A Extemporânea Chegada
de Outrem
Lourenço Leite
A
|
O conto ,
O Hóspede ,
se considerada narrativa realística, apresentado por
Camus, relata um episódio
em um
tempo perdido no planalto
leste da Argélia. Em que um professor primário ,
de formação francesa é surpreendido em sua casa /escola pela chegada de
um velho
policial que
trouxera um árabe ,
feito prisioneiro ,
para ser entregue ao distrito
da comuna mais
próxima por
ter cometido um
crime de sangue .
Impedido de continuar a trajetória ,
o policial deve retornar
ao seu vilarejo ,
porém , antes ,
delega ao professor a custódia
do prisioneiro . Acometido de grande embaraço ,
o professor reluta diante
da tarefa insólita ,
mas sente-se obrigado
a realizá-la impelido por normas civis daquele país .
Devido ao cair
da tarde , o prisioneiro
deve ser encaminhado dia
seguinte ao seu
destino para ser julgado e, possivelmente, executado. Entrementes , a hora
da partida , o professor
entra em estado
de grande estupor
e dúvida diante
daquela responsabilidade inesperada . O Árabe , apesar de se encontrar sozinho com o mestre , não tenta nenhuma fuga
nem apela
por nenhuma compaixão .
Porta-se indiferente a tudo . Tendo decidido não
apresentá-lo à comuna , o professor
muniu-lhe de alimentos para
o resto da viagem ,
indicou-lhe o caminho e retornara a sua escola . A última visão que tivera do árabe era ele se
dirigindo à prisão . Atormentado com
a dúvida se deveria tê-lo entregue as autoridades
policiais ou
tê-lo convencido a fugir ,
o professor é flagrado com
uma inscrição no quadro
da sala de aula :
“Você entregou nosso
irmão . Vai pagar
por isso ”.
Dá-se conta que
estava só .
Ricochetado
de paradoxos morais ,
o protagonista desse conto , representa, dentre
outras coisas , a razão
ocidental que ,
sob o jugo
da coerção moral
— instalada na intersubjetividade moderna
— não sabe lidar
com o outro
quando ele
se lhe depara frente-a-frente. A falta de previsibilidade da chegada
de outrem faz desse tipo
de homem um
Solitário por
excelência . A inesperada
chegada do hóspede
institui-lhe uma avalanche de indecisões porque
o coloca face ao mistério
do outro . Camus, nesse conto , simboliza a dualidade moral
embutida em
uma realidade cultural de origem
semita que
está sob o protetorado
de um imperialismo
ultramar . Desde
a chegada dos dois
forasteiros , percebida por Daru (professor da escola ), Camus descreve-os como
representantes dessas duas culturas . “Um estava a cavalo ,
o outro a pé ”.
Um , na condição
de portador do estandarte
institucional e, o outro , na feição de alguém
preso a terra , as origens daquele lugar .
Ambos dirigem-se à escola
construída “no flanco de uma colina ”. A escola ,
representativa do saber totalizante e ideologizante,
enquanto isso está posta
no alto como
um farol do conhecimento . A descrição
do ambiente do prédio
da escola , a disposição
das coisas e a “inospitabilidade” do lugar fazem daquele canto
um tipo
de abrigo perdido e sempre
à espera da chegada
de alguém . Fazia frio ,
não chovia há meses e os alunos não
apareciam na escola desde
há muito tempo .
Daru, como um
guardião do saber
perene , aguardava Solitariamente uma chegada .
Sua prontidão
não se dissimulava em
nenhum tratado
de normas morais
nem em
nenhuma regra de acolhida que discriminasse qualquer
chegada . A escola
estava posta entre
o limiar da civilização
moderna e o do deserto .
Suas janelas
davam também para
o sul . Ao se situar geograficamente,
aquele canto
do mundo árabe
encontrava-se na região Magrebe. O sul da escola
apontava para as nações
da África negra , abaixo
do deserto de Saara. O leste , para o oriente onde se
originam todos os povos
semitas . O norte ,
para a Europa, berço
da civilização ocidental .
Assim sendo, com
essa situação geográfica
cardinalícia , o professor
Daru está diante de duas realidades étnicas e culturais superpostas que se aproximam de sua
escola . Aquele
que vem a pé
conhece o deserto mesmo
sem se poder ver com clareza a trilha
esculpida ao longo do caminho . Ora ,
se ao centro se tem um
posto do saber
colonizador e, ao sul , nações
prestes a ser exploradas, o que resta , como alternativa
original , é ainda
o deserto . É de lá
que deve vir
o forasteiro e para
lá que
devem se dirigir todos
aqueles que
quiserem ter um
“encontro ” com
a alteridade . É com
esse cenário
que se inicia O Hóspede de Camus.
