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sábado, 24 de agosto de 2013

O Grito da Culpa (Camus nos cais do absurdo)




Lourenço Leite
V
ítima do drama de consciência o homem moderno se pretende Senhor abSoluto de toda forma de sanção, utilizando-se, assim que pode, de justificativas racionais que lhes permitem viver sem as fissuras decorrentes da culpa que encobrem o reconhecimento de outrem. Nesse universo do novo Jardim do Éden em que esse tipo de homem se instala, o outro é apenas identificado como alguém habitando nos seus arredores. Distanciado e inteiramente autônomo esse homem quer construir sua morada nesse novo Ethos, sozinho e Solitário, fugindo de todo tipo de julgamento, bem como de todo tipo de sanção que o venha inserir no âmbito da eticidade humana tradicional. No intuito de tentar descrever um tipo de homem e de seu comportamento moral, Camus, em A Queda, aproxima-se dos cais do oceano da existência moderna tendo como alegoria de fundo a tradição bíblica do homem vivendo no Éden e sendo expulso dele, em vista da elaboração de uma nova morada edênica, contudo, sem a presença racional de outrem.
Em um momento único e irremissível, um corpo cai na água e o grito que antecede sua queda ecoa incansavelmente na cabeça desmemoriada de Clamence. Desse modo, Camus engendra como um deus ex machina, o destino do homem moderno contemporâneo em sua “despretensiosa” obra A Queda, pelo estilo de vida de seu protagonista. Publicada em 1956, após as já consagradas A Peste, em 1947 e O Estrangeiro, em 1942, A Queda fará de Camus também um escritor sem medidas e sem metáforas lógicas. Trazendo, portanto, uma novidade que atrairia inúmeras críticas da intelectualidade da Rive Gauche francesa, talvez, por justamente, caricaturá-la. Contudo, a bem da verdade, esta obra dialógica possui um texto complexo e ambíguo por excelência, revelando um retrato do homem moderno enjaulado em seu Petit Studio da ex-capital do século XIX.
O protagonista é definitivamente aquele alienado do mundo (da natureza, do Sol e das paisagens), salvaguardando a experiência vivida por Camus na Argélia, que se tipifica como o L’Homme du Jour, o do cotidiano sem a luz que faz ver a interioridade imanente. Clamence é, assim como Camus, um exilado em sua própria terra. Expatriado de um lugar onde reinavam as cores e os cheiros dos dias enSolarados. A nostalgia da pátria de Camus é tão profundamente presente nessa obra que só se poderia compreendê-la por analogia ao que foi poetizado em Núpcias e O Verão. Poética, portanto, que, além de servir de contraponto ao esmaecido ambiente da urbanidade parisiense, revela o que seria o seu paraíso perdido quando descreve em minúcias as características de seu inesquecível povo e de sua terra sempre presente:
Voici pourtant un peuple sans passé, sans tradition et cependant non sans poésie — mais d´une poésie dont je sais bien la qualité dure, charnelle, loin de la tendresse, celle même de leur ciel, la seule à la vérité qui m´émeuve et me rassemble. Le contraire d´une peuple civilisé, c´est un peuple créateur. Ces barbares qui se prélassent sur des plages, j´ai l´espoir insensé qu´à leur insu peut-être, ils sont en train de modeler le visage d´une culture où la grandeur de l´homme trouvera enfin son vrai visage. Ce peuple tout entier jeté dans son présent vit sans mythes, sans conSolation. Il a mis tous ses biens sur cette terre et reste dès lors sans défense contre la mort. Les dons de la beauté physique lui ont été prodigués. Et avec eux, la singulière avidité qui accompagne toujours cette richesse sans avenir. Tout ce qu´on fait ici marque le dégout de la stabilité et l´insouciance de l´avenir. On se dépêche de vivre et si un art devait y naître, il obéirait à cette haine de la durée qui poussa les Doriens à tailler dans le bois leur première colonne. Et pourtant, oui, on peut trouver une mesure en même temps qu´un dépassement dans le visage violent et acharné de ce peuple, dans ce ciel d´été vidé de tendresse, devant quoi toutes les vérités sont bonnes à dire et sur lequel aucune divinité trompeuse n´a tracé les signes de l´espoir ou de la rédemption. Entre ce ciel et ces visages tournés vers lui, rien où accrocher une mythologie, une littérature, une éthique ou une religion, mais des pierres, la chair, des étoiles et ces vérités que la main peut toucher (CAMUS, 1998, p. 45-47).

