Lourenço Leite
Deus e o Diabo na Terra do Sol
de Glauber Rocha produzido em 1964, com duração de 120 minutos
e com a participação dos atores Geraldo Del Rey, Ioná Magalhães, Othon Bastos e Maurício do Valle, sem
dúvida , é o marco
do Cinema Novo ,
apesar de se delimitar
esse tipo
de cinema de 1958 a 1962. Mas como os movimentos marcantes
do cinema não
podem ser demarcados com
precisão , aliás ,
nem a própria
história do homem ,
o filme de Glauber atemporaliza-se para poder atingir
a história do próprio
cinema mundial. Foi como
ele próprio
disse: “Com uma câmara
na mão e uma idéia
na cabeça ” que
essa obra de arte
foi gerada. O cenário , não podia ser outro : o sertão
baiano . Esse baiano meio louco ou quase louco ,
vindo da capital do século
XIX [Paris], impregnado pela efervescência da Nouvelle
Vague francesa e das demonstrações
do cinema de autor
de François Truffaut, Jean Luc Godard, C. Chabrol, Luis Malle e Alain Resnais, seus melhores
representantes, retorna à casa como todo bom herói . É nessa perspectiva
do herói que
gostaria de apresentar minha
reflexão sobre
a obra de Glauber.
Situemo-nos no contexto
sertanejo para
podermos entrar melhor
nesse mundo dos símbolos
que a mitologia
nos proporciona com
tanto fascínio .
Demarquemos portanto ,
o sertão : lugar
desértico semi-árido ,
as vezes totalmente
árido como
as regiões pré-deserticas, vegetação constituída de arbustos
onde se destaca o umbuzeiro
[árvore que
guarda em
suas raízes uma grande
quantidade de água ]
e de forma magistral
e soberana o nosso
mandacaru [da mesma
família do cactos
é uma planta em
forma de castiçal ,
contém muitos espinhos ,
é esverdeada, dá flores e frutos comestíveis
e possui raízes bastante profundas]. No sertão as pessoas
que lá
moram são sisudas, desconfiadas, bebem pouca água , mesmo se lhes chega em abundância ; são fiéis, honestas e obedientes
a Deus e a Natureza .
Sua personalidade
e seu caráter
são firmes
como o chão
do sertão . Nesse ambiente
desertificado, o homem sertanejo acolhe com
simplicidade o outro
e o mistério como
sendo verdades absolutas. É aí onde acontecem as grandes
revelações da existência
e onde ‘a brisa
leve das paixões
que vem de dentro ’
encontram abrigo e cura .
Somente aí
ocorrem os grandes encontros .
Vejamos agora
a jornada do herói ,
antes de se tornar
arquétipo , como
se nos apresenta a historiografia
mítica. Vale ressaltar que a transmissão
dos mitos nas culturas
humanas se dá por via
oral . Era
cantado antes de ser
escrito , sentido
antes de ser
pensado. Sua representação
não era
racional , era
uma representação de reificação onde
os ritos ocupavam lugar
imprescindível . No sertão
ainda se fazem procissões
para chover com cânticos e rituais que
lembram os ritos consagrada a deusa
Deméter na Grécia arcaica . No sertão vê-se o aedo,
aqueles cantadores
dos mitos , substituídos pelos repentistas
e trovadores cujo
canto sintetiza a alma
do seu povo ,
bem como os acontecimentos sociais .
O herói , esse
anônimo nascido no seio
de uma cultura popular ,
primeiramente é chamado [forjar
um herói
pela consciência
do próprio herói
não é constituir
um herói
— o herói sempre
é chamado — nunca ele
se apresenta como principiante
de herói , apto
a se tornar um
herói . Ele
é escolhido para libertar
o seu povo ,
mas antes ,
deve passar por
etapas de purificação
porque lhe
será revelado segredos que pertencem aos deuses ].
Nosso herói
de Deus e o Diabo na Terra do Sol é
Manuel. Aquele sertanejo
que não
tem a menor pretensão
nem a maior
presunção de ser
herói ou
libertador , mas
sabe se indignar com
as injustiças . É chamado, mas não sabe que é chamado. Só
terá conhecimento do chamado após atingir a última etapa da
jornada do herói .
Continuando nossa
jornada , veremos, após
a morte do beato ,
o encontro com
outro herói
- Corisco . Este
é um hierofante ,
iniciado , que
foi feito herói
da resistência do sertão .
Seu encontro
com Corisco
será a prova definitiva
para se saber se Manuel
se tornará ou não
um novo herói . Corisco
batiza-o com o nome
de Satanás. Aqui , o paradoxo
teológico da iniciação
se inicia. Ao invés de Manuel receber do beato o novo nome como iniciado ,
recebe-o de um cangaceiro
que contraria toda
aparente jornada
em direção à santidade . Glauber nos
coloca diante do impasse
e da inversão de valores .