Daru, cavalheiro Solitário perdido no limítrofe do deserto
está preste a se deparar
com uma presença
que lhe
desestabilizará o seu cotidiano .
Antes , como
é descrita no conto , a natureza havia se modificado para
a acolhida do hóspede :
Le ciel était moins foncé : dans la nuit, la neige
avait cessé de tomber. Le matin s´était levé sur une lumière sale qui s´était
à peine renforcée à mesure
|
O
|
A
experiência de Daru, antes da chegada
do hóspede , era
proveniente do que ele
testemunhava, ao longo dos dias e dos meses, da penúria
em que
viviam os aldeões e de como eles
conseguiam sobreviver a todas as intempéries da natureza ;
e da falta de recursos
da civilização moderna .
Aquela gente vivia sob
o Sol como
nômade no deserto
a procura de um
oásis em
que pudesse se proteger .
Sua escola
era um
desses oásis em
que os alunos
podiam repor a carga
nutricional e se alimentarem do conhecimento
da civilização moderna .
Mais il serait difficile d´oublier cette misère, cette
armée de fantômes haillonneux errant dans le Soleil, les plateaux calcinés mois après mois, la terre recroquevillée peu à
peu, littéralement torréfiée, chaque pierre éclatant en poussière sous le
pied. Les moutons mouraient alors par milliers, et quelques hommes, çà et là,
sans qu´on puisse toujours le savoir (CAMUS, 1999, p. 83).
|
Ao
viver aparentemente
protegido desses infortúnios
em que
os miseráveis aldeões
estavam submetidos, Daru, mesmo
achando-se como um
monge acolhedor
e tolerante de toda
e qualquer diferença
e, tendo nascido naquele país ,
acredita-se, igualmente , protegido da inesperada
chegada de outrem .
Ele , apesar
de pertencer àquele
país , havia se imbuído da cultura ultramarina francesa que
o fazia diferente de todos os seus compatriotas .
Devant cette misère, lui qui vivait presque
|
O
prenúncio da chegada
do hóspede é mostrado através da caída da neve sem aviso prévio . Inclusive a natureza era
reveladora de uma súbita chegada . No entanto ,
era sua
consciência que
não se antevia de um
objeto diferente
e não se preparava para
a repentina acolhida. Tudo viria de fora
para dentro :
o forasteiro , a neve ,
a seca , a fome ,
o policial , a caminhonete
de Tadjid. Todas as coisas postas naquela região
seriam para provê-lo de alimentos
e de materiais . Mas
nenhuma delas iria se instalar em
sua consciência
moral . Apenas
uma única coisa
iria fazer de Daru um
ser diferente
por causa da
“diferença ” que
estava chegando. Apontava no horizonte
sendo trazida por um
policial . A instituição
a cavalo , agora ,
de perto , refletia um
guardião de posse
de um prisioneiro .
Il sortit et
|
Camus traz
para o âmbito
do conhecimento , representado pela escola fria , o policial e o “árabe sem nome ”. Ambos
devem passar na Soleira
daquela porta que
é, inclusive , o pórtico
do saber civilizado que ,
de dentro , protegerá a todos . O conflito
aí se inicia. Desde
que o árabe
estivesse fora , ao longe ,
sendo visto do horizonte ,
Daru não precisaria se preocupar
com nada .
No entanto , desde
que ele
se aproxima de sua interioridade e privacidade , tudo
entra em ebulição .
O árabe permanece de cabeça
baixa , ainda
na condição de prisioneiro ,
sentado ao chão como
se não tivesse mais
nenhuma dignidade . Entrementes ,
o velho Balducci aguarda o momento crucial
de suas chegadas que
iria justificar suas
presenças . Antes ,
porém , decidem desamarrá-lo.
Aproximar-se-ia o instante em que o policial deveria passar a Daru a custódia do prisioneiro :
“[...] Vous couchez ici? — Non. Je vais retourner à El
Ameur. Et toi,
|
[...]
|
Através de Balducci a instituição colonialista
estende seus tentáculos de poder e congrega o professor na mesma moral
insidiosa. Além dos colonizadores terem sob seu poder todo um povo milenar, continua
em estado de guerra para poderem sucumbir todos os restos das diferenças
encontradas nos mais recônditos cantos do deserto e poderem, igualmente,
estenderem seu império em direção ao sul.
A ordem está dada a Daru. De agora
em diante
o “árabe sem nome ” está sob sua guarda e, dia seguinte , ele deverá entregá-lo a comuna
mais próxima .
