(...) tenho de responder por outrem sem me
ocupar da responsabilidade dele para comigo. Relação sem correlação ou amor do
próximo que é amor sem Eros.
(De Deus que vem à idéia, E. Lévinas)
A força de Eros representada na mitologia grega quando
partícipe das potestades criadoras juntamente com Kaos, Géia e Tártaro, apesar
de estéril, é a energia mais descomunal para garantir que a matéria permaneça
unida. Por analogia, seria a energia atômica que garante a junção dos prótons
com os neutros para que a matéria seja viva e possa evoluir. Quando de sua
dispersão provocada pela explosão nuclear desencadeia a mais tenebrosa e
devastadora reação em cadeia do universo cósmico. O homem aprendeu pela via da
ciência a manipular essa força dispersora quando engendrou a bomba atômica.
Contudo a força originária cósmica recupera em segundos a reunião da matéria
com a sua energia vital. Todavia, as conseqüências no espaço/tempo são
avassaladoras e deixam seqüelas irreparáveis na natureza e no homem. Outrossim,
a responsabilidade ética perante Outrem deve estar presente como a priori no
seio das ciências e das relações humanas sem se preocupar ou esperar uma
reciprocidade dele para comigo, como bem afirma Lévinas em sua obra De Deus que
vem à Ideia. Diferentemente de Eros que expecta a mutualidade, o amor da marca
indelével da ancestralidade e da atualidade percebido pelo rosto do outro no
encontro da face-a-face, desencadeia a justiça que proporciona o Outro a ser
além da ontologicidade em que a relação se restringe apenas entre o Ente e o
Ser. É o amor sem concupiscência. Obtivemos uma falta de responsabilidade por
Outrem “como princípio de individuação humana é talvez, parafraseando Lévinas,
que Deus ajuda a ser responsável. (...) mas para merecer a ajuda de Deus, é
necessário querer fazer o que se impõe fazer sem sua ajuda”.
Lamentavelmente, em nossos dias atuais o “querer fazer sem
ajuda de Deus” fora do ateísmo salutar, potencializou-se o contrário: toda a
responsabilidade do agir moral está atrelada a participação de Deus, haja vista
o que se comete em nome Dele e supostamente com Sua ajuda. O Talibã e/ou o
Estado Islâmico anunciam suas atrocidades e seus assassinatos públicos fazendo
explodir prédios por meio de homens bombas ou jogando automóveis em meio a
multidões em diversas partes do mundo em nome de Alá, quando, antes de se
sacrificarem, gritam: Alá é Grande.
Similarmente, os neo-evangélicos oriundos da Igreja
Universal criada pelo magnata bilionário Edir Macedo que se propagaram por todo o
continente latino-americano, agem da mesma forma. Em nome de Jesus Cristo e de
uma doutrina evangélica completamente distorcida, difundem à seus fiéis
seguidores alienados a homofobia, a transfobia, a demonização do simbólico, a invasão
aos terreiros de candomblé e umbanda, a perseguição aos filhos e filhas de
santo, aos Babalorixás e as Yalorixás, a negação de Deus verdadeiro e de todos
os santos, de todos os Xamãs, dos curandeiros e das curandeiras, dos Pajés indígenas,
do espírito das águas, das montanhas, das entranhas da Terra, das benzedeiras,
das baianas de acarajé. Optaram por negar e execrar as tradições de seu próprio
povo donde herdaram a sabedoria, a fé oculta nos mistérios da natureza, da vida
e da morte. Abominam o vinho e toda sorte de bebida que contenha álcool e todo
tipo de comida de santo que contenha dendê. Contudo, praticam a profanação do que
deve ser preservado como sagrado, propagam em público nos transportes coletivos
e nas praças públicas heresias e cometem sacrilégios sem dó nem piedade. Elegem
vereadores, deputados e prefeitos corruptos sem nenhum traço ético e,
atualmente, preparam-se para eleger o presidente da República do Brasil. O liberalismo
capitalista insano e antiético se regozija com essa expansão de um povo
alienado tornando a moral cristã burguesa sua plataforma por excelência. A moral
com sua força estonteante detona e ofusca todo tipo de comportamento ético. Albert
Camus ao escrever uma das maiores e grandiosas obras da literatura universal do
século XX – O Estrangeiro denuncia a
supremacia da moral em detrimento da Ética ao demonstrar no julgamento do
protagonista Meursault o quão os membros da justiça e a igreja da época
representada pelo capelão do presídio não tinham a menor preocupação com a
morte do Árabe cometida por Meursault, mas, sobretudo, pela supervalorização
dos costumes morais que se deve chorar no velório de um ente familiar,
principalmente da mãe. Aquela da Argélia e essa nossa sociedade fortificam-se
pela égide da lei jurídica e dos mores culturais.