Trata-se de um povo sem passado, sem tradição e, no entanto, não destituído de poesiamas de uma poesia de que eu conheço bem a qualidade dura, carnal, isenta de qualquer espécie de ternura, idêntica à de seu céu, a única, na verdade, que me comove e me reintegra em mim mesmo. O contrário de um povo civilizado é um povo criador. Tenho a esperança insensata de que esses bárbaros, que se estiram descuidadamente nas praias, talvez estejam, sem saberem, modelando o rosto de uma cultura em que a grandeza do homem encontrará por fim seu verdadeiro rosto. Este povo inteiro, voltado para o presente, vive sem mitos, sem conSolo. Depositou todos os seus bens sobre esta terra, permanecendo desde então sem defesa contra a morte. Os dons da beleza física lhe foram prodigados. E, juntamente com eles, a singular avidez que sempre acompanha esta riqueza sem futuro. Tudo o que aqui se faz, demonstra a indiferença pela estabilidade e o descaso pelo futuro. Vive-se em ritmo acelerado; e, se surgisse qualquer manifestação de arte, obedeceria a esse ódio pelo durável, que impulsionou os dórios a talharem em madeira sua primeira coluna. No entanto, é possível encontrar, a um tempo, no rosto violento e obstinado deste povo, uma medida e um desbordamento, tal como neste céu de verão, vazio de ternura, perante o qual todas as verdades podem ser ditas e onde nenhuma divindade enganadora jamais traçou os sinais da esperança ou da redenção. Entre este céu e estes rostos para ele voltados, nada existe em que se possam fixar uma mitologia, uma literatura, uma ética ou uma religião; mas, tão-somente, pedras, carne, estrelas e estas verdades que a mão consegue tocar (CAMUS, 1979, p. 36-37).
Ao contrário do homem argelino em Núpcias, Camus, em A Queda, retrata um outro sem transcendência alguma. Tem-se aqui a descrição — metaforizada — de um tipo de homem que se iSola para sobreviver, que se julga para não ser julgado, que se protege para não ser devorado e que se culpa para manter a impunidade diante da justiça, porque a verdade deve estar sempre ao alcance de sua mão. A Ética se configura como um paradoxo da ausência de outrem.
Em A Queda, Camus, simultaneamente, pretende-se autobiográfico, mesmo que tenha deixado os escritos de O Primeiro Homem (Le Premier Homme[1]), publicado post mortem, nos quais revelam sua vida do passado sem culpa e sem pai. Camus vivera no Éden da Argélia, imbuído de uma inocência adâmica, porém a perde, quando se imiscui da vida urbana e burguesa do pós-guerra europeu.
Em seus escritos sobre A Queda foram encontradas diversas tentativas de outros nomes que, revelavam a pretensão de Camus em querer mostrar um tipo de julgamento final, como aquele previsto na ‘Queda[2] do Éden por Lúcifer e Adão. Além disso, fora achado um título sobre: “Um Herói de Nosso Tempo” e “Um Puritano de Nosso Tempo”, bem como, um bastante curioso e sugestivo, que, não fosse o lançamento de um filme com o mesmo nome na época, teria, talvez, sido mantido por Camus: O Grito. Ao se pretender prestar uma homenagem ao grito que ficou parado no ar, optou-se, para este estudo, “O Grito da Culpa”, como aquele que continua a ecoar e a azucrinar o homem que ainda não perdeu a humanidade, por isso, está-se caminhando ao lado de Camus nos “Cais do Absurdo”.
