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sábado, 24 de agosto de 2013

A Extemporânea Chegada de Outrem

A Extemporânea Chegada de Outrem


Lourenço Leite


A
consciência, como se viu anteriormente, apesar de querer ser reparadora de culpa, suspira aliviada quando percebe e confirma que a água está sempre fria. Por isso, tarde demais para se jogar na água em que o outro está caído e apelando por socorro. “Graças a Deus, é tarde demais!” Conclama o protagonista em A Queda, num de seus últimos diálogos unigênitos e quiçá, Unigênitos. O que seria dele se não houvesse elementos externos convincentes para justificarem sua indiferença diante da vulnerabilidade de outrem? Ele, assim como todo homem desse tempo, alivia-se quando percebe em meio ao clima de inverno que, ajudar outrem é, necessariamente, contaminar-se como ocorre em epidemias de gripe. Mas, não se pode adoecer do outro. Esta doença é contagiosa e dificilmente irá poderá-se-á inocular qualquer tipo de vacina. O outro está escrito nos anais do individualismo, é ameaçador e propugnador de doenças incuráveis. O “simesmo está (ria) condenado ao extermínio. Mas, muito embora se possa proteger das contaminações naturais de outrem, não se pode, como se viu anteriormente, proteger de sua presença na consciência humana. Em A Queda, o protagonista pode se imiscuir da culpa, porque quem a gerou escorreu nos canais do absurdo, mas, perante o outro como tal, que chega inesperadamente, toma assento e invade sua privacidade, não se pode mais ficar alheio. Em seu conto O Hóspede, Camus alicerça essa chegada do outro de forma inigualável, aliás, como em todas as suas obras. Elas são irreplicáveis em estilo e em conteúdos, apesar do temaabsurdoperpassar inúmeras delas.
Ora, se em A Queda, Camus pretendeu justificar a ausência racional de outrem, em O Hóspede, o outro é a presença irremovível. Inevitabilidade essa que, faz desse conto, a presença mais estonteante de outrem. Diante da consciência, mesmo que constituída de objeto algures, pode-se, como se viu, encontrar de forma astuciosa a negação de outrem. Mas o outro, como presença imorredoura, não pode ser sucumbido sumariamente pela racionalidade antialteridade. Tornar-se presente em meio à instância da vida é, inegavelmente, apresentar-se como alguém instituído de direitos inalienáveis que não pode ser apenas justificado pela concepção da unicidade humana, isto é, da condição humana.
 O conto, O Hóspede, se considerada narrativa realística, apresentado por Camus, relata um episódio em um tempo perdido no planalto leste da Argélia. Em que um professor primário, de formação francesa é surpreendido em sua casa/escola pela chegada de um velho policial que trouxera um árabe, feito prisioneiro, para ser entregue ao distrito da comuna mais próxima por ter cometido um crime de sangue. Impedido de continuar a trajetória, o policial deve retornar ao seu vilarejo, porém, antes, delega ao professor a custódia do prisioneiro. Acometido de grande embaraço, o professor reluta diante da tarefa insólita, mas sente-se obrigado a realizá-la impelido por normas civis daquele país. Devido ao cair da tarde, o prisioneiro deve ser encaminhado dia seguinte ao seu destino para ser julgado e, possivelmente, executado. Entrementes, a hora da partida, o professor entra em estado de grande estupor e dúvida diante daquela responsabilidade inesperada. O Árabe, apesar de se encontrar sozinho com o mestre, não tenta nenhuma fuga nem apela por nenhuma compaixão. Porta-se indiferente a tudo.  Tendo decidido não apresentá-lo à comuna, o professor muniu-lhe de alimentos para o resto da viagem, indicou-lhe o caminho e retornara a sua escola. A última visão que tivera do árabe era ele se dirigindo à prisão. Atormentado com a dúvida se deveria tê-lo entregue as autoridades policiais ou tê-lo convencido a fugir, o professor é flagrado com uma inscrição no quadro da sala de aula: “Você entregou nosso irmão. Vai pagar por isso”. Dá-se conta que estava .
Ricochetado de paradoxos morais, o protagonista desse conto, representa, dentre outras coisas, a razão ocidental que, sob o jugo da coerção moral — instalada na intersubjetividade modernanão sabe lidar com o outro quando ele se lhe depara frente-a-frente. A falta de previsibilidade da chegada de outrem faz desse tipo de homem um Solitário por excelência. A inesperada chegada do hóspede institui-lhe uma avalanche de indecisões porque o coloca face ao mistério do outro. Camus, nesse conto, simboliza a dualidade moral embutida em uma realidade cultural de origem semita que está sob o protetorado de um imperialismo ultramar. Desde a chegada dos dois forasteiros, percebida por Daru (professor da escola), Camus descreve-os como representantes dessas duas culturas. “Um estava a cavalo, o outro a ”. Um, na condição de portador do estandarte institucional e, o outro, na feição de alguém preso a terra, as origens daquele lugar. Ambos dirigem-se à escola construída “no flanco de uma colina”. A escola, representativa do saber totalizante e ideologizante, enquanto isso está posta no alto como um farol do conhecimento. A descrição do ambiente do prédio da escola, a disposição das coisas e a “inospitabilidade” do lugar fazem daquele canto um tipo de abrigo perdido e sempre à espera da chegada de alguém. Fazia frio, não chovia há meses e os alunos não apareciam na escola desdemuito tempo. Daru, como um guardião do saber perene, aguardava Solitariamente uma chegada. Sua prontidão não se dissimulava em nenhum tratado de normas morais nem em nenhuma regra de acolhida que discriminasse qualquer chegada. A escola estava posta entre o limiar da civilização moderna e o do deserto. Suas janelas davam também para o sul. Ao se situar geograficamente, aquele canto do mundo árabe encontrava-se na região Magrebe. O sul da escola apontava para as nações da África negra, abaixo do deserto de Saara. O leste, para o oriente onde se originam todos os povos semitas. O norte, para a Europa, berço da civilização ocidental. Assim sendo, com essa situação geográfica cardinalícia, o professor Daru está diante de duas realidades étnicas e culturais superpostas que se aproximam de sua escola. Aquele que vem a conhece o deserto mesmo sem se poder ver com clareza a trilha esculpida ao longo do caminho. Ora, se ao centro se tem um posto do saber colonizador e, ao sul, nações prestes a ser exploradas, o que resta, como alternativa original, é ainda o deserto. É de que deve vir o forasteiro e para que devem se dirigir todos aqueles que quiserem ter umencontrocom a alteridade. É com esse cenário que se inicia O Hóspede de Camus. Daru, cavalheiro Solitário perdido no limítrofe do deserto está preste a se deparar com uma presença que lhe desestabilizará o seu cotidiano. Antes, como é descrita no conto, a natureza havia se modificado para a acolhida do hóspede:
Le ciel était moins foncé : dans la nuit, la neige avait cessé de tomber. Le matin s´était levé sur une lumière sale qui s´était à peine renforcée à mesure que le plafond de nuages remontait. A deux heures de l´après-midi, on eût dit que la jounée commençait seulement. Mais cela valait mieux que ces trois jours où l´épaisse neige tombait au milieu des ténèbres incessantes, avec de petites sautes de vent qui venaient secouer la double porte de la classe. Daru patientait alors de longues heures dans sa chambre, dont il ne sortait que pour aller sous l´appentis, soigner les poules et puiser dans la provision de charbon. Heureusement, la camionette de Tadjid, le village le plus proche au nord, avait apporté le revitaillement deux jours avant la tourmente. Elle reviendrait dans quarante-huit heures (CAMUS, 1999, 82).