Por meio
dele, poder-se-ia frear uma revolução
a caminho . Os aldeões ,
os camponeses, os remanescentes
berberes, todos , enfim ,
que pusesse em
risco a dominação
ultramarina. Os filhos da terra
deveriam ser colocados ao abrigo
do Sol. Assim
como na lenda
sufi[1] do homem que perdera as chaves
da casa e somente
as procurava embaixo de um poste de luz , todos os
submetidos deveriam estar também
sendo levados à luz
ocidental que
só pode ver o
objeto perdido embaixo
da razão . O que
fica fora da égide
desse Sol não
pode ser compreendido nem
pode ser acolhido. Seria a pura
diferença — o outro
enquanto outro
— manifestando-se em sua alteridade .
Daru,
mesmo diante desse impasse que lhe fora imposto sem pedir licença, quer retomar
sua vida austera, olhar a natureza de sua janela, aguardar o Sol escaldante depois de ter derretido a neve. Porém,
do lado de fora da escola, tanto a natureza quanto a ordem estabelecida moral,
evocam sua atenção:
Derrière le mur, on entendit le cheval s´ébrouer et
frapper du sabot. Daru regardait
|
A
Solidão de Daru havia-lhe
acostumado à ausência de toda presença humana . Com ela não haveria
ordens nem
moral a cumprir .
Sua vida
estava posta na mais
perfeita harmonia
com a natureza ,
inclusive com
o deserto . Não
soubera ele que
o verdadeiro encontro
se faz no deserto . Nele, o outro , mesmo
sendo um beduíno ,
só pode se comunicar
quando pronuncia sua
própria palavra
e se revela como um
ser diferente .
Mesmo sem
se saber a língua
do outro , sem
saber como comer a sua comida e sem saber como se vestir basta o olhar diante da
“face-a-face” para que
o encontro se estabeleça. A única resposta possível é deixar o outro se pronunciar . Somente desse modo a linguagem é estabelecida. Visto
desse modo , aquele
encontro houvera iniciado .
A presença de outrem
começara a revelar paulatinamente
o “árabe sem nome ”. Algo
nele revelava uma semelhança com
um dos seus .
Mesmo vestindo-se em
traje roto ,
esgarçado pelo tempo ,
sem saber falar nenhuma palavra
em francês ,
era um
homem . Havia matado
o primo , segundo
Balducci. Retorquira Daru:
— Il est contre nous? — Je ne crois pas. Mais on ne
peut jamais savoir. — Pourquoi a-t-il tué ? — Des affaires de famille,
je crois. L´un devait du grain à l´autre, paraît-il. Ça n´est pas clair.
Enfin, bref, il a tué le cousin d´un coup de serpe. Tu sais, comme au mouton,
zic !... Balducci fit le geste de passer une lame sur sa gorge et
l´Arabe, son attention attiré, le regardait avec une sorte d´inquiétude. Une
colère subite vint à Daru contre cet homme, contre tous les hommes et leur
sale méchanceté, leurs haines inlassables, leur folie du sang (CAMUS, 1999,
p. 87).
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— É
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Ao
saber do crime
de sangue , Daru indigna-se com a maldade
do ato e se faz Solidário com toda a humanidade
sofredora e vítima de todos os atos que mortificam o ser humano . Contudo ,
estava em frente
a alguém que
havia cometido um assassinato .
Seus princípios
morais e éticos
não permitiriam tê-lo como hóspede .
No entanto , a força
da moral social
e os mores franceses faziam dele um anfitrião
sócio-histórico que contribuía com a manutenção
dos padrões . Ali ,
Solitário, naquele canto perdido, tinha
que cumprir com os ditames
da cidadania francesa. Queria poder estar isento
desse tipo de responsabilidade .
Um dia
fora feliz com os seus pobres alunos
das redondezas . O Sol deveria retornar logo e trazer com ele a paz do planalto leste . Mas os diálogos com o policial interpolavam-se com
as aparições , pouco
a pouco , das discretas características do árabe .
Quand il entra de nouveau dans la
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Quando tornou a entrar no quarto,
Balducci estava no sofá. Havia desatado a corda que o ligava ao árabe e este
se agachara perto do fogão. Com as mãos ainda atadas, o turbante agora
empurrado para trás, ele olhava na direção da janela. A princípio Daru viu
apenas seus lábios enormes, cheios, lisos, quase negróides; no entanto o
nariz era reto, os olhos escuros, cheios de febre. O turbante descobria uma
testa teimosa e, sob a pele queimada, mas um pouco desbotada pelo frio, o
rosto todo tinha um aspecto ao mesmo tempo inquieto e rebelde que
impressionou Daru quando o árabe, voltando-lhe o rosto, olhou-o bem nos olhos
(CAMUS, 1997, p. 78 ).
|
O árabe , ao desvelar-se,
fez com que
Daru se revestisse de duas propriedades pessoais que podiam,
simultaneamente, cumprir com
as exigências da vida
formal e com
as evocações da vida
informal , representada pelo
inesperado hóspede .
