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sexta-feira, 23 de agosto de 2013

A Jornada do Herói do Sertão: DEUS E O DIABO NA TERRA DO SOL[1]



Lourenço Leite
Deus e o Diabo na Terra do Sol de Glauber Rocha produzido em 1964, com duração de 120 minutos e com a participação dos atores Geraldo Del Rey, Ioná Magalhães, Othon Bastos e Maurício do Valle, sem dúvida, é o marco do Cinema Novo, apesar de se delimitar esse tipo de cinema de 1958 a 1962. Mas como os movimentos marcantes do cinema não podem ser demarcados com precisão, aliás, nem a própria história do homem, o filme de Glauber atemporaliza-se para poder atingir a história do próprio cinema mundial. Foi como ele próprio disse: “Com uma câmara na mão e uma idéia na cabeçaque essa obra de arte foi gerada. O cenário, não podia ser outro: o sertão baiano. Esse baiano meio louco ou quase louco, vindo da capital do século XIX [Paris], impregnado pela efervescência da Nouvelle Vague francesa e das demonstrações do cinema de autor de François Truffaut, Jean Luc Godard, C. Chabrol, Luis Malle e Alain Resnais, seus melhores representantes, retorna à casa como todo bom herói. É nessa perspectiva do herói que gostaria de apresentar minha reflexão sobre a obra de Glauber.
Antes de entrarmos nesse ambiente mítico, faz-se necessário narrarmos, sob forma sinóptica, a obra: em meio ao alto sertão da Bahia [região de Monte Santo], um vaqueiro [Geraldo Del Rey] indignado pela injustiça praticada na fazenda com os empregados mata o seu patrão, une-se a um místico, depois ao cangaceiro Corisco e por fim enfrenta Antonio das Mortes, matador de cangaceiros. Sua mulher [Ioná Magalhães], silenciosa e presente, acompanham-o nessa jornada, sem saber que aquela jornada lhe levaria também a descobertas e passagens, jamais pensadas em sua existência. Um dos melhores filmes de Glauber Deus e o Diabo na Terra do Sol foi uma interpretação muito livre da peça teatral: O Diabo e o Bom Deus de Sartre. Aqui no Brasil essa obra foi publicada, pelo que me consta, pelo Círculo do Livro, mas é possível encontrá-la pela Difusão Européia, editora portuguesa que distribui no Brasil. O original francês: Le Diable et le Bon Dieu, foi publicado pela editora Gallimard de Paris em 1951. Além da literatura sartreana Glauber sofre influência da técnica e da teoria de um dos mais geniais cineastas da história do cinema: Sergei M. Eisenstein. Cineasta russo, Eisenstein filmou o Encouraçado Potemkim em 1925. A teoria de sua montagem foi baseada na didática e na estética marxista. A idéia desse diretor, mais tarde descoberto por Hollywood, pra variar, era construir um herói coletivo [tautologia mítica, porque todo herói, segundo a história da mitologia, pode ser coletivo], no caso forjado pelas massas russas, representadas pelos amotinados do encouraçado, o povo de Odessa [cidade do sul da Rússia] e insurrectos de outros navios - criando, portanto dois personagens: o encouraçado e a cidade; o drama [tecido pela dialética marxista] se construía com o diálogo e a união de ambos. Pois é, temos quase todos os elementos precedentes de análise que nos remeteria, invariavelmente, a uma análise socio-política da obra cinematográfica de Glauber. Porém, nossa proposta, ainda que insólita, pretende ser reveladora. A obra Deus e o Diabo na Terra do Sol, mesmo que impregnada de elementos existencialistas e marxistas, tradicionalmente em nosso meio, tem nos remetido a perceber apenas o jogo do poder dominante no seio da cultura popular. Aqui pretendo mostrar o viés da jornada do herói, dessa vez, do herói do sertão.
Situemo-nos no contexto sertanejo para podermos entrar melhor nesse mundo dos símbolos que a mitologia nos proporciona com tanto fascínio.
