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domingo, 25 de agosto de 2013

Paradoxo Ético da Ausência de Outrem em Albert Camus

Paradoxo Ético da Ausência de Outrem em Albert Camus



Lourenço Leite


           O Paradoxo Ético da Ausência de Outrem, muito embora sua aparência não revele sua presença, faz com que se remeta à condição humana. Mesmo que alhures pode-se encontrá-la em situações e em acontecimentos absurdos da contemporaneidade.
Concernentemente a tal fato, e em meio ao vazio instaurado pelo Pós-Guerra, tem-se a impressão que a “alteridade” restou órfã de uma porta voz que soubesse se pronunciar em seu favor. Entretanto, a colonização ultramarina francesa revela no Magrebe um Pied-Noir diferente, Albert Camus, escritor, filósofo, jornalista, ensaísta e dramaturgo, para denunciar, quem sabe, as ‘evocações’ do silêncio dos órfãos de “Deus”, as filhas da contemporaneidade. Camus utiliza-se da linguagem simbólica para representar o Caos do mundo. Aquele Caos do qual Nietzsche, em Assim Falou Zaratustra, reivindica um tipo de presença perante o Deus morto na alma de seu tempo. Contudo, Deus, ao ser substituído por uma nova ordem, cuja presença, às vezes, estonteante matara prematuramente o sentido do mundo. Camus faz uma alusão a essa perda de sentido do homem em sua obra, Núpcias, marcadamente repleta de características de sua vida na Argélia que iria se tornar uma das mais expressivas de seu pensamento mediterrâneo:
[...] quelle tentation de s’identifier à ces pierres, de se confondre avec cet univers brûlant et impassible qui défie l’histoire et ses agitations! Cela est vain sans doute. Mais il y a dans chaque homme un instinct profond qui n’est ni celui de la destruction ni celui de la création. Il s’agit seulement de ne ressembler à rien (CAMUS, 1998, p. 106).

[...] que tentação a de identificar-se com as pedras, unir-se intimamente a esse universo ardente e impassível que desafia a história e suas agitações! Talvez tudo não passe de um sentimento inútil. Pois existe em cada homem um instinto profundo que não é o da destruição nem o da criação. Trata-se tão-somente de uma tendência para não se assemelhar a nada... (CAMUS, 1979, p. 85).
Não querer se assemelhar a nada é, para Camus, igualmente, assemelhar-se às pedras. Identificar-se com o que há de mais insignificante na história da humanidade civilizada. O seu ponto de partida é a própria natureza repleta de todos os elementos que a integram e a fazem manter-se como o que ela é. Desse modo, o problema da moral humana não irá, segundo ele, estar submetido a algo de alheio ao mundo natural, nem extemporâneo a ele. A conduta humana adquire sentido a partir do que se vive sob a égide do Sol. O cotidiano, por conseguinte, catalisador dos efeitos dessa mesma natureza, adquire uma supremacia se, por analogia, pressupuserem-se causas internas aos atos morais. O teor metafísico de sua Ética do Absurdo é identificado a partir da brisa da existência que paira em meio aos paradoxos confrontados pelo homem contemporâneo, isto é, a Ética do Absurdo é o “estranho olharque permite ver o absurdo do mundo defronte do cotidiano.
Ora, se a filosofia grega limitou o desejo através da razão, logogizando-o a uma forma em que os valores éticos pudessem ser instaurados, o tempo atual é, nada mais, salvo engano, um tempo em que se busca restaurar os desejos de forma pura, destituídos de todo e qualquer impureza gerada pela razão; num tipo de niilismo da racionalidade, própria da modernidade contemporânea. Desse modo, assim como Camus aponta os valores preexistentes na cultura grega, hoje, os fundamentos dos valores encontram-se no agir, como se adiante em uma das citações de Núpcias:
Les valeurs pour les Grecs étaient préexistantes à toute action dont elles marquaient précisément les limites. La philosophie moderne place ses valeurs à la fin de l’action. Elles ne sont pas, mais elles deviennent, et nous ne les connaîtrons dans leur entier qu’à l’achèvement de l’histoire. Avec elles, la limite disparaît, et comme les conceptions diffèrent sur ce qu’elles seront, comme il n’est pas de lutte qui, sans le frein de ces mêmes valeurs, ne s’étende indéfiniment, les messianismes aujourd’hui s’affrontent et leurs clameurs se fondent dans le choc des empires. La démesure est un incendie, selon Héraclite. L´incendie gagne, Nietzsche est dépassé. Ce n’est plus à coups de marteau que l’Europe philosophe, mais à coups de canon (CAMUS, 1998, p. 137-138).