O céu estava menos escuro: durante a noite, a neve parara de cair. A manhã nascera sobre uma luz suja que mal se reforçara à medida que o teto de nuvens subia. Às duas horas da tarde, ter-se-ia dito que o dia apenas começava. Mas isso era melhor que aqueles três dias em que a neve espessa caía no meio de trevas intermináveis, com pequenas rajadas de vento que vinham sacudir a porta dupla da sala de aula. Daru passava então horas em seu quarto, de onde saía para ir ao alpendre, tratar das galinhas e abastecer-se de carvão. Felizmente, a caminhonete de Tadjid, a aldeia mais próxima ao norte, trouxera os alimentos dois dias antes da tormenta. Ela voltaria em quarenta e oito horas (CAMUS, 1997, p. 76).
A experiência de Daru, antes da chegada do hóspede, era proveniente do que ele testemunhava, ao longo dos dias e dos meses, da penúria em que viviam os aldeões e de como eles conseguiam sobreviver a todas as intempéries da natureza; e da falta de recursos da civilização moderna. Aquela gente vivia sob o Sol como nômade no deserto a procura de um oásis em que pudesse se proteger. Sua escola era um desses oásis em que os alunos podiam repor a carga nutricional e se alimentarem do conhecimento da civilização moderna.
Mais il serait difficile d´oublier cette misère, cette armée de fantômes haillonneux errant dans le Soleil, les plateaux calcinés mois après mois, la terre recroquevillée peu à peu, littéralement torréfiée, chaque pierre éclatant en poussière sous le pied. Les moutons mouraient alors par milliers, et quelques hommes, çà et là, sans qu´on puisse toujours le savoir (CAMUS, 1999, p. 83).

Mas não seria fácil esquecer essa miséria, esse exército de fantasmas esfarrapados vagando ao Sol, os planaltos erodidos mês após mês, a terra pouco a pouco encarquilhada, literalmente esturricada, cada pedra arrebentando em poeira sob os pés. Os carneiros morriam então aos milhares, e alguns homens, aqui e ali, sem que se pudesse saber ao certo (CAMUS, 1997, p. 77).
Ao viver aparentemente protegido desses infortúnios em que os miseráveis aldeões estavam submetidos, Daru, mesmo achando-se como um monge acolhedor e tolerante de toda e qualquer diferença e, tendo nascido naquele país, acredita-se, igualmente, protegido da inesperada chegada de outrem. Ele, apesar de pertencer àquele país, havia se imbuído da cultura ultramarina francesa que o fazia diferente de todos os seus compatriotas.
Devant cette misère, lui qui vivait presque em moine dans cette école perdue, content d´ailleurs du peu qu´il avait, et de cette vie rude, s´était senti un seigneur, avec ses murs crépis, son divan étroit, ses étagères de bois blanc, son puits, et son ravitaillement hebdomadaire en eau et en nourriture. Et, tout d´un coup, cette neige, sans avertissement, sans la détente de la pluie (CAMUS, 1999, p. 83).

Diante dessa miséria, ele que vivia quase como monge nessa escola perdida, contente aliás com o pouco que tinha, e com essa vida rude, sentira-se um senhor, com suas paredes de chapisco, o sofá estreito, as prateleiras de madeira clara, o poço, e suas provisões semanais de água e de alimentos. E, de repente, essa neve, sem aviso, sem a distensão da chuva (CAMUS, 1997, p. 77).
O prenúncio da chegada do hóspede é mostrado através da caída da neve sem aviso prévio. Inclusive a natureza era reveladora de uma súbita chegada. No entanto, era sua consciência que não se antevia de um objeto diferente e não se preparava para a repentina acolhida. Tudo viria de fora para dentro: o forasteiro, a neve, a seca, a fome, o policial, a caminhonete de Tadjid. Todas as coisas postas naquela região seriam para provê-lo de alimentos e de materiais. Mas nenhuma delas iria se instalar em sua consciência moral. Apenas uma única coisa iria fazer de Daru um ser diferente por causa da “diferençaque estava chegando. Apontava no horizonte sendo trazida por um policial. A instituição a cavalo, agora, de perto, refletia um guardião de posse de um prisioneiro.
Il sortit et  avança sur le terre-plin devant l´école. Les deux hommes étaient maintenant à mi-pente. Il reconnut dans le cavalier Balducci, le vieux gendarme qu´il connaissait depuis longtemps. Balducci tenait au bout d´une corde un Arabe qui avançait derrière lui, les mains liées, le front baissé. Le gendarme fit un geste de salutation auquel Daru ne répondit pas, tout entier occupé à regarder l´Arabe vêtu d´une djellaba autrefois bleue, les pieds dans des sandales, mais couverts de chaussettes en grosse laine grège, la tête coiffée d´une chèche étroit et court. Ils approchaient. Balducci maintenait sa bête au pas pour ne pas blesser l´Arabe et le groupe avançait lentement (CAMUS, 1999, p. 84).

Ele saiu e avançou sobre o terreno baldio diante da escola. Os dois homens estavam agora na metade da encosta. Reconheceu no cavaleiro Balducci, o velho policial que conhecia há tanto tempo. Balducci trazia amarrado à extremidade de uma corda um árabe que caminhava atrás dele, as mãos atadas, a cabeça baixa. O policial fez um gesto de saudação ao qual Daru não respondeu, totalmente ocupado em olhar para o árabe que trajava um djellaba outrora azul, os pés metidos em sandálias, mas envoltos em meias de grossa, a cabeça coberta por um turbante estreito e curto. Aproximavam-se. Balducci mantinha o animal em passo lento para não ferir o árabe e o grupo prosseguia lentamente  (CAMUS, 1997, p. 77).
Mais uma vez, o “árabe sem nome” é trazido à cena do crime por Camus. Desta vez, na condição de prisioneiro, daquela, em O Estrangeiro, na condição de vítima. Felizmente, o “árabe sem nome”, mesmo sem saber o real crime que houvera cometido, estava imobilizado e preste a ser julgado e, possivelmente, condenado. Entretanto, esse árabe permanece uma ameaça para Daru que precisa, desde logo, ser inibida. Mesmo que, aparentemente, vestisse um djellaba roto. Todavia, estava salvaguardado porque um policial da província, o velho Balducci, o acompanhava. Realmente, Daru não tinha nada a temer. Bastava entrar na escola e aquecer a sala de aula.
Camus traz para o âmbito do conhecimento, representado pela escola fria, o policial e o “árabe sem nome”. Ambos devem passar na Soleira daquela porta que é, inclusive, o pórtico do saber civilizado que, de dentro, protegerá a todos. O conflito se inicia. Desde que o árabe estivesse fora, ao longe, sendo visto do horizonte, Daru não precisaria se preocupar com nada. No entanto, desde que ele se aproxima de sua interioridade e privacidade, tudo entra em ebulição.
O árabe permanece de cabeça baixa, ainda na condição de prisioneiro, sentado ao chão como se não tivesse mais nenhuma dignidade. Entrementes, o velho Balducci aguarda o momento crucial de suas chegadas que iria justificar suas presenças. Antes, porém, decidem desamarrá-lo. Aproximar-se-ia o instante em que o policial deveria passar a Daru a custódia do prisioneiro:

“[...] Vous couchez ici? — Non. Je vais retourner à El Ameur. Et toi, tu livreras le camarade à Tanguit. On l´attend à la commune mixte”. Balducci regardait Daru avec un petit sourire d´amitié. — Qu´est-ce que tu racontes, dit l´instituteur. Tu te fous de moi ? — Non, fils. Ce sont les ordres. — Les ordres ? Je ne suis pas... Daru hésita ; il ne voulait pas peiner le vieux Corse. — Enfin, ce n´est pas mon métier. — Eh ! Qu´est-ce que ça veut dire ? A la guerre, on fait tous les métiers. — Alors, j´attendrai la déclaration de guerre ! Balducci approuva de la tête. — Bon. Mais les ordres sont là et ils te concernent aussi. Ça bouge, paraît-il. On parle de révolte prochaine. Nous sommes mobilisés, dans un sens (CAMUS, 1999, p. 85-86).


[...] Vão dormir aqui? — Não. Eu vou voltar para El Ameur. E você vai entregar o colega em Tinguit. Estão à sua espera na comuna mista. Balducci olhava para Daru com um pequeno sorriso de amizade. — Que história é essa – perguntou o professorvocê está brincando comigo? — Não, filho. São ordens. — Ordens? Não estou... Daru hesitou; não queria magoar o velho corso. — Quer dizer, essa não é minha profissão. — Bem, e o que quer dizer isso? Na guerra, faz-se de tudo. — E então, vou esperar a declaração de guerra! Balducci concordou com a cabeça. — Bem. Mas as ordens estão e dizem respeito a você também. Parece que estão acontecendo coisas. Fala-se em revolução próxima. Estamos mobilizados, de certa forma (CAMUS, 1997, p. 79-80).
Através de Balducci a instituição colonialista estende seus tentáculos de poder e congrega o professor na mesma moral insidiosa. Além dos colonizadores terem sob seu poder todo um povo milenar, continua em estado de guerra para poderem sucumbir todos os restos das diferenças encontradas nos mais recônditos cantos do deserto e poderem, igualmente, estenderem seu império em direção ao sul.
A ordem está dada a Daru. De agora em diante o “árabe sem nome” está sob sua guarda e, dia seguinte, ele deverá entregá-lo a comuna mais próxima. Por meio dele, poder-se-ia frear uma revolução a caminho. Os aldeões, os camponeses, os remanescentes berberes, todos, enfim, que pusesse em risco a dominação ultramarina. Os filhos da terra deveriam ser colocados ao abrigo do Sol. Assim como na lenda sufi[1] do homem que perdera as chaves da casa e somente as procurava embaixo de um poste de luz, todos os submetidos deveriam estar também sendo levados à luz ocidental que pode ver o objeto perdido embaixo da razão. O que fica fora da égide desse Sol não pode ser compreendido nem pode ser acolhido. Seria a pura diferença — o outro enquanto outro — manifestando-se em sua alteridade.
Daru, mesmo diante desse impasse que lhe fora imposto sem pedir licença, quer retomar sua vida austera, olhar a natureza de sua janela, aguardar o Sol escaldante depois de ter derretido a neve. Porém, do lado de fora da escola, tanto a natureza quanto a ordem estabelecida moral, evocam sua atenção:
Derrière le mur, on entendit le cheval s´ébrouer et frapper du sabot. Daru regardait par la fenêtre. Le temps se levait décidément, la lumière s´élargissait sur le plateau neigeux. Quand toute la neige serait fondue, le Soleil régnerait de nouveau et brûlerait une fois de plus les champs de pierre. Pendant des jours, encore, le ciel inaltérable déverserait sa lumière sèche sur l´étendue Solitaire où rien ne rappelait l´homme (CAMUS, 1999, p. 86-87).

Atrás da parede, ouvia-se o cavalo relinchar e bater com o casco. Daru olhava pela janela. Decididamente, o tempo melhorava, a luz se ampliava sobre o planalto cheio de neve. Quando toda a neve derretesse, o Sol reinaria novamente e queimaria uma vez mais os campos de pedra. Durante muitos dias, ainda, o céu inalterável despejaria sua luz seca sobre a imensidão Solitária, onde nada lembrava o homem (CAMUS, 1997, p. 80).
A Solidão de Daru havia-lhe acostumado à ausência de toda presença humana. Com ela não haveria ordens nem moral a cumprir. Sua vida estava posta na mais perfeita harmonia com a natureza, inclusive com o deserto. Não soubera ele que o verdadeiro encontro se faz no deserto. Nele, o outro, mesmo sendo um beduíno, pode se comunicar quando pronuncia sua própria palavra e se revela como um ser diferente. Mesmo sem se saber a língua do outro, sem saber como comer a sua comida e sem saber como se vestir basta o olhar diante da “face-a-face” para que o encontro se estabeleça. A única resposta possível é deixar o outro se pronunciar. Somente desse modo a linguagem é estabelecida. Visto desse modo, aquele encontro houvera iniciado. A presença de outrem começara a revelar paulatinamente o “árabe sem nome”. Algo nele revelava uma semelhança com um dos seus. Mesmo vestindo-se em traje roto, esgarçado pelo tempo, sem saber falar nenhuma palavra em francês, era um homem. Havia matado o primo, segundo Balducci. Retorquira Daru:
— Il est contre nous? — Je ne crois pas. Mais on ne peut jamais savoir. — Pourquoi a-t-il tué ? — Des affaires de famille, je crois. L´un devait du grain à l´autre, paraît-il. Ça n´est pas clair. Enfin, bref, il a tué le cousin d´un coup de serpe. Tu sais, comme au mouton, zic !... Balducci fit le geste de passer une lame sur sa gorge et l´Arabe, son attention attiré, le regardait avec une sorte d´inquiétude. Une colère subite vint à Daru contre cet homme, contre tous les hommes et leur sale méchanceté, leurs haines inlassables, leur folie du sang (CAMUS, 1999, p. 87).