Por incrível
que pudesse parecer
a Daru, o hóspede não
revelava interlocução alguma. Tudo nele era diferente do esperado. Nem
clamava por compaixão ,
mesmo que
se fizesse através do olhar ;
não Solicitava perdão ,
mesmo que
o professor pudesse concedê-lo; nem
esperava ser libertado, mesmo
sem saber que Daru pretendera. Toda
essa indiferença com
o que era
justo e correto
perante os juízos
de Daru, fazia do árabe o desconhecido
por excelência
e imune a toda
forma de coerção
que pudesse ser
imputada. Portava-se como um estrangeiro em sua própria terra; alheio
a qualquer coisa
que significasse civilização
ocidental moderna .
Todo aquele
comportamento era
intrigante demais
para Daru. Todos
os seus pressupostos morais não
davam conta daquela nova
situação . Como
deveria proceder à frente
de um estranho
que , ao mesmo
tempo , era
o dono da terra ?
Qual seria a atitude
correta que
não viesse deixar
um sentimento
de culpa que
iria preencher o seu
deserto inabalável ?
Seu medo maior era que uma só atitude , tão-somente uma atitude ,
viesse quebrar a harmonia
dos dias e o deserto
se transformasse no mais inóspito lugar que nenhum homem , nem mesmo ele ,
pudesse sobreviver sem
culpa . O peso
que se instalara em
sua consciência
era maior
que a imensidão
do deserto . Mas
a sua única
realidade que
não podia duvidar
era de que
estava só para
tomar uma decisão .
Talvez , quem
sabe, naquelas últimas horas agonizantes
alguma idéia viria lhe
trazer a paz
de volta e o sossego
das coisas que
não podem ser
transformadas.
Era
preciso aguardar, mas, de antemão, sabia que outro hóspede não viria em seu
socorro para decidir por algo que não o comprometesse. Naquela tarde que
começara a anoitecer trazia-lhe, não somente o breu da noite, mas a espada da
decisão. Quisera poder estender o tempo até o infinito e quando acordasse o
árabe tivesse partido e sua culpa teria partido com ele. O velho policial ainda
estava na escola e Daru encontra uma saída que, talvez, viesse ser a grande Solução:
— Écoute, Balducci, dit Daru soudainement, tout ça
|
— Ouça, Balducci — disse Daru
repentinamente — tudo isso me repugna, sobretudo esse rapaz. Mas não vou
entregá-lo. Combater, sim, se for preciso. Mas isso não. O velho policial se
mantinha diante dele e olhava-o com severidade. — Está fazendo bobagem —
disse lentamente. — Eu também não gosto disso. Botar uma corda num homem,
apesar dos anos, a gente não se habitua a isso, fica até com vergonha. Mas
não se pode deixá-los fazer o que quiserem. — Não vou entregá-lo — repetiu
Daru. — É uma ordem, filho. Digo e repito. — É isso. Repita para eles o que
eu disse: não vou entregá-lo. Balducci fazia um esforço visível de reflexão.
Olhava para o árabe e para Daru. Afinal decidiu-se. — Não. Não vou dizer nada
a eles. Se quiser nos abandonar, à vontade, não vou denunciá-lo. Recebi a
ordem de entregar o prisioneiro: é o que estou fazendo. Agora assine o papel.
— É inútil. Não vou negar que o deixou
comigo. — Não seja malvado comigo. Sei que vai dizer a verdade. Você é daqui,
é um homem. Mas precisa assinar, é o regulamento (CAMUS, 1997, p. 82-83).
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No entanto , essa decisão
é tomada a partir
somente de uma parte
do problema que
se lhe impõe, mas
não o responsabilizaria, segundo Daru, na decisão
do todo da situação .
Ele escolheu apenas
uma parte para
se sair daquela situação .
Sua decisão
é isenta de toda
e qualquer responsabilidade
com a problemática
da existência , do mundo
e de todos os Outrens. Seu julgamento encerra-se
na realidade imediata
que lhe
garantirá sua sobrevivência .
Por conseguinte ,
ao se livrar da responsabilidade
social e jurídica ,
estaria, pelo pressuposto de sua
consciência , livre
de uma coerção interna
que lhe
tiraria o sono . Ambos
estariam redimidos. Entretanto , as imagens de sua condição humana
naquelas terras insólitas perambulavam como os vaga-lumes
por sobre
sua cabeça .
O silêncio
do hóspede era quase ensurdecedor, mas não impedia que Daru matutasse em
surdina o que estava acontecendo nem o que teria causado toda aquela situação.