Para os gregos, os valores eram preexistentes a qualquer ato e este, por sua vez, tinha limites definidos com abSoluta precisão por esses mesmos valores. Para a filosofia moderna, a ação antecede os valores. Estes, a princípio, não existem como tal, tornando-se valores depois; e viremos a conhecê-los por inteiro ao concluir-se a história. Com os valores, o limite desaparece; e como as concepções diferem sobre o significado que poderão ter, como não existe luta alguma cuja tendência não seja, sem o freio desses mesmos valores, a de prolongar-se indefinidamente, os messianismos[1] de hoje se afrontam e seus clamores se misturam no embate dos impérios. A imoderação é um incêndio, segundo Heráclito. O incêndio progride, Nietzsche está ultrapassado. não é mais a golpes de martelo que a Europa filosofa, mas a tiros de canhão (CAMUS, 1979, p. 106-107).
Poder-se-ia, sem embargo, acrescentar que a sociedade moderna europeizada comete muito mais crimes de lógica com a razão que com canhões. Contudo, vale salientar que o avassaladoramericanismo” suplantou, sem precedentes, a sociedade européia. Atualmente, ou seja, no Século XXI, o antidemocratismo dos EUA, desde o Pós-Guerra, passando pela Guerra Fria, tem conseguido, além de sua propagação mundial da cultura de consumo capitalista, implantar o terrorismo em diversas nações em desenvolvimento. E, numa estratégia diplomática, combate a chamada “War of Terror” (Guerra do Terror). Basta lê-se a metáfora de Camus sobre “os crimes de lógica” encontrada na Introdução de O Homem Revoltado como uma interpretação de uma época onde tudo é justificado[2]. Os crimes de paixão, como forma antinômica, tornam-se insignificantes perante os crimes de lógica em que a filosofia, por meio de silogismos, é chamada a justificá-los. Os valores, condicionados pelo agir humano, como precisamente antevê Camus, poderão ser conhecidos na conclusão da História. Haja vista que Hegel tinha razão quando afirmou que “a coruja de Minerva levanta vôo ao entardecer”. Porém, a época moderna contemporânea ao assumir a inversão dos fundamentos dos valores, institui uma racionalidade sem precedentes na história do pensamento ocidental, fazendo da razão uma escrava de si mesma e dando ênfase a um tipo de objetivação do real no cerne do “eu psicológico” (desde Descartes até Husserl) em que a alteridade real torna-se quase impossível.
Necessário se faz que o homem de hoje volte seu olhar para o mundo, não como Fausto sem Mefistófeles, dicotomizado de seu eu, mas como Mefistófeles encarnado em Fausto. Olhar o mundo não é tarefa fácil, principalmente quando ele (o mundo) hierofaniza os espectros das injustiças dando a impressão que sua demonstração consegue dar conta de sua própria injustiça.
Com efeito, voltar o olhar para o mundo é olhar também a sua contradição ou a sua absurdidade. Na esteira de Camus, poder-se-ia ver o mundo com uma tonalidade absurda: A inteligência me diz também que, a sua maneira, este mundo é absurdo. Seu contrário que é a razão cega tem a pretensão de ver que tudo é claro, esperava provas e desejava que ela tivesse razão” [3] (CAMUS, 1989, p. 40).
Desde Camus, o homem dos dias de hoje não pode se permitir estar ao abrigo da percepção das injustiças ou da culpa, como se nota no O Homem Revoltado:Se o nosso tempo admite tranqüilamente que o assassinato tenha suas justificações, é devido a essa indiferença pela vida que é a marca do niilismo[4] (CAMUS, 1997, p.17). O outro não passa de uma realidade virtual onde se pode matá-lo ou ressuscitá-lo.
Através das narrativas de Camus, portanto, a Ética apresenta-se oculta como serva condenada ao esquecimento e ao abandono. Ou seja: a conduta do homem contemporâneo está impune, mesmo depois de ter descoberto sua autonomia civil, racional e existencial, legada pela Revolução Francesa. Há, destarte, uma ambigüidade misteriosa a ser interpretada que provoca, desde , uma busca. Em sua obra, A Queda, essa ambigüidade descortina-se como um convite do entendimento da “perda de outrem” fazendo do homem contemporâneo um ser da “indiferença” e “sem culpaque volta a casa e regozija-se com a sua Solidão, como se nota em uma de suas narrativas:

