O conhecimento simbólico antecede ao
conhecimento racional desde os primórdios da civilização humana. Na
anterioridade da anterioridade o mistério do mundo e do cosmos era sagrado. O
homem se vislumbrou com a fenomenização da natureza (Physis em grego), ou seja, com o seu constante vir-a-ser (Devir para Heráclito) entrando em estado
de torpor e espanto (Thaumázein em
grego) ao mesmo tempo reverenciando e evocando o mistério. Ao responder ao
chamado, os fenômenos da natureza configuraram-se em divindades. Para
suportá-los nas suas epifanias e hierofanias o homem os antropomorfizou.
Foram-lhes atribuídos sentimentos e comportamentos humanos. As divindades
deleitaram-se com essa interação. A partir de então, era-lhes permitido sentir
o cheiro da vida pelo fumar do charuto, beber o néctar e comer a ambrosia do
banquete que sazonalmente o homem lhes oferecia.
Sem embargo, faltara ao homem a capacidade de
sintetizar o que era percebido. Sua mente ainda era insipiente para gerar a
compreensão sob a forma representativa de um conceito. Todas as percepções eram
captadas pelo corpo e intuídas pelo espírito. Só havia lugar para a
constituição do símbolo. Surge Prometeu, o benfeitor e criador da humanidade,
que apodera-se do fogo contido na pira do Olimpo sob a égide de Zeus, o
Numinoso/Inefável para conceder aos homens o que até então era reservado aos
deuses. Inicia-se a passagem do cru para o cozido, da intuição para a
racionalização da existência. O homem pudera, assim como os deuses, conhecer as
coisas como elas são. Mas essa acessibilidade custara-lhe um quinhão a pagar
para sempre com o cansaço do trabalho (nasce aí a Ética), com a dor e o peso da
existência, com os infortúnios ao longo do caminho da vida e, sobretudo, com a
instauração da Melancolia.
Estabelecera-se, desse modo, a ambivalência
humano/divina. A revelação era apenas superficial e sua demonstração era
advinda por uma máscara. Apolo era a máscara racional da natureza humana e
atrás dele estava Dioniso. Anteriormente, o homem houvera experimentado o
entendimento da existência pela via do simbólico, sem o fogo do conhecimento. Agora
poderia iniciar a pensá-la. Permanecia, contudo, o mistério do sagrado embutido
na própria natureza. A inalcansabilidade da razão fizera reduzir o irredutível
ao âmbito de si mesma. Todas as coisas deveriam ser renomeadas e configuradas
conceitualmente. Era a instauração por excelência do momento da memória. O
esquecimento presente no conhecimento simbólico fora desertado. Era chegada a
hora da razão humana poder ver o oculto e dizer o não dito de forma clara e
distinta. Inaugurara-se o desvelamento (Alétheia
em grego) do mistério do sagrado. Estava decretada a falência do Ser. De agora
em diante o Ser se tornara inacessível. Destituíra-se a transcendência e impusera-se
a imanência em que a única relação ontológica é a do Ente com o Ser. A
metafísica que habita acima do teto da casa da existência tornara-se
inalcançável. A escada que ligara o mundo sensível ao mundo inteligível fora
destruída pela razão científica e ideológica. A indústria religiosa fundara a
hermenêutica da opinião (Doxa em
grego) em detrimento do mistério do sagrado. Olvidara-se o mito e a filosofia
se prostituiu com as esferas aparentes do real. A memória aprendera a repetir o
real e a criação imorredoura da Arte fora sufocada pela reprodutibilidade
técnica.
A melancolia tornara-se a revelação da
ausência do absoluto. Um buraco formara-se no homem, acentuadamente no homem
moderno. Um vácuo ético se formara cedendo lugar a totalização da moral cristã/burguesa.
O “não matarás” fora substituído pelo assassínio do Outro e o simbólico fora
demonizado. Restara apenas a Palavra sem o Verbo. O messianismo contemporâneo
anuncia a Salvação escatológica. E a vida cotidiana é posta de lado porque não
tem valor de redenção. Paradoxalmente, exterminar o Outro sentenciado como
infiel, porque só “Deus é Fiel”, tudo se torna permitido para a obtenção de
bens materiais sem constrangimentos de ostentação. Não há mais lugar para os
Santos, os Orixás, os Inkisis, os Caboclos, os Índios, os Boiadeiros, as
Caiporas, os Espíritos das Florestas e das Matas, o Espírito das Folhas, o
Espírito da Água, o Espírito do Fogo, o Espírito do Vento (Tempo), o Espírito
da Terra, o Espírito do El condor, o Espírito das Baleias e dos Golfinhos.
