“Todo mundo mata aquilo que ama”
Oscar Wilde
Thiago Felipe Lima da Mata
Graduando em Filosofia pela UFBA com projeto de pesquisa em Filosofia Mística
O Filme
“Querelle” é um clássico do cinema europeu do ano de 1982 dirigido por Rainer
Werner Fassbinder. Considerado um verdadeiro clássico do cinema LGBT, o filme
Querelle conta a história de um marinheiro homônimo interpretado por Brad Davis
que ao longo da trama vive uma relação conflituosa com as pessoas que o
circundam e consigo próprio. O marinheiro parece assumir para si o significado
que seu nome encerra, isto é, querela. Embora pouco usada no português, esta
palavra encerra significados como conflito, disputa, lamento, desgosto e
queixa. Nada disso pode ser desassociado de nosso Querelle do filme de
Fassbinder. Por vezes, estas significâncias estão relacionadas ao estado
chamado de melancolia. Querelle melancólico de si mesmo, de seu verdadeiro eu,
assume perfeitamente as feições do homem de gênio apontadas desde a antiguidade
por Aristóteles. Para que se entenda a melancolia vivida por Querelle é
necessário levar em consideração alguns elementos que compõe a sintomática aparecida
com o aumento da bile negra.[1]
Na trama
inspirada no romance de Jean Genet (1947), nosso marinheiro é representado com
aparente jovialidade, porte másculo e singular beleza. Um estereótipo sem
praticamente nenhuma barreira que impossibilite a sedução de homens e mulheres.
Traz ainda a marca de um ‘sex symbol’ tipicamente francês da cinematografia LGBT.
Cabe dizer que este estereótipo não é por mero apelo à sensualidade e aposta em
algum sensacionalismo tal como percebemos nas atuais novelas. O Querelle “sex
symbol” é a alegoria do melancólico que reforça o exterior para esconder suas
verdadeiras questões interiores, sérias e profundas. Questões que nem sempre
são percebidas pela camuflagem imposta pelo ego, mas que se encontram
recônditas no âmbito da existência. Talvez isto se dê pelo afastamento do
verdadeiro eu que faz refletir nada mais que algo um tanto aparente e não
condizente com o real exteriormente. Se quiséssemos, poderíamos comparar nosso
Marujo ao jovem grego Narciso que, encantado com sua beleza exterior paralisou-se
ante ao seu próprio reflexo não conseguindo mais encontrar sua identidade, se
perdendo na aparência e cada vez mais longe de sua verdadeira natureza:
paralisado. Aqui recorremos ao simbolismo do espelho tão caro aos estudiosos da
melancolia. Objeto amado por muitos, o espelho reflete o que há de mais imediato
no exterior dos corpos. Assim é possível se ajeitar conforme os gostos individuais
e ter uma “ideia” de como estará esta “imagem” refletida. É, portanto símbolo
da beleza e da vaidade presente praticamente em todas as culturas como na mitologia
africana em que Oxum, divindade arquetípica da beleza e vaidade é representada
empunhando um espelho ritualístico chamado abebé.
O Espelho
devolve para quem o olha a sua própria imagem. Associa-se, no entanto à melancolia
dada à fugacidade da aparência física em detrimento da verdadeira essência sempre
relacionado a uma ideia de destituição. O Espelho da melancolia faz enxergar os
efeitos de tempo e refere-se ainda ao estado de apatia tipicamente do
melancólico, que como Narciso, prostra-se e paralisa-se como se não houvesse
ânimo para fazer mais nada.
Por
analogia o “espelho” de Querelle é o outro. A alteridade é quem mostra a
Querelle a sua imagem. Percebe-se claramente isto na cena em que luta com o
próprio irmão numa sincronia perfeita de passos e golpes. Destarte, compreende-se
que a luta com o outro é a tentativa de aniquilação de seu próprio eu.
Propositalmente o filme é embalado pela trilha sonora baseada na fala de Oscar
Wilde “Todo mundo mata aquilo que ama.” O que Querelle ama e busca não é apenas
o outro, mas o seu Eu refletido. Em uma cena do filme nos é dito que quando o
marinheiro beija um homem pela primeira vez “era como se aproximar sua boca
perto de um espelho”. Por vê aquilo que lhe falta projetado no outro e não
tê-lo, ele reage com um típico gesto do homem de gênio melancólico: a agressão.
Tomemos emprestadas as palavras de Baudelaire para expressar o sentimento do
Jovem Querelle:
Eu te golpearei sem cólera
E sem ódio como um açougueiro,
Como Moisés fez ao rochedo!
E farei de tua pálpebra,
Para embeber meu Saara,
Jorrar as águas do sofrimento.
Meu desejo inchado de esperança
Em tuas lagrimas salgadas há de nadar.
Como um navio que se faz ao largo,
E no meu coração, ébrio deles,
Teus caros soluções ressoarão
Como um tambor que bate a carga!