Il était une heure après minuit, une petite pluie tombait, une bruine plutôt, qui dispersait les rares passants. Je venais de quiter une amie qui, sûrement, dormait déjà. J’étais heureux de cette marche, un peu engourdi, le corps calmé, irrigué par un sang doux comme la pluit qui tombait. Sur le pont, je passai derrière une forme penchée sur le parapet, et qui semblait regarder le fleuve. De plus près, je distinguai une mince jeune femme, habillée de noir. Entre les cheveux sombres et le col du manteau, on voyait seulement une nuque, fraîche et mouillée, à laquelle je fus sensible. Mais je poursuivis ma route, après une hésitation. Au bout du pont, je pris les quais en direction de Saint-Michel, où je demeurais. J’avais déjà parcouru une cinquantaine de mètres à peu près, lorsque j’entendis le bruit, qui, malgré la distance, me parut formidable dans le silence nocturne, d’une corps qui s’abat sur l’eau. Je m’arrêtai net, mais sans me retourner. Presque aussitôt, j’entendis un cri, plusieurs fois répété, qui descendait lui aussi le fleuve, puis s’éteignait brusquement. Le silence qui suivit, dans la nuit soudain figée, me parut interminable. Je voulus courir et je ne bougeai pas. Je tremblais, je crois, de froid et de saisissement. Je me disais qu’il fallait faire vite et je sentais une faiblesse irrésistible envahir mon corps. J’ai oublié ce que j’ai pensé alors. “Trop tard, trop loin...” ou quelque chose de ce genre. J’écoutais toujours, immobile. Puis, à petits pas, sous la pluie, je m’éloignai. Je ne prévins personne (CAMUS, 1998, p. 61-62).