Demarquemos portanto, o sertão: lugar desértico semi-árido, as vezes totalmente árido como as regiões pré-deserticas, vegetação constituída de arbustos onde se destaca o umbuzeiro [árvore que guarda em suas raízes uma grande quantidade de água] e de forma magistral e soberana o nosso mandacaru [da mesma família do cactos é uma planta em forma de castiçal, contém muitos espinhos, é esverdeada, dá flores e frutos comestíveis e possui raízes bastante profundas]. No sertão as pessoas que moram são sisudas, desconfiadas, bebem pouca água, mesmo se lhes chega em abundânciasão fiéis, honestas e obedientes a Deus e a Natureza. Sua personalidade e seu caráter são firmes como o chão do sertão. Nesse ambiente desertificado, o homem sertanejo acolhe com simplicidade o outro e o mistério como sendo verdades absolutas. É   onde acontecem as grandes revelações da existência e onde ‘a brisa leve das paixões que vem de dentro’ encontram abrigo e cura. Somente ocorrem os grandes encontros.
Vejamos agora a jornada do herói, antes de se tornar arquétipo, como se nos apresenta a historiografia mítica. Vale ressaltar que a transmissão dos mitos nas culturas humanas se dá por via oral. Era cantado antes de ser escrito, sentido antes de ser pensado. Sua representação não era racional, era uma representação de reificação onde os ritos ocupavam lugar imprescindível. No sertão ainda se fazem procissões para chover com cânticos e rituais que lembram os ritos consagrada a deusa Deméter na Grécia arcaica. No sertão vê-se o aedo, aqueles cantadores dos mitos, substituídos pelos repentistas e trovadores cujo canto sintetiza a alma do seu povo, bem como os acontecimentos sociais. O herói, esse anônimo nascido no seio de uma cultura popular, primeiramente é chamado [forjar um herói pela consciência do próprio herói não é constituir um herói — o herói sempre é chamado — nunca ele se apresenta como principiante de herói, apto a se tornar um herói. Ele é escolhido para libertar o seu povo, mas antes, deve passar por etapas de purificação porque lhe será revelado segredos que pertencem aos deuses]. Nosso herói de Deus e o Diabo na Terra do Sol é Manuel. Aquele sertanejo que não tem a menor pretensão nem a maior presunção de ser herói ou libertador, mas sabe se indignar com as injustiças. É chamado, mas não sabe que é chamado. terá conhecimento do chamado após atingir a última etapa da jornada do herói.
Em seguida o nosso Manuel empreenderá a caminhada em direção ao Hades [lugar onde reina Plutão, o senhor das profundezas da terra e soberano das paixões primitivas e recônditas do homem], como faziam os heróis míticos sob a forma de catábase [descida aos infernos, ida às profundezas da alma onde somente as paixões podem ser domadas]. O ponto de partida da catábase do nosso herói sertanejo é o assassinato de seu capataz. É nesse momento que ele se dá conta de fugir, mas ao mesmo tempo deve, ao lugar de se redimir, empreender uma jornada de preparação para se tornar um justiceiro. Ou seja, alguém que possa enfrentar o dragão que protege as portas da cidade. No filme esse dragão é representado inicialmente pelo capataz ou patrão. Adiante veremos o dragão com inúmeras cabeças: o arcebispado local, o latifundiário e por fim a polícia. Manuel sente sede de libertação e sua sede o conduz a uma jornada sem retorno: a jornada do herói. Sua alma precisa ser forjada no cadinho da humilhação para não se tornar vaidosa. Jean Genet havia, em uma de suas veleidades, prefigurado essa constituição da alma do herói, quando disse: a humildade que não provir da humilhação [provação] não passa de vaidade. Continuemos com nosso herói nessa percepção de sua jornada. Seu contado com o beato, o místico profeta que conduz o povo crente da região, é a entrada na floresta do mistério. O ingresso no desconhecido. O herói precisa ser conduzido, orientado e humilhado. Manuel o segue cegamente, como o crente segue seu deus. Deixa-se provar e ser humilhado, passando inicialmente pelo sacrifício do corpo. A catábase não acontece apenas na interioridade do herói. Inicia-se no seu corpo para provar e medir sua força. Suas entranhas adoecem de dor, hipostasiadas pela presença do outro. Destarte, estabeleceram-se as etapas de iniciação do nosso herói. Aqui, agora, ele caminha para o martírio maior: o sacrifício do inocente. No filme o beato imola uma criança na presença de Manuel — a criança é também sua própria