O protagonista Jean-Baptiste[3]Clamence se encontra na selva do cotidiano moderno cercado de prédios por todos os lados e iSolado de todos os seres humanos que possam vir colocar em risco sua existência. Clamence representa também a dicotomia do homem europeu moderno que se iSola do mundo e vive em si mesmo distanciado de outrem. Ele encarna a queda da civilização mercantilista, técnica e moderna na barbárie e num inferno em que se tornou o destino do homem civilizado do pós-guerra. Em meio da Solidão em que vive, Clamence reina como um príncipe enjaulado, porém, sente a nostalgia de um tempo configurado em sua consciência que quer esquecê-lo. Em um de seus diálogos iniciais da obra, essa nostalgia se revela:
Vous avez raison, son mutisme est assourdissant. C´est le silence des forêts primitives, chargé jusqu´à la gueule. Je m´étonne parfois de l´obstination que met notre taciturne ami à bouder les langues civilisées. Son métier consiste à recevoirdes marins de toutes les nationalités dans ce bar d´Amsterdam qu´il a appelé d´ailleurs, on ne sait pourquoi, Mexico-City. Avec de tels devoirs, on peut craindre, ne pensez-vous pas, que son ignorance soit inconfortable ?Iimaginez l´homme de Cro-Magnon pensionnaire à la tour de Babel ! Il y souffrirait de dépaysement, au moins. Mais non, celui-ci ne sent pás son exil, il va son chemin, rien ne l´entame. Une des rares phrases que j´aie entendues de sa bouche proclamait que c´était à prendre ou à laisser. Que fallait-il prendre ou laisser ? Sans doute, notre ami lui-même. Je vous l´avouerai, je suis attiré par ces créatures tout d´une pièce. Quand on a beaucoup médité sur l´homme, par métier ou par vocation, il arrive qu´on éprouve de la nostalgie pour les primates. Ils n´ont pas, eux, d´arrière-pensées (CAMUS, 1998, p.08).

Tem toda razão, seu mutismo é ensurdecedor. É o silêncio das florestas primitivas, tão pesado que sufoca. Às vezes, me surpreendo com o obstinado desdém que o nosso taciturno amigo demonstra pelas línguas civilizadas. Seu trabalho é atender a marinheiros de todas as nacionalidades neste bar de Amsterdam, a que deu o nome, ninguém sabe bem por quê, de México-City. Não acha, meu caro senhor, que esses deveres levem sua ignorância a se tornar incômoda? Imagine o homem de Cro-Magnon hospedado na Torre de Babel! No mínimo, sofreria uma sensação de desterro. Mas nãoeste não sente o exílio, segue seu caminho, nada lhe atrapalha. Uma das raras frases que ouvi de sua boca proclamava que erapegar ou largar”. Pegar ou largar o quê? Sem dúvida, ele próprio, o nosso amigo. Vou fazer-lhe uma confidência — sinto atração por essas criaturas graníticas. Quando se pensou muito sobre o homem, por trabalho ou  vocação, às vezes sente-se nostalgia dos primatas. Estes não têm outros pensamentos (CAMUS, 198-, p. 6).
De início, vale destacar que o protagonista, quase todo o tempo, apesar de parecer dialogar com alguém, dialoga consigo próprio. Em verdade, ele é seu próprio interlocutorreflexo da expressão do homem contemporâneo moderno. Porém, o interlocutor evolui na obra para um tipo de alter-ego, um duplo de Clamence em razão de não querer, em momento algum, deparar-se com outrem para não ter de ser julgado pelos seus atos morais. O outro, desde o início da obra, está configurado como um animal inferior, sem rosto humano e sem fala. A linguagem humana que se estabelece é a linguagem do surdo mudo que fala para si mesmo sem nenhum entendimento e sem nenhuma interlocução. O homem civilizado nesse tipo de sociedade se iguala ao homem do Cro-Magnon que