Passava uma hora da meia-noite, caía uma chuva miúda, mais uma garoa, que dispersava os raros transeuntes. Acabava de deixar uma amiguinha que, com certeza, já estava dormindo. Sentia-me bem com esta caminhada, um pouco entorpecido, o corpo acalmado, irrigado por um sangue suave como a chuva que caía. Na ponte, passei por detrás de uma forma debruçada sobre o parapeito e que parecia olhar o rio. De mais perto, distingui uma mulher nova e esguia, vestida de preto. Entre os cabelos escuros e a gola do casaco, via-se apenas uma nuca, fresca e molhada, que me sensibilizou. Mas segui meu caminho, depois de uma hesitação. No fim da ponte, peguei o cais, em direção a Saint-Michel, onde eu morava. Já havia percorrido uns cinqüenta metros, mais ou menos, quando ouvi o barulho de um corpo que se precipita na água e que, apesar da distância, no silêncio da noite, me pareceu grande. Parei na hora, mas sem me voltar. Quase imediatamente, ouvi um grito várias vezes repetido, que descia também o rio e depois se extinguiu bruscamente. O silêncio que se seguiu na noite paralisada pareceu-me interminável. Quis correr e não me mexi. Acho que tremia de frio e de emoção. Dizia a mim mesmo que era preciso agir rapidamente e sentia uma fraqueza irresistível invadir-me o corpo. Esqueci-me do que pensei então. ´Tarde demais, longe demais...`, ou algo no gênero. Escutava ainda, imóvel. Depois, afastei-me sob a chuva, às pressas. Não avisei ninguém... (CAMUS, 198-, p. 55-56).
O apelo do corpo que cai e do grito que o acompanha, não são suficientes para que o protagonista de A Queda volva seu pescoço, alguns passos em direção à ponte e se jogue no rio para salvar alguém que estava prestes a morrer. Seu objetivo de voltar em casa era mais premente do que salvar o outro (que não era mais semelhante)[5]. Mas, muito embora sua atitude se mostre como intocável, “o silêncio que se seguiu na noite paralisada pareceu (lhe) interminável”. Um tênue sentimento de culpa e de compaixão haviam se instalado em sua consciência, mas, por ter sido efêmero como a queda do corpo, não teve forças suficientes para levá-lo a agir em prol de outrem.
A sofrer de crise de juízos éticos, o homem contemporâneo encontra-se, também, no plano de sua consciência, desprovido de uma estrutura perceptiva de outrem, ou seja, o seu eu perceptivo é vazio de outrem. Seu eu representa-se apenas como passado da existência num eterno estado de presente. O passado e o futuro não se tornam presentes. Pois, o que importa é se viver em estado de abSoluta presença. Daí, a exterioridade não conter a presença de outrem; torna-se o fora imediato que nega toda e qualquer interioridade. É o homem sendo abSoluto da existência.
O outro, como problemática filosófica da modernidade contemporânea, sem se querer identificá-lo ao longo de toda a História da Filosofia, entra em cena no contexto camusiano a partir da leitura das obras de André Gide (Paris, 1869-1951), das quais, O Imoralista, privilegia uma menção. A narrativa, a seguir, apesar de seu naturalismo simbolista, imbrica um potencial de percepção do outro. O protagonista, em convalescença de saúde na companhia de sua esposa, viaja pelo norte da África e, ao chegar em Biskra, na Argélia, depara-se com alguém que o deixa fora de si:
Uma manhã Marcelina entra rindo:
— Trago-te um amigo, me diz; e vejo entrar, atrás dela, um pequeno árabe de pele morena. Chama-se Bachir, tem uns grandes olhos silenciosos que me contemplam. Sinto-me um pouco constrangido, e este constrangimento já me cansa; não digo nada, pareço contrariado. O menino, diante da frieza do meu acolhimento, se desconcerta, volta-se para Marcelina e, com um movimento de graça animal e meiga, encolhe-se contra ela, toma-lhe a mão e a beija com um gesto que descobre seus braços nus. Noto que ele está nu sob a leve gandura branca e o albornoz remendado.
— Vamos! Senta-te ali, diz Marcelina, que nota meu constrangimento. Brinca tranqüilamente.
O pequeno senta-se no chão, tira uma faca do capuz do albornoz, um pedaço de djerid e começa a trabalhar. É um assobio (sic.) [6], creio, que ele quer fazer.
No fim de pouco tempo, sua presença não me constrange. Olho-o; parece ter esquecido de que estou ali. Seus pés estão nus; os tornozelos e os pulsos são delicados. Maneja sua pobre faca com uma destreza divertida. [...] A gandura, um pouco caída descobre seu ombro frágil. Sinto desejo de tocá-lo. Inclino-me; ele se volta e me sorri. Faço-lhe um gesto de que me passe o assobio, tomo-o e finjo admira-lo muito. Agora ele quer partir, [...] No dia seguinte, Bachir voltou. Sentou-se como na antevéspera, tirou sua faca, tentou cortar uma madeira mais dura e trabalhou tão bem que enterrou a lâmina no polegar. Estremeci de horror; ele riu, mostrou o corte brilhante e ficou entretido vendo correr o sangue. Quando ria, mostrava os dentes branquíssimos; lambeu gostosamente o ferimento; sua língua era rosada como a de um gato. Como fazia tudo naturalmente! Era o que nele mais me atraía... (GIDE, 1947, p. 33-35).
A atitude desconcertante diante de Bachir, curiosamente, por analogia, revela um traço do homem do pós-guerra, inteiramente contaminado pelos estilhaços da era moderna, mas, que, mesmo assim, graças ao seu naturalismo, abre-se para acolher a epifania de outrem. O estupor de Gide ao descrever milímetro por milímetro cada gesto do menino se reifica em Camus, quando, por exemplo, descreve a presença do Sol sobre Meursault, em O Estrangeiro. O outro, tratado por Gide, adquire fisionomia a partir de alguém (Bachir), enquanto que, para Camus, manifesta-se em totalidades sob configuração das absurdidades no mundo. A ontologicidade de outrem em Camus é indicativa de sua presença no mundo. A Solidariedade, portanto, do ponto de vista ético, é anterior à comiseração. Apiedar-se de alguém é, antes de todo agir, Solidarizar-se com ele. Nãoum conflito dialético entre a presença de outrem e o seu vir a ser. A paradoxalidade da presença, em estar simultaneamente ausente, é que faz se aproximar do mundo para melhorá-lo. Isto é, torná-lo inteiramente presente.
Ao se retomar a questão de se viver em abSoluta presença, pode-se, em meio a Núpcias, de Camus, verificar o desejo de eternização como um paradoxo sinal de um mundo em que o outro poderia fazer parte:

C’est dans la mesure où je me sépare du monde que j’ai peur de la mort, dans la mesure où je m’attache au sort des hommes qui vivent, au lieu de contempler le ciel qui dure. Créer des morts conscients, c’est diminuer la distance qui nous sépare du monde, et entrer sans joie dans l’accomplissement, conscient des images exaltantes d’un monde à jamais perdu (CAMUS, 1998, p. 30-31).


É à medida que me separo do mundo que tenho medo da morte — à medida que me apego ao destino dos homens que vivem em vez de contemplar o céu que perdura. Criar mortos conscientes é diminuir a distância que nos separa do mundo e entrar, sem alegria, na perfeição final, conscientes das imagens de exaltação de um mundo perdido para sempre (CAMUS, 1979, p. 24).
Visto desse modo, o campo memorial do homem contemporâneo reflete apenas a experiência de si. O seu eu tornou-se algo que almeja o outro sem rosto, porque deseja o fora, daí o Outro não se constituir na subjetividade do sujeito. Numa das falas dos personagens da peça Calígula, de Camus, pode-se identificar esse querer estar constantemente fora:

Caligula, il est vrai. Mais je ne le savais pas auparavant. Maintenant, je sais (toujours naturel). Ce monde, tel qu’il est fait, n’est pas supportable. J’ai donc besoin de la lune, ou du bonheur, ou de l’immortalité, de quelque chose qui soit dément peut-être, mais qui ne soit pas de ce monde (CAMUS, 1998, p. 26).


Calígula — É a verdade. Atépouco tempo eu não sabia. Agora, sei (sempre natural). Este mundo, tal como está feito, não é suportável. Tenho, portanto, necessidade da lua, ou da felicidade, ou da imortalidade, de qualquer coisa de demente, talvez, mas que não o seja deste mundo (CAMUS, 197-, p. 23).
Camus, homem de seu tempo e de sua cultura argelino-francesa, sofre o peso do imperialismo francês e, com isso, tenta mostrar que, além de qualquer perspectiva filosófica a respeito do problema da absurdidade da indiferença, está o fundamento da vida (O Sol) que retira o homem da ambigüidade multiforme do mundo.
Atualmente, alguns autores, como Edward Said[7], possuidores da experiência do exílio, traçam uma abordagem geopolítica da descolonização tendo em vista a prerrogativa de ser outrem. O próprio Said em sua obra Cultura e Imperialismo deram destaque, entre outros temas, à experiência colonial francesa vivida por Camus no intuito de contextualizar o imperialismo francês e a perspectiva de descolonização: Na Argélia, por mais incoerente que fosse a política dos governos franceses desde 1830, continuou o processo inexorável de afrancesá-la. Primeiro, as terras foram tomadas aos nativos e seus edifícios ocupados; a seguir, os colonos franceses tomaram conta das matas de sobreiros e jazidas minerais (SAID, 1995, p. 223).

Com efeito, Said caracteriza Camus como sendo,

[...] filho de uma faxineira espanhola e de um adegueiro francês, é o único autor da Argélia francesa que pode ser considerado justificadamente como escritor de estatura mundial. Tal como Jane Austen[8] um século antes, Camus é um romancista que não descreve os fatos da realidade imperial, evidentes demais para serem mencionados; como em Austen, nele permanece um Ethos que se destaca, sugerindo universalidade e humanismo, em profundo desacordo com as descrições do palco geográfico dos acontecimentos, feitas de maneira chã na ficção (1995, p. 223).