inocência que deve ser superada. Daqui a diante ele se deparará com os mistérios de sua própria alma. É a vez de sua mulher [Rosa] e da Mulher entrar na cena iniciática. Rosa mata o beato, o místico, a , a ingenuidade, a alienação do mundo e instaura para nosso herói as últimas etapas iniciáticas. Antes Rosa era a presença silenciosa, guardiã da , protetora da cultura. Agora ela envereda com Manuel nos caminhos da catábase. Ambos caminharão em direção à libertação, mas deverão atingir fins diferentes. Nosso aedo, o trovador, canta e toca na viola o ode da jornada do herói  em cada nova etapa que se inicia e se supera. Compararia o canto do nosso trovador com o fio de Ariadne [Ariadne, antes de ser esposa de Dioniso, tecia fios em sua roca e quando Teseu aparece em cena para matar o Minotauro, é através do seu fio que o herói consegue sair do labirinto], fio que, como a razão dialética, vai dando pouco a pouco sentido a história do homem e do povo pelos acontecimentos que se sucedem. É um dos momentos magistrais da obra de Glauber — poder tecer dentro do próprio filme o seu significado. Ele nos apresenta o hermeneuta, aquele que interpreta os enigmas da vida, fora do templo, ou melhor, fora do próprio mistério. Vê-se a presença de Apolo nos meandros do mito, dando o mistério [sob a forma de oráculo] e o revelando [sob a forma de trova].
Continuando nossa jornada, veremos, após a morte do beato, o encontro com outro herói - Corisco. Este é um hierofante, iniciado, que foi feito herói da resistência do sertão. Seu encontro com Corisco será a prova definitiva para se saber se Manuel se tornará ou não um novo herói. Corisco batiza-o com o nome de Satanás. Aqui, o paradoxo teológico da iniciação se inicia. Ao invés de Manuel receber do beato o novo nome como iniciado, recebe-o de um cangaceiro que contraria toda aparente jornada em direção à santidade. Glauber nos coloca diante do impasse e da inversão de valores. Sua axiologia não é da totalidade, mas da alteridade. Ao forjar o herói do sertão ele afirma a resistência do povo oprimido que precisa de um verdadeiro libertador, preparado na mata do sertão, em meio aos espinhos, a fome, a seca, a miséria, a solidão. Como se poderia preparar um novo herói senão na solidão. A partir do encontro de Manuel com Corisco, Rosa aprende a se conhecer como mulher e como pessoa. Sua iniciação não é para se constituir uma heroina, mas para ser em sua própria totalidade no mundo. Seu apanágio é a companheira de Corisco que a faz perceber a verdade dos seus sentimentos e a expor seu desejo contido como a sede no sertão. Seu ideal de ser mulher, casada e mãe afloram como a flor do cactos em meio a seca do sertão. Sua interlocutora [Dadá] é como a chuva que cai no deserto. Nesse ínterim as cabeças do dragão, aquelas que protegem a porta de entrada nos mitos, resolvem se unir para se protegerem. Assim como no mito, o dragão não aparece em evidência ou em verdade, está sempre dissimulado. É necessária a presença de outra figura para garantir o poder do dragão - do poder instituído que no filme se representa pelo arcebispado e pelos latifundiários. Antonio das Mortes será o representante do dragão, da esfinge que devorará aquele que tentar traduzir o enigma. A presença de Antonio das Mortes na jornada do nosso herói do sertão é inevitável. Sem ela nosso herói não cumprirá as últimas etapas. Contudo, o matador de cangaceiro simbolizará ao mesmo tempo a perseguição, a opressão, o guardião do templo, o barqueiro do Hades [como Caronte que conduzia as almas para o Hades e de elas não retornavam], a repressão, a injustiça institucionalizada, a atrofia do ser. Mas nosso herói precisa driblá-lo, combatê-lo se for preciso. Sua sabedoria está sendo forjada em meio às maiores intempéries da vida sertaneja, logo, sua força não é a força do herói físico e sim do herói espiritual que pode pensar o meio de sair da floresta, da mata, da perseguição. Mas Antonio das Mortes é fiel ao seu compromisso de acabar com todos os cangaceiros que se interpuserem entre seu senhor e seu deus. Sua tarefa não é menor que a de Manuel. Ambos se igualam na jornada. Um perseguidor e justiceiro guardião da ordem e do poder; o outro, chamado, iniciante e injustiçado, empreendeu uma jornada sem retorno, cujo fim é a libertação do seu povo. Na vida de todo herói a meta sempre é poder fazer algo pela sua gente, nunca para si próprio, senão não seria um herói.