Não sou um acorde em falso
Na divina sinfonia,
Graças à voraz Ironia
Que me sacode e que me morde?
Ela está em minha voz, a estridente!
Este veneno negro é todo o meu sangue!
Sou o sinistro espelho
Em que a megera se contempla.
A megera de
que fala o poema de Baudelaire é a melancolia alegorizada. E toda esta fala
agressiva é compreendida dentro da problemática desta “megera que se
contempla”. Como nota Starobinski (2014,p.19) “É da energia que atinge outrem,
sem motivação explicita, que deriva o tormento infligido a si mesmo”. É como se
o outro acusasse Querelle ou lhe apontasse algo terrivelmente doloroso. Portanto
os versos finais da poesia de Baudelaire também refletem o drama de Querelle:
“Sou a ferida e a faca!
Sou o tapa e a face!
Sou os membros e a roda
Sou a vítima e o Carrasco!
Sou de meu próprio coração o vampiro
- um desses grandes abandonados
Ao riso eterno condenados,
E que não sabem mais sorrir".
Os espelhos
e vidros do Cabaré também não distam da significância abordada na melancolia,
pois refletem justamente este comportamento promíscuo e vicioso que é apenas
aparência e vazio dos frequentadores do bordel. Trata-se de “um espelho de
volúpia solitária e um espelho de sofrimento igualmente solitário” (2014,p.20),
pois as pessoas não se comprometem seriamente umas com as outras.
ao hedonismo
que não deixa de ser um tipo reação agressiva. Em concordância com os gregos em
relação à noção de hybris compreendemos que todo prazer excessivo passa a ser
desmesura ao ponto de ser completamente destituído de seu verdadeiro sentido.
Deste modo a desmesura do sexo configura um tipo de agressão ao corpo. Cabe
lembrar aqui que os “excessos” são facilmente encontrados entre os
melancólicos. Seja pelo sexo, álcool, tabaco ou medicamentos, estes excessos
atestam justamente a busca de um preenchimento do vazio que se instaura no ser
do melancólico. Portanto, a aparência tísica, pálida, envelhecida é
característica dos melancólicos, pois com estas agressões o corpo é frágil e entra
em devir
No caso de
Querelle e sua beleza tipicamente apolínea, não se vê enfraquecimento da
aparência. O que nos pode fazer pensar especialmente que se quer ressaltar a
terrível melancolia instaurada no ser mais íntimo da personagem. No entanto, é justamente na
agressividade que será evidenciado o caráter melancólico pois o efeito
corrosivo da bile negra tira a doçura do humor sanguíneo transformando em
agressão (STAROBINSKI, 2014 p.31). Cabe ainda dizer que esta agressividade não
é justificada na exterminação por si, mas numa revolta de não se ter algo ou
num sentimento não assumido. Como a personagem confessa em uma das cenas em
relação ao outro: “Te amo mais que a mim. Meu ódio era camuflagem. Uma
melancolia me aproxima de você!”.
A melancolia de Querelle era a saudade de um amor familiar. E esta era sua cruz. Suplicio evidenciado quando uma via crucis corta o cenário no exato momento em que se envolve numa briga com o irmão. O Irmão de Querelle é como se fosse seu próprio pai. Por ser mais velho, a relação incestuosa com o irmão aceita por ambos, pode revelar um desejo recôndito de Querelle pela figura paterna. Apesar de ir contra os padrões morais da sociedade, a atual psicologia não teria dificuldade alguma em explicar esta relação por meio da análise freudiana. No fim desta cena ao subir a escada, evidencia-se um marujo com a cruz nos ombros. No entanto cabe a quem ver a cena refletir era um “Cristo” ou um “criminoso” que seria crucificado? Um inocente ou um culpado?
A busca de Querelle não se dá apenas no âmbito
do prazer sexual. Mas num desejo de “um pai” para si. Talvez por isso se comportasse
como o passivo nas relações sexuais e preferia parceiros mais velhos que
gozavam de cargos de autoridade. Esta passividade, assim como entre os gregos
antigos, alude a uma ideia de proteção e iniciação. Por isto Querelle tinha dúvidas se conseguiria ocupar a posição de ativo na
relação como é apontado numa cena na prisão. Querelle queria proteção e ansiava
por um cuidado paternal. O que nos parece bem claro no final do filme quando o
tenente, melancólico de um amor, age com atitudes paternais em relação ao
marujo embriagado que se mostra debruçado de amor ao líder do barco. Querelle
enxergara no tenente a possibilidade de que ele fizesse o papel de pai e
amante. E assim, o marujo seria quem ele é na verdade: um homossexual carente
de uma paternidade, desejoso de uma proteção e de afetos sinceros. Realidade
que até então não compreendera...