A justiça é divina por excelência, desde o mito grego até a
chegada dos Orixás e dos Inkisis e da Mama África. Xangô, o deus da Justiça,
garante espiritualmente a efetivação da justiça no meio humano, mas não
materialmente, como se costuma apregoar. É preciso aprender a praticar a
justiça no devir da existência, heraclitianamente pensando; aprender a se
deixar levar pela sophrosyne do ponto
de vista aristotélico; reconhecer e acolher o Outro semelhante em raça, em
etnias e em espécie como afirmara metafisicamente Emmanuel Lévinas em sua
filosofia da alteridade. A razão moderna habita sob o alpendre da existência. Não
sobe no telhado. A metafísica do ser do Outro está em cima do telhado, daí
precisar-se-á de uma escada que nos conduza a chegar até lá. A filosofia é a única
ciência que conduz o homem a subir até a esfera do Ser como tal onde se
encontra, igualmente, a Justiça que é a Ética e somente aí o Outro pode ser
alcançado. Logo, devido a inalcançabilidade do Outro por conta da limitação do
pensar, do reducionismo das ciências, da super valorização da moral o Outro
sempre é reduzido ao Mesmo e a repetição memorial se impõe a cada dia em todos
as esferas dos relacionamentos humanos.
É preciso aprender a morrer; é necessário aprender a
esquecer para que o novo brote do solo das consciências como a semente que
precisa cair na terra para morrer e depois nascer (João-12,24-25 = Em verdade,
em verdade vos digo: Se o grão de trigo que cai na terra não morrer, permanecerá
só; mas se morrer, produzirá muito fruto. Quem ama sua vida a perde e quem
odeia a sua vida neste mundo guardá-la-á para a vida eterna). Dever-se-á entrar
no reino de Plutão e de Omolú para que Deméter e Nanã efetuem a passagem da
semente velha para a semente nova. Sem se deixar cair na terra a semente da
existência continuará velha, sozinha e fenecerá. Dever-se-á acolher os refugiados
do absurdo, eles nos conduzirão à morte de nossas idiossincrasias, de nossas
indiferenças e permitirão que se venha conhecer novos hábitos, novos tipos de
alimentação de grãos, peixes, carnes, legumes, coalhadas de leite, novos tipos
de bebidas e de queijos, novas maneiras de meditar e de acolher, novos tipos de
dança, novas formas de cura com remédios caseiros. É mais do que necessário que
as fronteiras de todos os países sejam liberadas; que todos os muros assim como
foi o de Berlin da Alemanha pós-nazista sejam derrubados. Faz-se urgentemente
necessário que as cordas dos blocos carnavalescos da cidade do Salvador que protegem
a burguesia zumbi, decadente, colonialista e preconceituosa sejam retiradas; é
preciso restaurar a verdadeira democracia do voto livre nas eleições políticas,
mesmo sabendo que o TRE sofrerá um baque descomunal de receitas extravagantes
para manter seus desembargadores, juízes, advogados e funcionários de carreira;
é preciso que o Portal da Transparência Brasil contenha dados de remuneração
dos servidores da Justiça e do Legislativo; é preciso que se faça uma auditoria
de caráter de preservação das instituições que realmente prezam pela verdadeira
formação profissional de nossos jovens estudantes e o não favorecimento do
capital estrangeiro que cada vez mais entra no país sob a pretensão de compra e
revitalização das faculdades e universidades privadas; é preciso estancar o
sucateamento das Universidades e das Escolas Técnicas federais; é preciso que a
farmacologia abra espaço além da alopatia, também para a homeopatia e para os
remédios caseiros oriundos das tradições indígenas, dos caboclos e das
rezadeiras; que se restaurem os banhos de assento e de folhas de Ossanhã; que
seja obrigatório para todos os cidadãos brasileiros cumprir a formação de
ensino fundamental condicionado ao recebimento de bolsa família, do seguro
defeso e do salário mínimo; que as instituições religiosas responsáveis pela
educação e formação de crianças e jovens de todo país paguem os devidos
impostos ao Estado e abram cotas significativas em todos os turnos de ensino
para os excluídos; que os professores de ensino fundamental e médio possam ter
acesso a pós-graduação de modo diferenciado e recebam salários pela isonomia
dos professores doutores das Universidades Federais; que os vereadores de todos
os municípios do Brasil recebam salários simbólicos e passem a trabalharem como
todo cidadão empregado com carteira assinada e cumprimento de todos os direitos
e deveres dos operários.
A tarefa política de transformar um país numa democracia
requer que suas autoridades públicas tornem-se e vivam como cidadãos; que
recusem auxílio moradia, carro oficial, dezenas de assessores, viagens em
aeronaves do governo incluindo familiares e amigos.