Corisco é o verdadeiro hierofante [iniciado] que pela experiência do retorno se transformou em mistagogo [aquele que é iniciado em mistérios]. Como mistagogo pode ‘ensinar’, ou melhor, orientar o novo herói na trajetória da provação. Ele possui a consciência como a luminosidade do sertão - límpida e clara onde quem viveu a experiência do deserto sabe o que se e o que se sente. Mas seu fim está escrito - todo herói terá um fim trágico: seja de morte matada, jamais de morte morrida, seja de morte de profunda solidão. Apesar da tragicidade da vida do herói, ele sabe que vai morrer. Cada acontecimento possui um fim, ele nunca se prende a uma totalidade absoluta da vida nem da história. Por isso todos os seus feitos devem ser completos, acabados. Porque a qualquer momento o herói pode morrer. E ele não poderá deixar nada a fazer. No filme Corisco se apresenta como o herói trágico, mas percebe uma real possibilidade em Manuel como alguém que está se preparando para se tornar um novo herói, não como ele, um cangaceiro, mas como alguém, que apesar de sua diferença de jornada, poderá ajudar a libertar seu povo. Não é à toa que Corisco prova com dureza nosso herói. Com ele não poderá mais haver incerteza e debilidade da alma. Deus e o Diabo agora são uma única pessoa. Mas se revela naquele ambiente do sertão como o diabo. Logo, seus seguidores serão batizados com o nome de Satanás. Aquele que sentiu a dor da fome, o peso da miséria, a sede da angústia.
O ideal prefigurado por Corisco e legado à Manuel é a constituição de uma nova vida, não escatológica, mas existencial: “o mar vai virar sertão e o sertão vai virar marcomo numa das trovas catada pelo coro no filme. É aqui, no mundo, que o nosso herói precisa garantir para o seu povo uma nova vida.
Antonio das Mortes se encontra com o trovador, o aedo do sertão. Depara-se com o destino que não é apenas o destino de Manuel, nem do povo, mas também o seu próprio destino. Glauber transforma diante de nossos olhos o matador de cangaceiro em humano. Antonio das Mortes ao perseguir Manuel e aos cangaceiros depara-se com a verdade daquela gente. Sua luz de esclarecimento é o próprio sertão revelando a miséria. Descobre que as Moïras teceram também o fio de sua vida. Ele não passa de um servo cumpridor de ordens, capataz do poder que ajuda a provar os heróis do sertão. Ele que pensava ser o exterminador da resistência se dá conta que promove a ascensão dos heróis. Sem ele nosso herói não seria provado e não atingiria a apoteose arquétipa da libertação. A morte do herói é tão necessária quanto a água embutida nas raízes do umbuzeiro ou no tronco do mandacaru. Somente depois da morte que o herói é glorificado. Somente depois da morte do herói que o arquétipo se forma no inconsciente de um povo.
Glauber consegue mostrar, nessa obra prima, de maneira mítico-poética, a pré-figuração do herói e a instauração do seu arquétipo coletivo. Seu pano de fundo, genialmente escolhido, não poderia ser melhor que o sertão. Com a presença da música de Villa-Lobos e da viola do trovador, ele universaliza a história do sertanejo que não tinha história. Com a presença do aedo do sertão ele nos ensina a tecer a trama da história, mas, sobretudo sua compreensão.
No momento em que o cinema faz cem anos, dedico essa interpretação mítico-filosófica a todo aquele que como Glauber, com uma idéia na cabeça e uma câmera na mão, soube construir uma síntese de nossa cultura fazendo valer uma estética cinematográfica em que o outro, poderá ser outro, se percebido como tal. Para isso, o cinema que não aprende a se deslocar de seu eixo dominante, não poderá filmar a alteridade da cultura, porque perceber o outro, é possível a partir de seu próprio lugar.
Salvador, 23 de setembro de 1995





[1] Publicado em 30.12.95 no Jornal A Tarde - Salvador, Ba.

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