— É contra nós? — Acho que não. Mas nunca se sabe. — Por que matou? — Negócios de família, eu acho. Parece que um devia cereal ao outro. Não ficou claro. Enfim, matou o primo com um golpe de foice. Sabe, como um carneiro, zapt!... Balducci fez o gesto de passar uma lâmina sobre a garganta, e o árabe, atraída sua atenção, olhava-o com uma espécie de inquietação. Daru sentiu uma cólera súbita contra esse homem, contra todos os homens e sua suja maldade, seus ódios incansáveis, sua loucura de sangue (CAMUS, 1997, p. 80-81).
Ao saber do crime de sangue, Daru indigna-se com a maldade do ato e se faz Solidário com toda a humanidade sofredora e vítima de todos os atos que mortificam o ser humano. Contudo, estava em frente a alguém que havia cometido um assassinato. Seus princípios morais e éticos não permitiriam tê-lo como hóspede. No entanto, a força da moral social e os mores franceses faziam dele um anfitrião sócio-histórico que contribuía com a manutenção dos padrões. Ali, Solitário, naquele canto perdido, tinha que cumprir com os ditames da cidadania francesa. Queria poder estar isento desse tipo de responsabilidade. Um dia fora feliz com os seus pobres alunos das redondezas. O Sol deveria retornar logo e trazer com ele a paz do planalto leste. Mas os diálogos com o policial interpolavam-se com as aparições, pouco a pouco, das discretas características do árabe.
Quand il entra de nouveau dans la chambre, Balducci était sur le divan. Il avait dénoué la corde qui le liat à l´Arabe et celui-ci s´était accroupi près du poêle. Les mains toujours liées, le chèche maintenant poussé en arrière, il regardait vers la fenêtre. Daru ne vit d´abord que ses énormes lèvres, pleines, lisses, presque négroides ; le nez cependant était droit, les yeux sombres, pleins de fièvre. Le chèche découvrait un front buté et, sous la peau recuite mais un peu décolorée par le froid, tout le visage avait un air à la fois inquiet et rebelle qui frappa Daru quand l´Arabe, tournant son visage vers lui, le regarda droit dans les yeux (CAMUS, 1999, p. 84-85).

Quando tornou a entrar no quarto, Balducci estava no sofá. Havia desatado a corda que o ligava ao árabe e este se agachara perto do fogão. Com as mãos ainda atadas, o turbante agora empurrado para trás, ele olhava na direção da janela. A princípio Daru viu apenas seus lábios enormes, cheios, lisos, quase negróides; no entanto o nariz era reto, os olhos escuros, cheios de febre. O turbante descobria uma testa teimosa e, sob a pele queimada, mas um pouco desbotada pelo frio, o rosto todo tinha um aspecto ao mesmo tempo inquieto e rebelde que impressionou Daru quando o árabe, voltando-lhe o rosto, olhou-o bem nos olhos (CAMUS, 1997, p. 78 ).
O árabe, ao desvelar-se, fez com que Daru se revestisse de duas propriedades pessoais que podiam, simultaneamente, cumprir com as exigências da vida formal e com as evocações da vida informal, representada pelo inesperado hóspede. Por incrível que pudesse parecer a Daru, o hóspede não revelava interlocução alguma. Tudo nele era diferente do esperado. Nem clamava por compaixão, mesmo que se fizesse através do olhar; não Solicitava perdão, mesmo que o professor pudesse concedê-lo; nem esperava ser libertado, mesmo sem saber que Daru pretendera. Toda essa indiferença com o que era justo e correto perante os juízos de Daru, fazia do árabe o desconhecido por excelência e imune a toda forma de coerção que pudesse ser imputada. Portava-se como um estrangeiro em sua própria terra; alheio a qualquer coisa que significasse civilização ocidental moderna. Todo aquele comportamento era intrigante demais para Daru. Todos os seus pressupostos morais não davam conta daquela nova situação. Como deveria proceder à frente de um estranho que, ao mesmo tempo, era o dono da terra? Qual seria a atitude correta que não viesse deixar um sentimento de culpa que iria preencher o seu deserto inabalável? Seu medo maior era que uma atitude, tão-somente uma atitude, viesse quebrar a harmonia dos dias e o deserto se transformasse no mais inóspito lugar que nenhum homem, nem mesmo ele, pudesse sobreviver sem culpa. O peso que se instalara em sua consciência era maior que a imensidão do deserto. Mas a sua única realidade que não podia duvidar era de que estava para tomar uma decisão. Talvez, quem sabe, naquelas últimas horas agonizantes alguma idéia viria lhe trazer a paz de volta e o sossego das coisas que não podem ser transformadas.
Era preciso aguardar, mas, de antemão, sabia que outro hóspede não viria em seu socorro para decidir por algo que não o comprometesse. Naquela tarde que começara a anoitecer trazia-lhe, não somente o breu da noite, mas a espada da decisão. Quisera poder estender o tempo até o infinito e quando acordasse o árabe tivesse partido e sua culpa teria partido com ele. O velho policial ainda estava na escola e Daru encontra uma saída que, talvez, viesse ser a grande Solução:
— Écoute, Balducci, dit Daru soudainement, tout ça me dégoûte, et ton gars le premier. Mais je ne le livrerai pas. Me battre, oui, s´il le faut. Mais pas ça. Le vieux gendarme se tenait devant lui et le regardait avec sévérité. — Tu fais des bêtises, dit-il lentement. Moi non plus, je n´aime pas ça. Mettre une corde à un homme, malgré les années, on ne s´y habitue pas et même, oui, on a honte. Mais on ne peut pas les laisser faire. — Je ne le livrerai pas, répéta Daru. — C´est un ordre, fils. Je te le répète. — C´est ça. Répète-leur ce que je t´ai dit : je ne le livrerai pas. Balducci faisait un visible effort de réflexion. Il regardait l´Arabe et Daru. Il se désida enfin. — Non. Je ne leur dirai rien. Si tu veux nous lâcher, à ton aise, je ne te dénoncerai pas. J´ai l´ordre de livrer le prisonnier : je le fais. Tu vas maintenant me signer le papier. — C´est inutile. Je ne nierai pas que tu me l´as laissé. — Ne sois pas méchant avec moi. Je sais que tu diras la vérité. Tu es d´ici, tu es un homme. Mais tu dois signer, c´est la règle (CAMUS, 1999, p. 88-89).