Aquela noite silenciosa, paradoxalmente, falava-lhe como outrora e estendia seu
manto sobre Daru que refletia deitado no sofá, ainda a procura de uma saída
para todo aquele impasse que não havia sido reSolvido. O árabe permanecia imóvel como se aguardasse na sala de
espera de um tribunal a última sentença. Camus destaca, num trecho, as
passagens do professor pela Soleira
da porta e de como mudava de idéia. Simbolicamente, transpunha-se em limiares
e, somente desse modo, Daru capturava o fio de Ariadne para auxiliar-lhe
naquele labirinto de sua interioridade.
Longtemps, il
|
O professor , após ter se embevecido de tantas lembranças
e de tantas presenças desconcertantes , quisera estar ,
de novo , fora
de órbita . Quisera poder
ver de cima toda aquela situação
como o seu
céu límpido
que somente o
deserto pode revelar .
Mas , por
mais paradoxal
que parecesse, mesmo
em meio
àquela situação , possuía ainda certa tranqüilidade
que não
saberia descrever de onde
a teria conquistado. Talvez o fato de, por segurança , ter pegado o revólver e de tê-lo colocado no bolso ;
talvez pelo fato de saber que estava acolhendo um
igual mesmo
sem ter
tido a coragem de admitir
para o amigo
Balducci. Talvez , e o mais provável
seria, que ambos
não eram nada
fora daquele deserto .
Camus tece, fio
a fio , um
encontro sem
rasuras e sem fissuras
hereditárias entre o Árabe
e Daru. Ambos foram fundidos no cadinho da humilhação
e da Solidão do deserto . Tanto um como outro cindiram os seixos
do caminho e encontravam-se ali , frente a frente , a espera de uma decisão que
remisse a ambos . Mas
a grande esperança
de Daru era que
um terceiro
excluído tomasse a forma
humana e, com
uma espada da justiça ,
dividisse o caminho de ambos . Imbuído desse desejo
inócuo , decide, por
fim , levantar-se do sofá :
“Quando ele
se levantou, nenhum ruído
vinha da sala
de aula . Espantou-se com a franca alegria que o
invadia só de pensar
que o árabe poderia ter fugido e que ele ficaria
novamente só
sem precisar decidir nada . Mas o prisioneiro
estava lá ” (CAMUS, 1997, p. 84) [2].
A decisão , por mais desconcertante que
fosse, deveria partir de Daru. O prisioneiro já
havia assumido a condição de réu confesso ,
mesmo sem
pronunciar-se em seu
próprio favor . O Árabe já o havia
reconhecido como juiz
e aguardava que o professor
tivesse a hombridade necessária para entregá-lo.
Mas a hombridade
de Daru opunha-se, naquele contexto , a
da requerida em sua
cultura ultramarina. Sua moral , perante aquele outro , não era para estar
dividida, nem para
ser descumprida. A moral
que se estabelecia, pouco
a pouco , através
dos meandros daquela presença ,
era a de deixá-lo partir
e ser julgado pelos
seus verdadeiros compatriotas .
Fossem berberes ou ateus ,
muçulmanos ou
simplesmente árabes .
O que importava era
que a sentença
a ser executada deveria partir
do seu próprio
lugar e não
da sede do saber ,
ora em
decadência , da qual ,
Daru, apenas como
representante, decidiria o destino de um homem do deserto . As planícies
rebelar-se-iam contra ele , o Sol reteria seus
raios e o inverno
do mundo duraria infindável
sobre a escola .
Seus prenúncios
davam os primeiros sinais .
A noite durava a passar .
O prisioneiro deitado
com os pés
em direção a janela apontava o caminho
da saída e da libertação ,
mas permanecia imóvel
a espera do dia
seguinte .
O
Árabe era mais forte e mais corajoso que Daru. Sua espera não emitia nenhum sinal de
angústia . Seu
silêncio , no entanto ,
pronunciava as vozes ensandecidas dos
excluídos e dos exilados em sua própria terra . O cordeiro iria ser imolado, mas a noite do Getsêmani não
adviria o desespero humano-divino. Aquele que
estava ali , à espera ,
era um
homem já
imolado. No meio da noite
Daru continuava acordado e Camus, com um candeeiro ,
traz à luz , o desejo
do outro , enquanto
que “o árabe
continuava imóvel , mas
seus olhos
pareciam estar abertos .
Um vento leve rondava a escola .