Restara apenas Alá ou Jesus Cristo como concepções transcendentais
anti-simbólicas. O sentido desaparecera da esfera do sagrado e seu mistério
fora banalizado e interpretado como significado da existência.
O outro fora reduzido ao mesmo e a concepção
de infinitude do Ser dissipara-se na mera finitude da contingência humana.
A modernidade iniciada no Séc. XVI revelara o
homem como anti-herói (leia-se Hamlet de Shakespeare) incapaz de se decidir
entre o Ser e o Não Ser; o Ente sem Ser protagonizado por Frankstein de Mary
Shelley apresentara a ânsia do poder da razão em substituir o Criador montando
e costurando uma criatura órfã de Ser. O Drácula de Bram Stoker anunciara a
vampirização do outro devido a sede que nunca se sacia proveniente da falta do
absoluto. Parafraseando Djavan, “se o homem bebesse o mar não encheria o que
tem de fundo”. Dom Quixote de La Mancha de Cervantes sai pelo mundo à procura
de sua Dulcinéia (absoluto) e nunca a encontra. Contudo, depara-se com as
intempéries da vida e o tempo movido pelos moinhos do mundo se mostram como
monstros a serem combatidos. O Outro tornara-se adversário da existência porque
se mostrara destituído de sentido. O simbólico fora, mais uma vez, vilipendiado
pela significação da razão.
A jornada sisifiana (alusão ao mito de
Sísifo) que outrora representava a condenação dos deuses à Sísifo em rolar uma
pedra ao cume da montanha de modo interminável fizera que o homem moderno, por
analogia, se distanciasse do rochedo e experimentasse apenas o ciclo vicioso do
cotidiano da existência. “É preciso imaginar Sísifo feliz” advoga Albert Camus.
Sísifo age na contracorrente da história imposta pela dominação insana das
ideologias totalitárias e das religiões sem o verdadeiro Deus. Sísifo é a marca
indelével do humano demasiado humano; da interação melancólica da vida com a
Arte; do retorno ao Éden onde Tudo é Um (Hén
Panta em grego); Sísifo confunde-se com a rocha e deixa os deuses
indignados e frustrados porque doravante o homem aprendera a superar seu destino
trágico.
O sentido da existência fora instaurado e a
reles significação racional fora posta em seu devido lugar. Mas muito embora a
razão não possua a capacidade de apreender o sentido das coisas e da
existência, ela, de modo filosófico, auxilia preponderantemente na
interpretação da realidade. Sem a Filosofia não há o verdadeiro conhecimento,
mesmo sem alcance mítico. Sua tarefa de conduzir o homem a pensar o real é
insubstituível. A Filosofia gera conhecimento enquanto que o mito engendra a
sabedoria. Daí a imperiosa necessidade de se manifestar atéia e
dessacralizadora. O sagrado do mistério está no Mito, na Religião, na Arte e na
Poesia. Por meio dessas instâncias é que se percebe e se capta a totalidade do
mundo transcendental pelo via do Tempo oportuno (Kairós em grego). Todavia, a Filosofia, apesar que se fizera
epistemológica e ontológica ao longo da modernidade pode atingir o Ser sem
fissuras e sem reduções racionalistas desde que empreenda uma ascensão ao mundo
metafísico. Nesse contexto reside a Ética, a Estética e a Ideia Universal
originalmente apresentada por Platão.
A Filosofia é filha de Palas Athena gerada
por Zeus e Métis; é a profanação do sagrado ao desvelar o Ser das coisas e do
Mundo; é a instauradora da verdade nua e crua; é a senhora vestida do mais puro
linho egípcio e ornada das joias mais reluzentes; é a beldade que seduz e ao
mesmo tempo liberta. Fascina e cativa aquele que se deixou conduzir por sua
forma de pensar. É a que conduz seu amante para a majestosa alcova da liberdade
de Ser e Pensar. Após esse enlace, ninguém nunca mais será o mesmo de outrora e
seus filhos, fruto dessa volúpia, enveredarão rumo à verdadeira Revolução e
reconstruirão dos escombros a síntese primordial [...]
Lourenço Leite
Prefácio da 2a edição do livro: Do Simbólico ao Racional, do mesmo autor.
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