— Ouça, Balducci — disse Daru repentinamente — tudo isso me repugna, sobretudo esse rapaz. Mas não vou entregá-lo. Combater, sim, se for preciso. Mas isso não. O velho policial se mantinha diante dele e olhava-o com severidade. — Está fazendo bobagem — disse lentamente. — Eu também não gosto disso. Botar uma corda num homem, apesar dos anos, a gente não se habitua a isso, fica até com vergonha. Mas não se pode deixá-los fazer o que quiserem. — Não vou entregá-lo — repetiu Daru. — É uma ordem, filho. Digo e repito. — É isso. Repita para eles o que eu disse: não vou entregá-lo. Balducci fazia um esforço visível de reflexão. Olhava para o árabe e para Daru. Afinal decidiu-se. — Não. Não vou dizer nada a eles. Se quiser nos abandonar, à vontade, não vou denunciá-lo. Recebi a ordem de entregar o prisioneiro: é o que estou fazendo. Agora assine o papel. —  É inútil. Não vou negar que o deixou comigo. — Não seja malvado comigo. Sei que vai dizer a verdade. Você é daqui, é um homem. Mas precisa assinar, é o regulamento (CAMUS, 1997, p. 82-83).
No entanto, essa decisão é tomada a partir somente de uma parte do problema que se lhe impõe, mas não o responsabilizaria, segundo Daru, na decisão do todo da situação. Ele escolheu apenas uma parte para se sair daquela situação. Sua decisão é isenta de toda e qualquer responsabilidade com a problemática da existência, do mundo e de todos os Outrens. Seu julgamento encerra-se na realidade imediata que lhe garantirá sua sobrevivência. Por conseguinte, ao se livrar da responsabilidade social e jurídica, estaria, pelo pressuposto de sua consciência, livre de uma coerção interna que lhe tiraria o sono. Ambos estariam redimidos. Entretanto, as imagens de sua condição humana naquelas terras insólitas perambulavam como os vaga-lumes por sobre sua cabeça.
O silêncio do hóspede era quase ensurdecedor, mas não impedia que Daru matutasse em surdina o que estava acontecendo nem o que teria causado toda aquela situação. Aquela noite silenciosa, paradoxalmente, falava-lhe como outrora e estendia seu manto sobre Daru que refletia deitado no sofá, ainda a procura de uma saída para todo aquele impasse que não havia sido reSolvido. O árabe permanecia imóvel como se aguardasse na sala de espera de um tribunal a última sentença. Camus destaca, num trecho, as passagens do professor pela Soleira da porta e de como mudava de idéia. Simbolicamente, transpunha-se em limiares e, somente desse modo, Daru capturava o fio de Ariadne para auxiliar-lhe naquele labirinto de sua interioridade.
Longtemps, il resta étendu sur son divan à regarder le ciel se fermer peu à peu, à écouter le silence. C´était ce silence qui lui avait paru pénible les premiers jours de son arrivée, après la guerre. Il avait demandé un poste dans la petite ville au pied des contreforts qui séparent du désert les hauts plateaux. Là, des murailles rocheuses, vertes et noires au nord, roses ou mauves au sud, marquaient la frontière de l´éternel été. On l´avait nommé à un poste plus au nord, sur le plateau même. Au début, la Solitude et le silence lui avaient été durs sur ces terres ingrates, habitées seulement par des pierres. Parfois, des sillons faisaient croire à des cultures, mais ils avaient été creusés pour mettre au jour une certaine pierre, propice à la construction. On ne labourait ici que pour récolter des cailloux. D´autres fois, on grattait quelques copeaux de terre, accumulée dans des creux, dont on engraisserait les maigres jardins des villages. C´était ainsi, le caillou seul couvrait les trois quarts de ce pays. Les villes y naissaient, brillaient, puis disparaissaient ; les hommes y passaient, s´aimaient ou se mordaient à la gorge, puis mouraient. Dans ce désert, personne, ni lui ni son hôte n´étaient rien. Et pourtant, hors de ce désert, ni l´un ni l´autre, Daru le savait, n´auraient pu vivre vraiment (CAMUS, 1999, p. 90-91).

Durante muito tempo, ficou estendido no sofá olhando o céu fechar-se pouco a pouco, escutando o silêncio. Era o silêncio que lhe parecera difícil nos primeiros dias após sua chegada, depois da guerra. Havia pedido um posto na pequena cidade ao dos contrafortes que separam os altiplanos do deserto. , as muralhas rochosas, verdes e negras ao norte, rosas ou lilases ao sul, marcavam a fronteira do verão eterno. Havia sido nomeado para um posto mais ao norte, no próprio planalto. No princípio, a Solidão e o silêncio haviam sido duros nessas terras ingratas, habitadas apenas pelas pedras. Às vezes, os sulcos davam a impressão de culturas, mas haviam sido cavados para revelar determinada pedra, propícia à construção. Aqui se lavrava para colher seixos. Outras vezes, raspava-se alguns pedaços de terra, acumulados nas escavações, com os quais se adubariam os magros jardins das aldeias. Era assim, os seixos cobriam três quartos dessa região. As cidades nasciam, brilhavam, e depois desapareciam; os homens passavam por , amavam-se ou engalfinhavam-se e depois morriam. Nesse deserto, ninguém, nem ele nem seu hóspede, era nada. E no entanto, fora desse deserto, Daru bem o sabia, nem um nem outro teriam conseguido realmente viver (CAMUS, 1997, p. 83-84).
O professor, após ter se embevecido de tantas lembranças e de tantas presenças desconcertantes, quisera estar, de novo, fora de órbita. Quisera poder ver de cima toda aquela situação como o seu céu límpido que somente o deserto pode revelar. Mas, por mais paradoxal que parecesse, mesmo em meio àquela situação, possuía ainda certa tranqüilidade que não saberia descrever de onde a teria conquistado. Talvez o fato de, por segurança, ter pegado o revólver e de tê-lo colocado no bolso; talvez pelo fato de saber que estava acolhendo um igual mesmo sem ter tido a coragem de admitir para o amigo Balducci. Talvez, e o mais provável seria, que ambos não eram nada fora daquele deserto.
Camus tece, fio a fio, um encontro sem rasuras e sem fissuras hereditárias entre o Árabe e Daru. Ambos foram fundidos no cadinho da humilhação e da Solidão do deserto. Tanto um como outro cindiram os seixos do caminho e encontravam-se ali, frente a frente, a espera de uma decisão que remisse a ambos. Mas a grande esperança de Daru era que um terceiro excluído tomasse a forma humana e, com uma espada da justiça, dividisse o caminho de ambos. Imbuído desse desejo inócuo, decide, por fim, levantar-se do sofá: “Quando ele se levantou, nenhum ruído vinha da sala de aula. Espantou-se com a franca alegria que o invadia de pensar que o árabe poderia ter fugido e que ele ficaria novamente sem precisar decidir nada. Mas o prisioneiro estava ” (CAMUS, 1997, p. 84) [2].
A decisão, por mais desconcertante que fosse, deveria partir de Daru. O prisioneiro havia assumido a condição de réu confesso, mesmo sem pronunciar-se em seu próprio favor. O Árabe o havia reconhecido como juiz e aguardava que o professor tivesse a hombridade necessária para entregá-lo. Mas a hombridade de Daru opunha-se, naquele contexto, a da requerida em sua cultura ultramarina. Sua moral, perante aquele outro, não era para estar dividida, nem para ser descumprida. A moral que se estabelecia, pouco a pouco, através dos meandros daquela presença, era a de deixá-lo partir e ser julgado pelos seus verdadeiros compatriotas. Fossem berberes ou ateus, muçulmanos ou simplesmente árabes. O que importava era que a sentença a ser executada deveria partir do seu próprio lugar e não da sede do saber, ora em decadência, da qual, Daru, apenas como representante, decidiria o destino de um homem do deserto. As planícies rebelar-se-iam contra ele, o Sol reteria seus raios e o inverno do mundo duraria infindável sobre a escola. Seus prenúncios davam os primeiros sinais. A noite durava a passar. O prisioneiro deitado com os pés em direção a janela apontava o caminho da saída e da libertação, mas permanecia imóvel a espera do dia seguinte.
O Árabe era mais forte e mais corajoso que Daru. Sua espera não emitia nenhum sinal de angústia. Seu silêncio, no entanto, pronunciava as vozes ensandecidas dos excluídos e dos exilados em sua própria terra. O cordeiro iria ser imolado, mas a noite do Getsêmani não adviria o desespero humano-divino. Aquele que estava ali, à espera, era um homem imolado. No meio da noite Daru continuava acordado e Camus, com um candeeiro, traz à luz, o desejo do outro, enquanto queo árabe continuava imóvel, mas seus olhos pareciam estar abertos. Um vento leve rondava a escola. Talvez ele expulsasse as nuvens e o Sol voltasse” (CAMUS, 1997, p. 87).[3] Contudo,
Dans la nuit, le vent grandit. Les poules s´agitèrent un peu, puis se turent. L´Arabe se retourna sur le côté, présentant le dos à Daru et celui-ci crut l´entendre gémir. Il guetta ensuite sa respiration, devenue plus forte et plus régulière. Il écoutait ce souffle si proche et rêvait sans pouvoir s´endormir. Dans la chambre où, depuis un an, il dormait seul, cette présence le gênait. Mais elle le gênait aussi parce qu´elle lui imposait une sorte de fraternité qu´il refusait dans les circonstances présentes et qu´il connaissait bien : les hommes, qui partagent les mêmes chambres, Soldats ou prisonniers, contractent un lien étrange comme si, leurs armures quittées avec les vêtements, ils se rejoignaient chaque soir, par-dessus leurs différences, dans la vieille communauté du songe et de la fatigue. Mais Daru se secouait, il n´aimait pas ces bêtises, il fallait dormir (CAMUS, 1999, p. 94).