Sua axiologia não
é da totalidade , mas
da alteridade . Ao forjar
o herói do sertão
ele afirma a resistência
do povo oprimido
que precisa
de um verdadeiro
libertador , preparado
na mata do sertão ,
em meio
aos espinhos , a fome ,
a seca , a miséria ,
a solidão . Como
se poderia preparar
um novo herói senão na solidão . A partir do encontro de Manuel com
Corisco , Rosa
aprende a se conhecer como
mulher e como
pessoa . Sua iniciação não é
para se constituir uma
heroina, mas para
ser em sua própria totalidade no mundo . Seu apanágio é
a companheira de Corisco
que a faz perceber
a verdade dos seus
sentimentos e a expor
seu desejo
contido como a sede
no sertão . Seu
ideal de ser mulher , casada
e mãe afloram como
a flor do cactos
em meio
a seca do sertão .
Sua interlocutora [Dadá] é como a chuva que cai no deserto .
Nesse ínterim as cabeças
do dragão , aquelas que
protegem a porta de entrada
nos mitos ,
resolvem se unir para se
protegerem. Assim como
no mito , o dragão
não aparece em
evidência ou
em verdade ,
está sempre dissimulado. É necessária a presença de
outra figura para
garantir o poder do dragão - do poder
instituído que no filme
se representa pelo arcebispado
e pelos latifundiários .
Antonio das Mortes será o representante
do dragão , da esfinge
que devorará aquele
que tentar traduzir o enigma . A presença de Antonio das Mortes
na jornada do nosso
herói do sertão
é inevitável . Sem
ela nosso
herói não
cumprirá as últimas etapas . Contudo , o matador de cangaceiro
simbolizará ao mesmo tempo a perseguição, a opressão ,
o guardião do templo ,
o barqueiro do Hades [como Caronte que
conduzia as almas para
o Hades e de lá elas
não retornavam], a repressão ,
a injustiça institucionalizada, a atrofia do ser . Mas nosso herói precisa
driblá-lo, combatê-lo se for preciso . Sua sabedoria
está sendo forjada em meio às maiores
intempéries da vida
sertaneja , logo ,
sua força
não é a força
do herói físico
e sim do herói
espiritual que
pode pensar o meio
de sair da floresta ,
da mata , da perseguição. Mas
Antonio das Mortes é fiel ao seu compromisso de acabar com todos os cangaceiros que
se interpuserem entre seu senhor e seu deus . Sua tarefa não é menor que a de Manuel. Ambos
se igualam na jornada . Um perseguidor e justiceiro guardião
da ordem e do poder; o outro, chamado,
iniciante e injustiçado, empreendeu uma jornada
sem retorno ,
cujo fim
é a libertação do seu
povo . Na vida
de todo herói
a meta sempre
é poder fazer algo pela sua gente , nunca para si próprio , senão não seria
um herói .
O ideal
prefigurado por Corisco
e legado à Manuel é a constituição de uma nova
vida , não
escatológica, mas existencial: “o mar vai virar sertão e o sertão
vai virar mar ”
como numa das trovas
catada pelo coro
no filme . É aqui ,
no mundo , que
o nosso herói
precisa garantir
para o seu povo uma nova vida .
Antonio das Mortes
se encontra com
o trovador , o aedo do sertão . Depara-se com o destino que não é apenas o destino de Manuel,
nem do povo ,
mas também
o seu próprio
destino . Glauber transforma diante
de nossos olhos
o matador de cangaceiro em humano .
Antonio das Mortes ao perseguir
Manuel e aos cangaceiros depara-se com a verdade daquela gente . Sua luz de esclarecimento é o próprio
sertão revelando a miséria .
Descobre que as Moïras teceram também o fio de
sua vida .
Ele não
passa de um
servo cumpridor de ordens ,
capataz do poder
que ajuda
a provar os heróis
do sertão . Ele
que pensava ser
o exterminador da resistência
se dá conta que
promove a ascensão dos heróis . Sem ele nosso herói não seria
provado e não atingiria a apoteose arquétipa
da libertação . A morte
do herói é tão
necessária quanto
a água embutida
nas raízes do umbuzeiro ou no tronco do
mandacaru . Somente
depois da morte
que o herói
é glorificado. Somente depois
da morte do herói
que o arquétipo
se forma no inconsciente
de um povo .
Glauber consegue mostrar ,
nessa obra prima ,
de maneira mítico-poética, a
pré-figuração do herói e a instauração
do seu arquétipo
coletivo . Seu
pano de fundo ,
genialmente escolhido, não poderia ser melhor que o sertão . Com a presença da música de Villa-Lobos e da viola
do trovador , ele
universaliza a história do sertanejo que não tinha história . Com a
presença do aedo
do sertão ele
nos ensina
a tecer a trama
da história , mas ,
sobretudo sua
compreensão .
No momento em que o cinema faz cem anos , dedico essa interpretação
mítico-filosófica a todo aquele que como Glauber, com
uma idéia na cabeça
e uma câmera na mão ,
soube construir uma síntese
de nossa cultura
fazendo valer uma estética
cinematográfica em
que o outro ,
só poderá ser
outro , se percebido como
tal . Para isso , o cinema que não aprende
a se deslocar de seu
eixo dominante ,
não poderá filmar
a alteridade da cultura ,
porque perceber
o outro , só
é possível a partir
de seu próprio
lugar .
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