Camus é de particular importância na tremenda turbulência colonial do esforço de descolonização francesa no século XX, reconhece Said que acrescenta: “É uma figura imperial bastante tardia que não sobreviveu ao auge do império, mas permanece ainda hoje como escritoruniversalistacom raízes num colonialismo agora esquecido” (1995: 225).
Said mostra que a melhor forma correlata de interpretar os romances de Camus, portanto, seria vê-los como intervenções na história das iniciativas francesas na Argélia, de fazê-la e mantê-la francesa, e não como romances que nos falam do estado de espírito do autor. Mais uma vez, a relação entre geografia e luta política, nos romances de Camus, deve ser reativada exatamente aonde vem recoberta por uma superestrutura que Sartre elogiou, por criar um clima de absurdo”. Contudo, vale salientar que o conceito de “absurdotratado por Camus, principalmente em O Mito de Sísifo, não se restringe apenas a esses dois aspectos geopolíticos. Notam-se, mais uma vez, que Said, de modo intermitente, recorre em toda a sua obra a esses dois pontos que ele considera cruciais. Ou seja, a literatura universal, mesmo que seja representativa de um Ethos, é igualmente basilar como numa geopolítica.
Mesmo considerando que, para Said, as obras de Camus não pretendem ultrapassar uma perspectiva histórica, quando as retomam no paradoxo entre indiferença e presença, principalmente em O Estrangeiro, ele aponta um tênue reconhecimento da contradição humana, asseverando:
Voltar a situar L’étranger no nexo geográfico de onde surge sua trajetória narrativa é interpretá-lo como uma forma elevada de experiência histórica. Tal como a obra e a posição de Orwell na Inglaterra, o estilo direto e o relato simples de situações sociais ocultam paralisantes e complexas contradições inSolúveis quando se acentua, como têm feito os críticos, seus sentimentos de lealdade à Argélia francesa comoparábola da condição humana” (Grifos do Autor(SAID, 1995, p. 239).
Donde se conclui que a interpretação dada por Said sobre Camus é reducionista quando evoca apenas a geopolítica cultural de um povo, deixando de lado à possibilidade de se pensar a universalidade da condição humana, mesmo que o Árabe morto por Meursault não tenha nome próprio.
Evidentemente que o recorte apresentado por Said não pretende demonstrar o problema dessa universalidade, mas, sobretudo da condição particular de povos que não se tornaram nações nem de nações que não se constituíram como povos homogêneos.
A bem da verdade, Said, entre outros interlocutores [9], atua como aqueles que, de seu próprio lugar, ainda não puderam se fizer representar; seja como grupo político, seja como cidadão, seja como povo excluído, seja como despatriado e nem tenham podido se fazer compreender enquanto consciência não totalitária que inclui a diferença.
A fala dos excluídos de um tipo de sociedade em que se nega a presença da diferença deve, verdadeiramente, eclodir das gargantas e das entranhas de todo aquele que nega o discurso vazio, estéril, impotente e destituído de Sol.


Referências Bibliográficas:

§   CAMUS, Albert. Calígula / O Equívoco. Tradução de Ersílio Cardoso. Lisboa : Edições Livros do Brasil, 197-.
§   CAMUS, Albert. O homem revoltado. Tradução de Valerie Rumjanek. Rio de Janeiro: Record, 1997.
§   CAMUS, Albert. Núpcias, o verão. Tradução de Vera Queiroz da Costa e Silva. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1979.
§   CAMUS, Albert. Caligula suivi de le malentendu. Paris : Gallimard, 1998.
§   CAMUS, Albert. L’homme Révolté, essai. Paris : Gallimard, 1998.
§   CAMUS, Albert. La chute. Paris : Gallimard, 1998.
§   CAMUS, Albert. Noces suivi de l’été. Paris : Gallimard, 1998.
§   GIDE, André. O Imoralista. Tradução de Theodemiro Toster. Porto Alegre: Globo, 1947.
§   SAID, Edward. Cultura e imperialismo. Tradução de Denise Bottman. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
§   SAID, Edward. Orientalismo: o oriente como invenção do ocidente. Tradução de Tomás Rosa Bueno. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.