Durante a noite, o vento aumentou. As galinhas se agitaram um pouco, depois se calaram. O árabe virou de lado, com as costas para Daru, e este pensou tê-lo ouvido gemer. Vigiou em seguida sua respiração, que se tornara mais forte e mais regular. Escutava esse sopro tão próximo e sonhava sem conseguir adormecer. No quarto em que, há mais de um ano, dormia sozinho, essa presença o incomodava. Mas incomodava-o também porque lhe impunha uma espécie de fraternidade, que ele recusava nas atuais circunstâncias e que conhecia bem: os homens que compartilham os mesmo quartos, Soldados ou prisioneiros, adquirem um estranho vínculo como se, tendo deixado as armaduras com as roupas, se unissem todas as noites, acima de suas diferenças, na velha comunidade do sonho e do cansaço. Mas Daru se sacudia, não gostava dessas bobagens, era preciso dormir (CAMUS, 1997, p. 87).
A analogia que a consciência de Daru fizera dos homens que estabelecem cumplicidade em estado de confinamento com a presença do estranho, deixa-lhe desconcertado, todavia, em estado de suposta vulnerabilidade. Coisa que, Camus, não imprime ao Árabe. O medo de haver alguma intimidade é somente localizado em Daru. O Árabe permanecia incólume a tudo. Inclusive a qualquer possibilidade de contato. Sua espreita não passava de uma rigorosa atenção com o esperado que iria encontrar desfecho no dia seguinte. Era Daru que se inquietava com a presença alheia. Cada gesto ou movimento naqueles minutos eternos fazia do personagem uma presa a mercê da sorte. Cada milímetro de movimento era medido por Daru que ainda suspeitava do risco de ser agredido ou de deixar o Árabe partir. Ambos vigiavam-se como prisioneiros do próprio destino. Qualquer gesto furtivo desencadearia uma nova situação e, talvez, Daru não viesse a se surpreender. Mesmo achando que corria risco de vida, nada se igualava ao que deveria realmente fazer a partir da chegada da aurora. Mas, a noite reinava como se fosse eterna:
Un peu plus tard pourtant, quand l´Arabe bougea imperceptiblement, l´instituteur ne dormait toujours pas. Au deuxième mouvement du prisonnier, il se raidit, en alerte. L´Arabe se soulevait lentement sur les bras, d´un mouvement presque somnambulique. Assis sur le lit, il attendit, immobile, sans tourner la tête vers Daru, comme s´il écoutait de toute son attention. Daru ne bougea pas : il venait de penser que le revolver était resté dans le tiroir de son bureau. Il valait mieux agir tout de suite. Il continua cependant d´observer le prisonnier qui, du même mouvement huilé, posait ses pieds sur le Sol, attendait encore, puis commençait à se dresser lentement. Daru allait l´interpeller quand l´Arabe se mit en marche, d´une allure naturelle cette fois, mais extraordinairement silencieuse. Il allait vers la porte du fond qui donnait sur l´appentis. Il fit jouer le loquet avec précaution et sortir en repoussant la porte derrière lui, sans la refermer. Daru n´avait pas bougé : « Il fuit, pensait-il seulement. Bon débarras ! » Il tendit pourtant l´oreille. Les poules ne bougeaient pas : l´autre était donc sur le plateau. Un faible bruit d´eau lui parvint alors dont il ne comprit ce qu´il était qu´au moment où l´Arabe s´encastra de nouveau dans la porte, la referma avec soin, et vint se recoucher sans un bruit. Alors Daru lui tourna le dos et s´endormit. Plus tard encore, il lui sembla entendre, du fond de son sommeil, des pas furtifs autour de l´école. « Je rêve, je rêve ! » se répétait-il. Et il dormait (CAMUS, 1999, p. 94-95).