se sentiria desterrado por não encontrar nenhuma afinidade cultural. Seria um tipo de homem em que sua animalidade mostrar-se-ia superior a sua humanidade, todavia, diferentemente da conhecida alegoria da barbárie da “Torre de Babel[4], em que os homens são todos semelhantes em atitudes e em busca, porque pretendem re-alcançarem o Éden ao perpetrarem uma subida única e irreversível, sem diálogo possível com o abSoluto. Suas consciências são os limites da fala da transcendência e os seus desejos lascivos circundam toda forma de elaboração do paraíso. A organização social, por conseguinte, está calcada em um tipo de sociedade animal exemplificado na alegoria das piranhas encontrado nos rios brasileiros, como se verifica na narrativa seguinte:
Les Hollandais, oh non, ils sont beaucoup moins modernes ! Ils ont le temps, regardez-les. Que font-ils ? Eh bien, ces messieurs-ci vivent du tavail de ces dames-là. Ce sont d’ailleurs, mâles et femelles, de fort bourgeoises créatures, venues ici, comme d’habitude, par mythomanie ou par bêtise. Par excès ou par manque d’imagination, en somme. De temps en temps, ces messieurs jouent du couteau ou du revolver, mais ne croyez pas qu’ils y tiennent. Le rôle l’exige, voilà tout, et ils meurent de peur en lâchant leurs dernières cartouches. Ceci dit, je les trouve plus moraux que les autres, ceux qui tuent en famille, à l’usure. Návez-vous pas remarqué que notre société s’est organisée pour ce genre de liquidation? Vous avez entendu parler, naturellement, de ces minuscules poissons des rivières brésiliennes qui s’attaquent par milliers au nageur imprudent, le nettoient, en quelques instants, à petites bouchées rapides, et n’en laissent qu’un squelette immaculé? Eh bien, c’est ça, leur organisation. “Voulez-vous d’une vie propre? Comme tout le monde?” Vous dites oui, naturellement. Comment dire non? “D’accord. On va vous nettoyer. Voilà un métier, une famille, des loisirs organisés.“Et les petites dents s’attaquent à la chair, jusqu’aux os. Mais je suis injuste. Ce n’est pas leur organisation qu’il faut dire. Elle est la nôtre, après tout: c’est à qui nettoiera l’autre (CAMUS, 1998, p. 10-11).

Os holandeses — ah, não, estes são muito menos modernos! Têm todo o tempo — olhe para eles. Que fazem? Pois bem, estes senhores vivem do trabalho daquelas senhoras. Aliás, tanto os machos quanto as fêmeas são criaturas extremamente burguesas, que aqui vêm, como de costume, por mitomania ou burrice. Em resumopor excesso ou falta de imaginação. De vez em quando, estes senhores brincam de faca ou de revólver, mas não acredite que se empenhem muito. O papel o exige — nada mais — e eles morrem de medo ao disparar os últimos cartuchos. Dito isto, acho que são mais morais do que os outros, os que matam em família, pelo desgaste. Nunca observou, caro senhor, que nossa sociedade se organizou para este tipo de liquidação? Naturalmente, deve ter ouvido falar dos minúsculos peixes dos rios brasileiros que se atiram aos milhares sobre o nadador imprudente, e limpam-no, em alguns instantes, com pequenas mordidas rápidas, deixando apenas um esqueleto imaculado? Pois bem, é esta a organização deles. — Quer ter uma vida limpa? Como todo mundo? É claro que a resposta é sim. Como dizer não? — Está bem. Pois vai ficar limpo. Pegue um emprego, uma família, férias organizadas. E os pequenos dentes cravam-se na carne até os ossos. Mas estou sendo injusto. Não se deve dizer que a organização é deles. Ela é nossa, afinal de contas: é o caso de saber quem vai limpar o outro (CAMUS, 198-, p. 08-09).