Talvez ele
expulsasse as nuvens e o Sol voltasse” (CAMUS,
1997, p. 87).[3] Contudo ,
Dans la nuit, le vent grandit. Les poules s´agitèrent
un peu, puis se turent. L´Arabe se retourna sur le côté, présentant le dos à
Daru et celui-ci crut l´entendre gémir. Il guetta ensuite sa respiration,
devenue plus
|
Durante a noite, o vento aumentou. As
galinhas se agitaram um pouco, depois se calaram. O árabe virou de lado, com
as costas para Daru, e este pensou tê-lo ouvido gemer. Vigiou em seguida sua
respiração, que se tornara mais forte e mais regular. Escutava esse sopro tão
próximo e sonhava sem conseguir adormecer. No quarto em que, há mais de um
ano, dormia sozinho, essa presença o incomodava. Mas incomodava-o também
porque lhe impunha uma espécie de fraternidade, que ele recusava nas atuais
circunstâncias e que conhecia bem: os homens que compartilham os mesmo
quartos, Soldados ou prisioneiros, adquirem um
estranho vínculo como se, tendo deixado as armaduras com as roupas, se
unissem todas as noites, acima de suas diferenças, na velha comunidade do
sonho e do cansaço. Mas Daru se sacudia, não gostava dessas bobagens, era
preciso dormir (CAMUS, 1997, p. 87).
|
A analogia que a consciência
de Daru fizera dos homens que estabelecem cumplicidade
em estado
de confinamento com
a presença do estranho ,
deixa-lhe desconcertado , todavia , em estado de suposta
vulnerabilidade. Coisa que ,
Camus, não imprime ao Árabe .
O medo de haver alguma intimidade é somente
localizado em Daru. O Árabe
permanecia incólume a tudo . Inclusive a qualquer possibilidade de contato .
Sua espreita
não passava de uma rigorosa
atenção com
o esperado que iria encontrar
desfecho no dia
seguinte . Era
Daru que se inquietava com a presença alheia . Cada gesto ou movimento naqueles minutos
eternos fazia do personagem
uma presa a mercê
da sorte . Cada
milímetro de movimento
era medido por
Daru que ainda
suspeitava do risco de ser
agredido ou de deixar
o Árabe partir . Ambos vigiavam-se como
prisioneiros do próprio
destino . Qualquer
gesto furtivo
desencadearia uma nova situação e, talvez ,
Daru não viesse a se surpreender .
Mesmo achando que
corria risco de vida ,
nada se igualava ao que
deveria realmente fazer
a partir da chegada
da aurora . Mas ,
a noite reinava como
se fosse eterna :
Un peu plus tard pourtant, quand l´Arabe bougea
imperceptiblement, l´instituteur ne dormait toujours pas. Au deuxième
mouvement du prisonnier, il se raidit, en alerte. L´Arabe se soulevait
lentement sur les bras, d´un mouvement presque somnambulique. Assis sur le
lit, il attendit, immobile, sans tourner la tête
|
No meio da interminável noite
Daru espreitara os movimentos do Árabe , sua saída até o alpendre e o inesperado
retorno . O seu
mais profundo
desejo era
que o prisioneiro
partisse, mesmo que
levasse consigo todos
os seus bens
pessoais . Ao tempo
que desejava o improvável ,
trazia para si
o conforto da presença
daquele outro sem
nome , mas
inteiramente pleno
de humanidade . Por
mais paradoxal
que pudesse parecer ,
Daru sentia-se protegido com a presença imorredoura do Árabe .
Quisera mesmo que
ele ficasse todas as noites e todos
os dias e que
a aurora não
trouxesse nenhuma decisão a tomar . Antes de voltar a dormir , porém , ouve passos
furtivos em
torno da escola .
Pelo fato de estar em sono de vigília ,
pudera discernir
apenas passos .
Não importava de quem
eram, estava protegido dentro da escola .
Os “outros ” começavam a chegar
antes da alvorada .
Seu destino
começava a ser lacrado com
o sinete da rejeição.
Camus
não ameniza em nenhum momento a decisão que Daru deveria tomar, nem lhe adia
para o dia seguinte. Todo o contexto era mais do que favorável para que o
professor empunhasse a decisão. Seu coração doía e sua consciência “astuciava” [4] algo que libertasse daquilo que houvera se tornado
seu tormento nas últimas horas. Contudo, o Sol já havia raiado e com ele a situação configurara-se
irreversível. Não havia mais o amigo Balducci para compartilhar com Daru o peso
daquela carga. Tudo estava posto.