Pouco depois no entanto, quando o árabe se mexeu imperceptivelmente, o professor continuava acordado. No segundo movimento, ele se retesou, alerta. O árabe se erguia lentamente sobre os braços, num movimento quase sonâmbulo. Sentado na cama, esperou, imóvel, sem voltar a cabeça para Daru, como se escutasse com toda a atenção. Daru não se mexeu: acabava de pensar que o revólver ficara na gaveta da mesa. Seria melhor agir logo. No entanto continuou a observar o prisioneiro que, com o mesmo movimento escorregadio, colocava os pés no chão, esperava, e depois começava a erguer-se lentamente. Daru ia interpelá-lo quando o árabe começou a andar, desta vez com um passo natural, mas extraordinariamente silencioso. Ia em direção à porta dos fundos que dava para o alpendre. Abriu o trinco com cuidado e saiu empurrando a porta atrás de si, sem fechá-la. Daru não se moveu. ´Está fugindo`, pensou apenas. ´Que alívio!` No entanto, aguçou os ouvidos. As galinhas não se mexiam: o outro estava portanto no planalto. Um fraco ruído de água chegou então a seus ouvidos, que identificou no momento em que o árabe se esgueirou de novo pela porta, fechou-a com cuidado e voltou a deitar-se sem um ruído. Então Daru deu-lhe as costas e adormeceu. Mais tarde, pareceu-lhe ouvir, do fundo de seu sono, passos furtivos em torno da escola. — Estou sonhando, estou sonhando — repetia. E dormia (CAMUS, 1997, p.  87-88).
No meio da interminável noite Daru espreitara os movimentos do Árabe, sua saída até o alpendre e o inesperado retorno. O seu mais profundo desejo era que o prisioneiro partisse, mesmo que levasse consigo todos os seus bens pessoais. Ao tempo que desejava o improvável, trazia para si o conforto da presença daquele outro sem nome, mas inteiramente pleno de humanidade. Por mais paradoxal que pudesse parecer, Daru sentia-se protegido com a presença imorredoura do Árabe. Quisera mesmo que ele ficasse todas as noites e todos os dias e que a aurora não trouxesse nenhuma decisão a tomar. Antes de voltar a dormir, porém, ouve passos furtivos em torno da escola. Pelo fato de estar em sono de vigília, pudera discernir apenas passos. Não importava de quem eram, estava protegido dentro da escola. Os “outros” começavam a chegar antes da alvorada. Seu destino começava a ser lacrado com o sinete da rejeição.
Camus não ameniza em nenhum momento a decisão que Daru deveria tomar, nem lhe adia para o dia seguinte. Todo o contexto era mais do que favorável para que o professor empunhasse a decisão. Seu coração doía e sua consciência “astuciava” [4] algo que libertasse daquilo que houvera se tornado seu tormento nas últimas horas. Contudo, o Sol já havia raiado e com ele a situação configurara-se irreversível. Não havia mais o amigo Balducci para compartilhar com Daru o peso daquela carga. Tudo estava posto.
café était prêt. Ils le burent, assis tous deux sur le lit de camp, en mordant leurs morceaux de galette. Puis Daru mena l´Arabe sous l´appentis et lui montra le robinet où il faisait sa toilette. Il rentra dans la chambre, plia les convertures et le lit de camps, fit son propre lit et mit la pièce en ordre. Il sortit alors sur le terre-plein en passant par l´école. Le Soleil montait déjà dans le ciel bleu ; une lumière tendre et vive inondait le plateau désert (CAMUS, 1999, p. 96).

O café estava pronto. Beberam, ambos sentados na cama de campanha, mordendo seus pedaços de galette. Depois Daru levou o árabe até o alpendre e mostrou-lhe a bica onde se lavava. Voltou para o quarto, dobrou os cobertores e a cama de campanha, fez a sua própria cama e arrumou o quarto. Saiu então para o terreno baldio passando pela escola. O Sol já nascia no céu azul; uma luz suave e intensa inundava o planalto deserto (CAMUS, 1997, p. 89).
A sofreguidão de Daru acompanhava-o como serva penitente, todavia, os elementos que desencadearam aquele sortilégio permaneciam inalterados. Camus, imperdoavelmente, não desconecta em nenhum instante a responsabilidade de Daru perante a presença estonteante do outro. A culpa oriundaA Queda, não se iguala em presença. Aquela se instalara na consciência de Jean-Baptiste e bastava submergi-la nos canais de Amsterdã para que o arrependimento e a confissão se fizessem paulatinamente. Esta culpa se sorve antecipadamente por uma obrigação de ato moral em que nãoremissão alguma. A Ética do Absurdo adquire sua mais ousada e autêntica performance. O paradoxo da ausência agora é evidenciado pela presença do outro em que nãocomo escapar de seu apelo. Aqui nãoRisos nem Gritos que ecoam noite adentro. O que há é simplesmente a presença inominável de outrem. Mas, o pobre Daru preferiria que nada disso tivesse acontecido. Que a paz reinasse naquelas bandas, que fosse acordado por suas galinhas e que o Sol voltasse a brilhar como sempre fizera. Matutava, mais uma vez, Daru:
Le crime imbécile de cet homme le révoltait, mais le livrer était contraire à l´honner : d´y penser seulement le rendait fou d´humiliation. Et il maudissait à la fois les siens qui lui envoyaient cet Arabe et celui-ci qui avait osé tuer et n´avait pas su s´enfuir (CAMUS, 1999, p. 96).

O crime imbecil desse homem o revoltava, mas entregá-lo era contrário à honra: ficava louco de humilhação só de pensar nisso. E amaldiçoava ao mesmo tempo os seus que lhe mandavam esse árabe e este último que ousara matar e não soubera fugir (CAMUS, 1997, p. 89).
A possibilidade de desvencilhar-se do prisioneiro era impossível. Restava assumir, de agora em diante, tudo o que fosse possível, mas que não lhe desonrasse. Entrementes a partida, Daru decide prover o Árabe de alimentos para a viagem. Sua compaixão tomava forma de humanidade e sua razão recuperara, com a presença do Sol, o discernimento. Ambos teriam que partir em direção a comuna. Desde, então, dos primeiros passos dados, ouve-se, mais uma vez, um ligeiro ruído. Agora era a marcada presença de estranhos que não iriam poder partir junto com o Árabe. Daru ainda não saberia se dar conta da gravidade daquelas presenças.
Ils marchèrent une heure et se reposèrent auprès d´une sorte d´aiguille calcaire. La neige fondait de plus en plus vite, le Soleil pompait aussitôt les flaques, nettoyait à toute allure le plateau qui, peu à peu, devenait sec et vibrait comme l´air lui-même. Quand ils reprirent la route, le Sol résonnait sous leurs pas. De loin en loin, un oiseau fendait l´espace devant eux avec un cri joyeux. Daru buvait, à profondes aspirations, la lumière fraîche. Une sorte d´exaltation naissait en lui devant le grand espace familier, presque entièrement jaune maintenant, sous sa calotte de ciel bleu (CAMUS, 1999, p. 97).