A sociedade em que Clamence está inserido retrata um homem lobo do homem, mas, inclusive, demonstra uma necessidade de limpeza de toda forma de alteridade que se pretenda imaculada de culpa. Vale notabilizar-se que a “imaculada culpa” remete ao oposto da tradição bíblica do “pecado original”. O homem representado por Clamence não anui nenhuma imputação de carga hereditária referente à culpa de outrem. Seu ingresso nos Jardins do novo Éden se fará de forma inteiramente imaculada, como se constatou na citação anterior. A sede natural de liquidação do outro não se configura apenas em querer eliminá-lo, mas, sobretudo em querer impedir sua presença. O individualismo aqui é levado às últimas conseqüências e o instinto de sobrevivência toma forma animalesca no sentido pejorativo do termo, visto que não se verifica esse tipo de comportamento no reino animal. Os animais, por sua vez, ao aniquilarem os demais, fazem-no para proteger o seu território ou para alimentarem-se. No entanto, a vida na selva urbana, sob o ponto de vista de Camus, é a negação paradoxal de toda presença que revele o outro enquanto semelhante. O outro é uma ameaça em todos os patamares da existência porque ausculta e perscruta a demonstração do humano na esfera do cotidiano. Se alguém não estiver atento à presença sinistra de outrem quando ocorrer uma exposição de si, a conseqüência é a morte pelo outro. A título de complemento do exemplo anterior, pode-se notar, na citação seguinte, essa metáfora como medo de julgamento do outro:
Mon cher ami, ne leur donnons pas de prétexte à nous juger, si peu que ce soit ! Ou sinon, nous voilà en pièces. Nous sommes obligés aux mêmes prudences que le dompter. S’il a le malheur, avant d’entrer dans la cage, de se couper avec son rasoir, quel gueuleton pour les fauves! J’ai compris cela d’un coup, le jour où le soupçon m’est venu que, peut-être, je n’étais pas si admirable. Dès lors, je suis devenu méfiant. Puisque je saignais un peu, j’y passerais tout entier: ils allaient me dévorer (CAMUS, 1998, p. 67).

Meu caro amigo, não demos pretexto para nos julgarem, por pouco que seja! Caso contrário, nos deixem em pedaços. Somos obrigados às mesmas precauções que o domador. Se ele tem a infelicidade antes de entrar na jaula, de cortar-se com a navalha, que banquete para as feras! Compreendi isso num relance, no dia em que me ocorreu a suspeita de que, talvez, eu não fosse tão digno de admiração. A partir de então, passei a ser desconfiado. que sangrava um pouco, estava totalmente perdido: iam devorar-me (CAMUS, 198-, p. 61).
A exposição da interioridade mostrada como sangue que escorre de dentro para fora traz a público a vulnerabilidade de si que deve ser evitada a todo custo. A cotidianidade do homem moderno, demarcado em A Queda, evidencia a total artimanha da razão em anular as diferenças encontradas nas relações humanas e a fortificação da indiferença.
A vida em Amsterdã é a possibilidade, não somente para Clamence, mas para todo aventureiro, de fornicação e de obtenção de informação constante. É o lugar paradisíaco por excelência para se banhar no oceano do cotidiano sem culpa, sem julgamento e sem a presença de outrem. É o lugar perfeito para que o individualismo se manifeste com a proteção de seus compatriotas cúmplices da mesma experiência de vida. É o lugar em que o narcisismo toma forma integral e o outro não adquire feições de um espelho. Entrementes aos diálogos mantidos consigo próprio, o protagonista demonstra as invariáveis características desse tipo de homem do cotidiano:
Il faut le reconnaître humblement, mon cher compatriote, j´ai toujours crevé de vanité. Moi, moi, moi, voilá le refrain de ma chère vie, et qui s´entendait dans tout ce que je disais. Je n´ai jamais pu parler qu´en me vantant, surtout si je le faisais avec cette fracassante discrétion dont j´avais le secret. Il est bien vrai que j´ai toujours vécu libre et puissant. Simplement, je me sentais libéré à l´égard de tous pour l´excellente raison que je ne me reconnaissais pas d´égal. Je me suis toujours estimé plus intelligent que tout le monde, je vous l´ai dit, mais aussi plus sensible et plus adroit, tireur d´élite, conducteur incomparable, meilleur amant. [...] quand je m´occupais d´autrui, c´était pure condescendance, en toute liberté, et le mérite entier m´en revenait : je montais d´un degré dans l´amour que je me portais. La même infirmité qui me rendait indifférent ou ingrat me faisait alors magnanime. Je vivais donc sans autre continuité que celle, au jour le jour, du moi-moi-moi. Au jour le jour les femmes, au jour le jour la vertu ou le vice, au jour le jour, comme les chiens, mais tous les jours, moi-même, Solide au poste (CAMUS, 1998, p. 44).