[1] Os messianismos de hojetal como afirma Camus, adquiriram força e se proliferaram pelo mundo a partir do Pós-Guerra Mundial (1939-1945) hipostasiadas pelo fenômeno ideológico do “American Way of Life”. A América Latina foi o lugar por excelência dessa onda avassaladora que se espalhou pela África e Ásia, chegando por fim à Europa. Há uma obra de Delcio Monteiro de Lima, intitulada Os Demônios Descem do Norte, publicada pela Farncisco Alvez que é muito esclarecedora dessa propagação. Obviamente que se aliou o vácuo do Pós-Guerra com o poder econômico dos aliados da II Grande Guerra. O resultado foi maquiavelicamente perfeito. De início, instituem-se ditaduras na América Latina e na África e depois ou, concomitantemente, enviam-se tropas de evangelização, devendo, portanto, minar todas as formas ancestrais de resistência cultural e religiosa. No entanto, vale considerar que os evangélicos, apesar de terem evoluído para uma forma de religião pasteurizada e popular, não atinaram para os efeitos do ganho do capital pela via da persuassão. Surgem, portanto, os neo-pentencostalistas. Nascida e criada em terreno baldio do coração dos desesperados e dos sem esperança, estas igrejas prometem a salvação de todos os infortúnios, com direito a, desde que se pague para tanto, expulsão de demônios, de encostos, neutralização de feitiçarias, quitação de dívidas financeiras, separação de cônjuges com problemas de alcoolismo, conversão de jovens viciados em drogas (não ilícitas). A escatologia, com esses tipos de igreja, adquire status de existência no mundo em que se vive, sem passagem pela morte. Reviver em Jesus, eis a vitória do bem sobre o mal, sem que o Anjo revele o sétimo selo do Apocalipse. Os eleitos, i. é., os convertidos, vivem sob a égide do Salvador. Portanto, não importam os meios, os fins estão justificados. Com efeito, Camus, como a fênix, renasce dos escombros da Peste e vem testemunhar a favor da inocência, talvez, como destacou Kazantzakis em O Cristo Recrucificado ou Prometeu será de novo acorrentado.
[2] O  « 11 de setembro » é a prova irrefutável de sua percepção dos crimes de lógica. Jamais, ao longo da história da humanidade, a inocência foi tão julgada nos tribunais da “má consciência”. Mesmo Deus está sendo intimado a justificar-se pelas retaliações cometidas contra os totalitaristas de direita. Na “Guerra do Terror”, a vítima pode tudo porque seus valores não têm ética.
[3]  L’intelligence aussi me dit donc à sa manière que ce monde est absurde. Son contraire qui est la raison aveugle a beau prétendre que tout est clair, j’attendais des preuves et je souhaitais qu’elle eût raison (CAMUS, 1998, p. 38).
[4]  Si notre temps admet aisément que le meurtre ait ses justifications, c’est à cause de cette indifférence à la vie qui est la marque du nihilisme (CAMUS, 1998, p. 19).
[5] A concepção bíblica da criatura (Homem) ser « imagem e semelhança de Deus » perde, a partir da Renascença, seu atributo de semelhança, i. é., de sua alteridade que tinha Deus como paradigma. Desde então, o homem é apenas imagem refletida em seu próprio ser sem seu próprio espelho, ou seja, um tipo de narcisismo sem mistério.
[6] Conviria melhor: apito, em brasileiro.
[7] Edward SAID nasceu em 1935 em Jerusalém, de família cristã protestante, mas de cultura árabe, naturalizou-se americano vindo a falecer em setembro de 2003..
[8] Romancista inglesa nasceu em 1775 e morreu em 1817. Escreveu Amor e Amizade, Orgulho e Preconceito, Razão e Sensibilidade, dentre outras.
[9] Vale destacar outro autor desse tipo de crítica ao imperialismo cultural, o indiano Homi BHABHA que, em sua obra: O Local da Cultura, publicado pela editora da UFMG, em 1998, aborda com bastante veemência o mesmo problema.

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