O café estava
pronto. Beberam, ambos sentados na cama de campanha, mordendo seus pedaços de
galette. Depois Daru levou o árabe até o alpendre e mostrou-lhe a bica onde
se lavava. Voltou para o quarto, dobrou os cobertores e a cama de campanha,
fez a sua própria cama e arrumou o quarto. Saiu então para o terreno baldio passando
pela escola. O Sol já nascia no céu azul; uma luz
suave e intensa inundava o planalto deserto (CAMUS, 1997, p. 89).
|
A
sofreguidão de Daru acompanhava-o como serva penitente , todavia ,
os elementos que
desencadearam aquele sortilégio permaneciam inalterados. Camus,
imperdoavelmente, não desconecta em nenhum instante a responsabilidade
de Daru perante a presença
estonteante do outro . A culpa oriunda
d´A Queda ,
não se iguala em
presença . Aquela se instalara na consciência de Jean-Baptiste e bastava submergi-la nos canais de
Amsterdã para que
o arrependimento e a confissão se fizessem paulatinamente .
Esta culpa se sorve antecipadamente por uma obrigação de ato moral em que não há remissão
alguma. A Ética do Absurdo
adquire sua mais
ousada e autêntica
performance . O paradoxo
da ausência agora
é evidenciado pela presença
do outro em
que não
há como escapar
de seu apelo .
Aqui não
há Risos nem
Gritos que
ecoam noite adentro .
O que há é simplesmente
a presença inominável
de outrem . Mas ,
o pobre Daru preferiria que nada disso
tivesse acontecido. Que a paz reinasse naquelas bandas ,
que fosse acordado por
suas galinhas
e que o Sol voltasse a brilhar como sempre
fizera. Matutava, mais uma vez , Daru:
Le
|
O crime
imbecil desse homem o revoltava, mas entregá-lo era contrário à honra: ficava
louco de humilhação só de pensar nisso. E amaldiçoava ao mesmo tempo os seus
que lhe mandavam esse árabe e este último que ousara matar e não soubera
fugir (CAMUS, 1997, p. 89).
|
A
possibilidade de desvencilhar-se do prisioneiro
era impossível .
Restava assumir , de agora
em diante ,
tudo o que
fosse possível , mas
que não
lhe desonrasse. Entrementes
a partida , Daru decide prover
o Árabe de alimentos
para a viagem .
Sua compaixão
tomava forma de humanidade
e sua razão
recuperara, com a presença
do Sol, o discernimento . Ambos
teriam que partir
em direção a comuna . Desde , então , dos primeiros
passos dados ,
ouve-se, mais uma vez ,
um ligeiro
ruído . Agora era a marcada presença de estranhos que não iriam poder partir junto com o Árabe . Daru ainda não
saberia se dar conta da gravidade daquelas presenças .
Ils marchèrent une heure et se reposèrent auprès d´une
sorte d´aiguille calcaire. La neige fondait de plus en plus vite, le Soleil pompait aussitôt les flaques, nettoyait à toute allure le plateau
qui, peu à peu, devenait sec et vibrait comme l´air lui-même. Quand ils
reprirent la route, le Sol résonnait sous leurs pas. De loin en loin, un oiseau fendait l´espace
devant eux avec un cri joyeux. Daru buvait, à profondes aspirations, la
lumière fraîche. Une sorte d´exaltation naissait en lui devant le grand
espace familier, presque entièrement jaune maintenant, sous sa calotte de
ciel bleu (CAMUS, 1999, p. 97).
|
Caminharam durante uma hora e descansaram
junto a uma espécie de agulha calcária. A neve se derretia cada vez mais
depressa, o Sol começava a evaporar as poças,
limpando com toda a velocidade o planalto que, pouco a pouco, tornava-se seco
e vibrava como o próprio ar. Quando retomaram o caminho, o chão ressoava sob
seus passos. De quando em quando, um pássaro cortava o espaço diante deles
com um grito de alegria. Daru bebia, com inspirações profundas, a luz fresca.
Uma espécie de exaltação nascia dentro dele diante do grande espaço familiar,
agora quase totalmente amarelo, sob sua calota de céu azul (CAMUS, 1997, p.
90).
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Camus re-instaura a harmonia
do planalto e do deserto .
A natureza começa
a cumprir com
sua nova
tarefa de estação
vindoura . O pássaro
da liberdade dá sinais
de contentamento ao longo
do caminho e Daru com
sede e com
saudades da luz
fresca , sorvia-a como
se tivesse reencontrado a fonte da vida . Parecia que
tudo estava de volta ,
inclusive ele .
Sua liberdade
fora , enfim ,
recuperada e podia se pronunciar sem remorso diante daquele novo dia .
Com efeito, pudera apontar duas trilhas para o
prisioneiro: uma, há duas horas, poderia chegar a Tinguit aonde se encontrava a
administração e a polícia da província; outra, há um dia de caminhada aonde
encontraria nômades e abrigo, segundo suas lei. O Árabe adquiriu uma espécie de
pânico no rosto. Fora obrigado a decidir junto com Daru uma saída que, em sua
consciência, já estava posta.