A
melancolia na trama recorre também ao cenário e às cores: do tom amarelado dos
“fauve[2]” ao azul
acinzentado dos “dândi”[3] e do mar. Ambas
as cores profundamente relacionadas à melancolia. As cores do “fauve” mais do
que fazer alusão às feras dizem do momento crepuscular e aurora. Momentos em
que as energias são transmutadas e surgem as transformações. O crepúsculo é a
hora em que treva e luz se misturam. É o momento da trégua melancólica já
assinalada pelos estudiosos da Melancolia como Robert Burton e Hélène Prigent. O tom
azulado que também aparece no filme nos remete ao simbolismo do planeta Saturno
“frio, gélido e seco” que, na antiguidade era considerado o “causador” do
aumento da bile negra no organismo.
Repleto de
símbolos e interpretações, o filme de Fassbinder implica numa provocação que
pode ser pensada desde as relações de gênero á problemática existencial da
ausência de sentido na modernidade. Podemos ainda nos convocar a uma reflexão
no âmbito da ética onde as relações de alteridade têm sempre relevância. Estas
relações que às vezes não levam em consideração uma ética que salvaguarde a
vida humana e acabam por se deslanchar numa situação de extermínio do outro sem
levar em consideração a vida que lhe pertence por direito, gerando por
consequência disso sentimentos de culpa, rancor e amargura. O Jovem Querelle
percebeu ao fim da trama que pode ser melhor expor suas emoções do que se
fechar em um mundo carcomido por uma tristeza paralisante capaz de lhe tirar o
verdadeiro prazer de gozar.
Referências:
·
QUERELLE. Direção: Rainer W. Fassbinder: 1982. (102 min.).
·
BAUDELAIRE, Charles. As Flores do Mal. São Paulo: Saraiva 2012.
·
PRIGENT, Hélène. Mélancolie,
les métamorphoses de la dépression, Paris, Gallimard (Découvertes
Gallimard), RMN (Arts), 2005.
STAROBINSKI, Jean. A Melancolia diante do
Espelho: Três leituras de Baudelaire. São Paulo: Editora 34, 2014.
[1]
Conforme nota Hélène Prigent (2005) em
sua obra “Mélancolie,
les métamorphoses de la dépression”:Que ela tenha sido
observada ou não, a bile negra está presente em todas as descrições da doença
melancólica. Ela é evocada pelos partidários da teoria humoral, que liga as
doenças aos humores, porém, paradoxalmente, ela também o é pelos detratores da
mesma teoria, para quem a bile negra não é a causa da melancolia. Os primeiros
fazem dela uma substância tão variável que parece tocar (beira) o irreal, os
segundos pelo contrário, atribuem-na sem dúvida, porque a vêem pelo o que ela
é: uma bile de cor escura. No entanto todos estão de acordo em um ponto: a
doença chamada melancolia é impensável sem o recurso da bile negra. É então em
primeiro lugar um nome mais de que uma substância real, que parece importar e,
depois dele, esta cor negra ligada nele, espécie de poder metafórico suscetível
de explicar o inexplicável e finalmente de fundar o consenso que se estabelece
sobre o tema, independentemente do papel da substância que ela designa.
[2]
O “fauvismo” foi um movimento artístico, caracterizado pela utilização de cores
puras em grandes manchas e com fortes contrastes, para acentuar ao máximo o
valor expressivo da cor, exaltando a sua sensualidade e sugestão emotiva. O
termo fauvismo deriva de “fauve” (fera selvagem), exclamação feita pelo crítico
de arte Louis Vauxcelles perante a exposição de pintura do Salão de Outono de
1905, em Paris onde a violenta expressão cromática das telas expostas
contrastava com o pendor clássico-renanscentista de uma escultura aí presente.
Foi um movimento de curta duração, na passagem do Século XIX para o Século XX,
que constituiu o primeiro, senão o mais importante, movimento de renovação da
pintura francesa depois do Impressionismo.
[3] O
“dandismo” é uma corrente artístico-cultural iniciada na Inglaterra que prezava
pela elegância e suntuosidade. Sua principal manifestação era na moda onde as
cores cinza e azul se destacavam em meio às cartolas, casacos e calças. Conforme
nota Baudelaire, no “manual do dandi”: Denominem-se eles refinados, incríveis,
belos, leões ou dândis, não importa: têm todos uma mesma origem; são todos
dotados do mesmo caráter de oposição e de revolta; são todos representantes do
que há de melhor no orgulho humano, dessa necessidade, bastante rara nos homens
de hoje, de combater e de destruir a trivialidade. Vem daí, nos dândis, essa
atitude altiva de casta provocadora, até mesmo em sua frieza.” O dandismo
trazia um certo “ar de superioridade” em relação aos demais homens onde a
diferenciação se dava sobretudo pelo modo de vestir, apurada intelectualidade e
alta erudição dos dândi.
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