempo não tem nenhum
presente. É verdade de que se costuma, às vezes, para definir a vida sensual,
dizer que ela é (vivida) no instante e somente no instante... O presente é o
eterno ou, mais corretamente, o eterno é o presente, e o presente é o pleno.” (KIERKEGAARD, 2010, p. 94).
O tempo é inexorável. Ele não retrocede, o
passado se torna impossível por cada segundo que se passa, e o futuro um mar de
incertezas para o homem. Sobre essa questão do tempo e da vida Nietzsche
escreveu em Gaia e Ciência um trecho
que causa uma profunda reflexão:
“O
maior dos pesos- e se um dia, ou à noite, um demônio lhe aparecesse
furtivamente em sua mais desolada solidão e dissesse: ‘Esta vida, como você a
está vivendo e já viveu, você terá de viver mais uma vez e por incontáveis
vezes; e nada haverá de novo nela, mas cada dor e cada prezar e cada suspiro e
pensamento, e tudo o que é inefavelmente grande e pequeno em sua vida, terão de
lhe suceder novamente, tudo na mesma sequência e ordem- e assim também essa
aranha e esse luar entre as arvores, e também esse instante e eu mesmo. A
perene ampulheta do existir será sempre virada novamente- e você com ela,
partícula de poeira! ’. – Você não se prostraria e rangeria os dentes e
amaldiçoaria o demônio que assim falou? Ou você já experimentou um instante
imenso no qual lhe responderia: “Você é um deus e jamais ouvi coisa tão
divina”!”. Se esse pensamento tomasse conta de você, tal como você é, ele o
transformaria e o esmagaria talvez; a questão em tudo e em cada coisa, “Você
quer isso mais uma vez incontáveis vezes?”, pesaria sobre seus atos como o
maior dos pesos! “Ou quanto você teria de
estar bem consigo mesmo e com a vida para não desejar nada além dessa última,
eterna confirmação e chancela” (NIETZSCHE, Friedrich, Gaia Ciência, 341).
Portanto, mais importante do que viver
toda uma vida buscando um sentido para ela, e vivê-la. A vida não tem sentido.
É preciso aceitar o absurdo, e encara-la de frente, com coragem. Se a vida não tem sentido, e somos livres,
vamos então dar o sentido que quisermos a ela. Somos então responsáveis por
nossa existência, somos o artista e a vida a nossa obra de arte.
Virginia transpôs para sua obra toda a
inquietude de sua alma e sua visão sobre a vida humana. A intensidade da sua
criação lhe sucumbiu, e se você olha demais para o abismo, o abismo olha para
você. O sobrinho de Virginia Quentin Bell escreveu a biografia da vida, e narrou
o seu suicídio de forma poética e disse “Na manhã de sexta-feira, 28 de março, um dia claro, luminoso e frio,
Virginia foi como de costume ao seu estúdio no jardim. Lá, escreveu duas cartas
e atravessou os prados até o rio. Deixando a bengala na margem, ela esforçou-se
para pôr uma grande pedra no bolso do casaco. Depois encaminhou-se para a
morte”. A
problemática da vida e da morte lhe consumiu, e ela então optou por não mais
viver. O intrigante é como ela se matou, colocando pedras no seu casaco e
imergindo no rio, afogando-se. O peso da sua existência levou-a a morte. Os
poetas são grandiosos por conseguirem de maneira lúdica e simples dizer em
poucas palavras aquilo que os filósofos se esmeram para expressar. Diante dessa
exposição, deixo-lhes como a conclusão a carta que Virginia dedicou ao seu
marido Leonard, que poderia dizer que além de uma carta de despedida da vida é
um poema existencial que sintetiza de forma belíssima tudo quanto foi dito.
“Querido Leonard, é preciso enfrentar a vida
de frente, sempre enfrentar a vida de frente... e conhecê-la pelo que é.
Finalmente conhece-la... amá-la pelo que é, e então deixa-la de lado. Leonard...
sempre os anos entre a gente. Sempre os anos, sempre... o amor. Sempre... as
horas”.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
· NIETZSCHE, Friedrich.
A gaia e a ciência. (tradução de
Paulo César de Souza). São Paulo: Companhia das Letras, 1ª ed. 2001.
· KIERKEGAARD,
SöerenAabye. Diário de um sedutor; Temor
e Tremor; O desespero humano. Trad.: Carlos Grifo, Maria J. Marinho; Adolfo
C. Monteiro. In. Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1979.
· SARTRE,
Jean-Paul, O existencialismo é um humanismo. 3° ed., São Paulo, Nova Cultural,
1987.
· YALOM, Irvin. A
cura de Schopenhauer. (tradução de Beatriz Horta). Rio de Janeiro: Ediouro,
2006.- 2° revista.
· Platão, Teeteto.
Tradução de Adriana Manuela Nogueira e Marcelo Boeri. Digitalizado por:
A.F.A.O. 3° edição. Fundação Calouste Gulbenkian. Disponível em < http://charlezine.com.br/wp-content/uploads/Teeteto-Platão.pdf>. Acesso em
12 agosto, 2015, 17h47min.
· LOURENÇO, Leite.
A filosofia no cinema da Melancolia. Disponível em < http:// http://tempomelancolia.blogspot.com.br/2013/08/a-filosofia-no-cinema-da-melancolia.html >. Acesso em
12 de agosto, 2015, 15h39min.
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