Caminharam durante uma hora e descansaram junto a uma espécie de agulha calcária. A neve se derretia cada vez mais depressa, o Sol começava a evaporar as poças, limpando com toda a velocidade o planalto que, pouco a pouco, tornava-se seco e vibrava como o próprio ar. Quando retomaram o caminho, o chão ressoava sob seus passos. De quando em quando, um pássaro cortava o espaço diante deles com um grito de alegria. Daru bebia, com inspirações profundas, a luz fresca. Uma espécie de exaltação nascia dentro dele diante do grande espaço familiar, agora quase totalmente amarelo, sob sua calota de céu azul (CAMUS, 1997, p. 90).
Camus re-instaura a harmonia do planalto e do deserto. A natureza começa a cumprir com sua nova tarefa de estação vindoura. O pássaro da liberdadesinais de contentamento ao longo do caminho e Daru com sede e com saudades da luz fresca, sorvia-a como se tivesse reencontrado a fonte da vida. Parecia que tudo estava de volta, inclusive ele. Sua liberdade fora, enfim, recuperada e podia se pronunciar sem remorso diante daquele novo dia.
Com efeito, pudera apontar duas trilhas para o prisioneiro: uma, há duas horas, poderia chegar a Tinguit aonde se encontrava a administração e a polícia da província; outra, há um dia de caminhada aonde encontraria nômades e abrigo, segundo suas lei. O Árabe adquiriu uma espécie de pânico no rosto. Fora obrigado a decidir junto com Daru uma saída que, em sua consciência, já estava posta. 
Daru hésita. Le Soleil était maintenant assez haut dans le ciel et commençait de lui dévorer le front. L´instituteur revint sur ses pas, d´abord un peu incertain, puis avec décision. Quand il parvint à la petite colline, il ruisselait de sueur. Il la gravit à toute allure et s´arrêta, essoufflé, sur le sommet. Les champs de roche, au sud, se dessinaient nettement sur le ciel bleu, mais sur la plaine, à l´est, une buée de chaleur montait déjà. Et dans cette brume légère, Daru, le coeur serré, découvrit l´Arabe qui cheminait lentement sur la route de la prison (CAMUS, 1999, p. 99).

Daru hesitou. O Sol agora estava bastante alto no céu e começava a devorar-lhe a testa. O professor fez meia volta, primeiro um pouco inseguro, depois com decisão. Quando chegou à pequena colina, estava encharcado de suor. Escalou-a correndo e se deteve, sem fôlego, no topo. Os campos rochosos, ao sul, desenhavam-se nitidamente sobre o céu azul, mas sobre a planície, a leste, uma névoa de calor já se elevava. E nessa bruma ligeira, Daru, com o coração apertado, descobriu o árabe que caminhava lentamente em direção à prisão (CAMUS, 1997, p. 92).
O Sol entra em cena nesse conto de Camus como juiz do destino que Daru tentara impedir de se completar. Em O Estrangeiro, o protagonista Meursault é inteiramente invadido por ele. Aqui, em O Hóspede, o Sol penetra nos juízos de Daru como guardião da honra da terra. , ele é o próprio destino de M. Aqui, o destino é decidido pelo protagonista, por uma possibilidade de escolha que nãoem Meursault. Concernentemente, a irreversibilidade da escolha do Árabe estava contida em sua própria terra. Terra e Sol são símbolos desse deserto, aparentemente, inóspito. O vento somente entra em cena para trazer a mensagem do abSoluto. As brumas que se antepuseram ao coração apertado de Daru era o reflexo do visto de Orfeu. Eurídice permanecia atrás dele, mesmo quando seu olhar deparava-se para trás. Por conseguinte, pouco tempo depois de o Árabe distanciar-se, um sentimento de compunção acomodara-se em seu peito como se fosse um novo hóspede. E,
[...] planté devant la fenêtre de la salle de classe, l´instituteur regardait sans la voir la jeune lumière bondir des hauteurs du ciel sur toute la sourface du plateau. Derrière lui, sur le tableau noir, entre les méandres des fleuves français s´étalait, tracée à la craie par une main malhabile, l´inscription qu´il venait de lire : « Tu as livré notre frère. Tu paieras. » Daru regardait le ciel, le plateau et, au-delà, les terres invisibles qui s´étendaient jusqu´à la mer. Dans ce vaste pays qu´il avait tant aimé, il était seul (CAMUS, 1999, p. 99).

[...] plantado diante da janela da sala de aula, o professor olhava sem ver a jovem luz saltar das alturas do céu sobre toda a superfície do planalto. Atrás dele, no quadro-negro, entre os meandros dos rios franceses exibia-se, riscada a giz por uma mão canhestra, a inscrição que acabava de ler: “Você entregou nosso irmão. Vai pagar por isso. Daru olhava para o céu, para o planalto e, mais além, para as terras invisíveis que se estendiam até o mar. Nessa vasta região que ele tanto amara, estava (CAMUS, 1997, p. 92).
Embora quisesse tartamudear algumas palavras, a inscrição canhestra que acabava de ler no quadro transportava-o para longe de tudo aquilo. O quinhão a ser pago, de agora em diante, parecia-lhe maior que os tormentos sofridos no decorrer da noite infinita. O remorso que se iniciara era tão vasto quanto o deserto e, fosse aonde fosse, ele o acompanharia sem trégua.
A indefensável moralidade impressa por Camus ao final desse conto mostra o quanto de humanidade perdida ele tentara recuperar. Daru, muito embora estivesse posto à prova com a chegada do hóspede, era um cavalheiro Solitário que se pode encontrar, tanto nos desertos de Kalahari como nas selvas de pedras dos paraísos urbanos. Sua marca de humanidade é restaurada com o pesar da revolta de sua consciência diante daquela atitude. Todavia, os mores de sua formação haviam lhe ditado como sendo justa e própria.
Remorso e Culpa resume, tanto em O Hóspede, como em A Queda, mesmo que sumariamente, a condição humana. Mesmo que se seja homem de uma época em que nãolugar na consciência para abrigar o outro em sua diferença.

Referências:
§   CAMUS, Albert. O exílio e o reino. Tradução de Valerie Rumjanek. Rio de Janeiro: Record, 1997.
§   CAMUS, Albert. L’exil et le royaume. Paris : Gallimard, 1999.





[1] Lenda Sufi — um homem, ao voltar para sua casa, dá-se conta que perdera suas chaves no caminho. Decide refazer todo o trajeto para procurar suas chaves. Encontra, enfim, um poste de luz e permanece embaixo dele a procurar as chaves. Começam a se aproximar alguns transeuntes que o conheciam e decidem procurar com ele. Após algumas horas, um novo transeunte se aproxima e pergunta a todos aqueles homens o que eles estavam procurando. O bom homem que houvera perdido as chaves explica-lhe o ocorrido. — Mas porque vocês estão procurando as chaves somente embaixo do poste de luz? E se elas foram perdidas ao longo do caminho? Replica o bom homem: — mas não tem luz! Fonte: anônimo. (N. do A.).
[2] Quand il se leva, aucun bruit ne venait de la salle de classe. Il s´étonna de cette joie franche qui lui venait à la seule pensée que l´Arabe avait pu fuir et qu´il allait se retrouver seul sans avoir rien à décider. Mais le prisonnier était là (CAMUS, 1999, p. 91).
[3] L´Arabe ne bougait toujours pás, mais sés yeux semblaient ouverts. Un léger vent rôdait autour de l´école. Il chasserait peut-être les nuages et le Soleil reviendrait (CAMUS, 1999, p. 94).
[4] Astuciava — apesar de não ser verbo, a ação da consciência de Daru empreendia uma saída astuciosa, porém, em sua própria ação, a astúcia estava presente. (N. do A.).

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