Daru hésita. Le Soleil était maintenant assez haut dans le ciel et commençait de lui dévorer
le front. L´instituteur revint sur ses pas, d´abord un peu incertain, puis
avec décision. Quand il parvint à la petite colline, il ruisselait de sueur.
Il la gravit à toute allure et s´arrêta, essoufflé, sur le sommet. Les champs
de roche, au sud, se dessinaient nettement sur le ciel bleu,
|
Daru hesitou. O Sol
agora estava bastante alto no céu e começava a devorar-lhe a testa. O
professor fez meia volta, primeiro um pouco inseguro, depois com decisão.
Quando chegou à pequena colina, estava encharcado de suor. Escalou-a correndo
e se deteve, sem fôlego, no topo. Os campos rochosos, ao sul, desenhavam-se
nitidamente sobre o céu azul, mas sobre a planície, a leste, uma névoa de
calor já se elevava. E nessa bruma ligeira, Daru, com o coração apertado,
descobriu o árabe que caminhava lentamente em direção à prisão (CAMUS, 1997,
p. 92).
|
O
Sol entra em cena nesse conto de Camus como
juiz do destino
que Daru tentara impedir
de se completar . Em
O Estrangeiro ,
o protagonista Meursault é inteiramente invadido por
ele . Aqui ,
em O Hóspede , o Sol penetra nos juízos de
Daru como guardião
da honra da terra .
Lá , ele
é o próprio destino de M.
Aqui , o destino
é decidido pelo
protagonista , por
uma possibilidade de escolha que não há em Meursault. Concernentemente ,
a irreversibilidade da escolha do Árabe estava contida em
sua própria
terra . Terra e Sol são símbolos desse deserto ,
aparentemente , inóspito .
O vento somente entra em cena para trazer a mensagem do abSoluto. As brumas
que se antepuseram ao coração apertado
de Daru era o reflexo
do visto de Orfeu. Eurídice permanecia atrás dele, mesmo
quando seu
olhar deparava-se para trás . Por conseguinte , pouco
tempo depois
de o Árabe distanciar-se, um sentimento de compunção
acomodara-se em seu
peito como
se fosse um novo
hóspede . E,
[...] planté devant la fenêtre de la salle de
|
[...] plantado
|
A indefensável
moralidade impressa
por Camus ao final
desse conto mostra
o quanto de humanidade
perdida ele tentara recuperar .
Daru, muito embora
estivesse posto à prova
com a chegada
do hóspede , era
um cavalheiro
Solitário que se pode encontrar , tanto nos desertos de Kalahari como
nas selvas de pedras
dos paraísos urbanos .
Sua marca
de humanidade é restaurada com o pesar da revolta de sua consciência diante
daquela atitude . Todavia ,
os mores de sua
formação haviam lhe
ditado como
sendo justa e própria .
Referências:
§ CAMUS, Albert. O exílio
e o reino . Tradução
de Valerie Rumjanek. Rio de Janeiro :
Record, 1997.
§
CAMUS, Albert.
L’exil et le royaume. Paris : Gallimard, 1999.
[1] Lenda
Sufi — um homem ,
ao voltar para sua casa , dá-se
conta que
perdera suas chaves
no caminho . Decide refazer todo o trajeto para procurar suas chaves . Encontra ,
enfim , um
poste de luz
e permanece embaixo dele a procurar as chaves .
Começam a se aproximar alguns
transeuntes que
o conheciam e decidem procurar com ele . Após algumas horas , um novo transeunte se aproxima e pergunta
a todos aqueles
homens o que
eles estavam procurando. O bom homem que houvera perdido as chaves
explica-lhe o ocorrido. — Mas porque vocês
estão procurando as chaves somente embaixo do poste de luz ? E
se elas foram perdidas ao longo do caminho ?
Replica o bom homem :
— mas lá
não tem luz !
Fonte : anônimo .
(N. do A.).
[2] Quand il se leva , aucun bruit
ne venait de la salle de classe . Il s´étonna de
cette joie franche qui lui venait à la seule pensée que
l´Arabe avait pu fuir et qu´il allait se retrouver seul sans avoir rien à décider.
Mais le prisonnier était là (CAMUS,
1999, p. 91).
[3] L´Arabe ne bougait toujours pás, mais sés yeux semblaient ouverts. Un
léger vent rôdait autour de l´école. Il chasserait peut-être les nuages et le Soleil reviendrait (CAMUS, 1999, p. 94).
[4] Astuciava — apesar de não ser verbo, a ação da
consciência de Daru empreendia uma saída astuciosa, porém, em sua própria ação,
a astúcia estava presente. (N. do A.).
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