Dizia S. Tomás de Aquino que a Política é infinitamente mais
importante que a Filosofia. Mesmo porque, a Filosofia em sua maioria ensinada
nas academias filosóficas das Universidades não passa de pura especulação. Desse
modo ela é estéril e não se habilita a nada, nem a ensinar a pensar. Seus interlocutores
permanecem no senso comum, pois falta-lhes subir na escada e andar no telhado
da metafísica em que se pode vislumbrar não somente o Ser como Tal, mas
igualmente o Outro. Pois o rastro deixado por ele no mundo da existência, como
afirmara Lévinas, dirige-se a anterioridade da anterioridade, ou seja, à origem
da origem, quando tudo começou e onde o Outro revelou sua face. Concernentemente,
a força de um povo está em suas tradições.
A negação e a indiferença perante o Outro faz do homem
moderno contemporâneo das cidades em todo o mundo um ser alienado, tosco, efêmero,
solitário, líquido, vazio de mistério, conseqüentemente de sagrado, tecnologizado,
repetitivo, estereotipado, religioso sem mística, depressivo e triste. A única
e soberana salvação estaria na melancolia sem cura onde se experimenta o
Absoluto da Natureza e doravante se sente saudade. É na verdadeira melancolia
que o Bispo do Rosário teceu em mantos sua experiência de revolta contra a
instituição manicomial do Rio de Janeiro durante 50 anos. Foi na obscuridade
melancólica que Camille Claudel ao transformar em escultura de pedra e barro
uma das maiores obras artísticas em França do século XX competindo com Rodin
seu mestre e amante. Foi na experiência da La noche
Oscura que São João da Cruz um dos maiores místicos da cristandade
ocidental escreveu poemas de profunda melancolia sobre a Noite e a chegada do
Dia.
É na vida dos andarilhos melancólicos acompanhados de seus cães
que Omolú e São Roque, Obaluayé e São Lázaro caminham pelo mundo, mancos,
feridos, com fome, sem teto, sem nenhum tipo de acolhimento nem de compreensão
que se mostra a simplicidade da existência em que o conhecimento filosófico e
científico cede lugar à verdadeira sabedoria. Saturno é o seu planeta, azul é a
sua cor, a mística é a sua religião, a generosidade é a sua esmola enquanto
desfrutam de Del em Del o cenário magnífico das entranhas da Terra, dos picos e
sopés das montanhas, dos vales e dos rios de Oxum, dos mares de Yemanjá, do
reino dos mortos de Omolú e Yansã.
O Outro se torna alcançável quando se pode olha-lo de frente através
do face-a-face no deserto; aquele que não aprendeu a viver no deserto da
melancolia jamais saberá nem sentirá a força da natureza embutida em todas as árvores
e animais. Em todos os córregos, riachos e rios. Aprender a viver no deserto é
deixar de lado o excessivo vício de postagens imbecis e medíocres nas Redes
Sociais da Internet, no acesso contínuo às mensagens do WhatsApp ao lado do Outro
que aguarda uma interlocução. Experimentar
o deserto é escutar uma boa música que ajude ao espírito à transcendência. Deixar que o deserto se revele é não permitir
que a lei jurídica seja superior à Ética; é questionar os ditames da razão em
detrimento da inteligência filosófica; é denunciar as ciências que manipulam
genes humanos em favor do surgimento futuro da eugenia; é tornar público o nome
dos cientistas que fabricam ogivas nucleares; é mostrar ao mundo o assassinato
de golfinhos e baleias que ocorrem na baia de Taiji no Japão; é assinar petições contra a extração de barbatanas de tubarões para servir em sopas de restaurantes asiáticos, a China é o maior mercado consumidor de barbatanas do globo. Estima-se
que 80% das barbatanas pilhadas no mundo vão para Hong Kong (o maior
centro desse comércio), onde são distribuídas para o restante do país e
da Ásia; é propagar e
pedir que se acabe o extermínio dos Curdos sem pátria; é acolher em nossas cidades
os refugiados de toda parte permitindo-lhes que a sua dignidade de pessoa
humana seja restaurada e o direito à vida, ao trabalho, à moradia e aos estudos
sejam-lhes garantido.
Em sua obra polêmica e devastadora das hipocrisias liberais
e socialistas O homem revoltado (1951) Albert Camus afirma: “Eu me revolto, logo existimos”. A partir da
revolta o homem se torna cidadão do mundo e solidário; a partir da revolta de
muitos cidadãos nasce a Revolução da Diversidade em que o Mesmo hegeliano cede
lugar ao Outro.
Ilha de Itaparica, Carnaval de 2018
Meursault Babalaxé
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