Devo reconhecê-lo humildemente, meu caro compatriota, fui sempre um poço de vaidade. Eu, eu, eu, eis o refrão de minha preciosa vida, e que se ouvia em tudo quanto eu dizia. Só conseguia falar vangloriando-me, sobretudo se o fazia com esta ruidosa discrição, cujo segredo eu possuía. É bem verdade que eu sempre vivi livre e poderoso. Simplesmente, sentia-me liberado em relação a todos pela excelente razão de que me considerava sem igual. Sempre me achei mais inteligente do que todo mundo, como já lhe disse, mas também mais sensível e mais hábil, atirador de elite, incomparável ao volante e melhor amante. [...] Quando me ocupava dos outros, era por pura condescendência, em plena liberdade, e todo o mérito revertia em meu favor: eu subia um degrau no amor que dedicava a mim mesmo. [...] O mesmo defeito que me tornava indiferente ou ingrato fazia-me magnânimo. [...] Vivia, pois, sem outra continuidade no dia-a-dia, que não fosse a do eu-eu-eu. No dia-a-dia, as mulheres; no dia-a-dia, virtude ou vício; no dia-a-dia, como os cães, mas todos os dias, eu próprio, firme no meu posto  (CAMUS, 198-, p. 39-41).
O contexto em que se configuram e se realizam todas as feições desse tipo de homem desnaturado e recheado de todo tipo de gordura da mesmice, faz de seu protagonista, pelas mãos de Camus, alguém que, enquanto advogado que é, advoga em causa própria, mesmo que esteja defendendo o seu cliente. Acusa para não ser acusado; monta processo de crimes, para não cair em trâmites de julgamento. Antes, isto é, quando morava em Paris, era advogado bastante conhecido de causas nobres: a viúva e o órfão. A justiça dormia com ele todas as noites. Além disso, ele próprio definia-se como alguém queera alimentado por dois sentimentos sinceros: a satisfação de (se) me encontrar do lado certo do tribunal e um desprezo instintivo pelos juízes em geral (CAMUS, s.d., p. 17). Agora, Clamence, apesar de seu passado parisiense ter lhe levado a vislumbrar a presença de outrem, em Amsterdã, sua vida adquire outra conotação devido a sua nova função de advogado de causas nobres a juiz-penitente.[5] Clamence, além de enveredar pelos caminhos da ascensão social, empreende uma subida em direção ao que há de mais elevado em sua carreira jurídica. Como juiz-penitente ele tem às mãos o real poder de aplicar qualquer sentença ou penalidade ao réu, que, em verdade, é ele mesmo.
O fato de estar na Holanda, não é por acaso. O país pertence ao que geograficamente é considerado como integrante dos Países Baixos. Aqueles que estão abaixo do nível do mar e, por conseguinte, submetidos às intempéries da natureza, tais como: inundações, chuvas freqüentes etc. A cidade em questão é entrecortada de inúmeros canais, o clima é quase sempre ameno, chove bastante, há nevoeiros e o céu nem sempre está enSolarado. Com efeito, estar nesse ambiente hidrográfico, do ponto de vista mítico-religioso, é estar submerso em um mundo da expiação em que a água representa o batismo originário. Batismo esse que o reconduz a um tipo de jornada iniciática. Amsterdã, portanto, é o lugar por excelência para essa sua etapa de passagem.
[...] nous sommes au coeur des choses. Avez-vous remarqué que les canaux concentriques d´Amsterdam ressemblent aux cercles de l´enfer ? l´enfer bourgeois, naturellement peuplé de mauvais rêves. Quand on arrive de l´exterieur, à mesure qu´on passe ces cercles, la vie, et donc ses crimes,, devient plus épaisse, plus obscure. Ici, nous sommes dans le dernier cercle. Le cercle des ... Ah ! Vous savez cela ? (CAMUS, 1998, p. 16).

[...] nós estamos no âmago das coisas. Já reparou que os canais concêntricos de Amsterdam se parecem com os círculos do inferno? O inferno burguês, naturalmente, povoado de maus sonhos. Quando se chega do exterior, à medida que se passa por estes círculos, a vida e, portanto, os seus crimes tornam-se mais espessos, mais obscuros. Aqui, estamos no último círculo. O círculo dos...[6] Ah! Sabe disso? (CAMUS, 198-, p. 14).
O personagem, enquanto herói trágico foge de dois tipos de perseguição: o riso e o grito emitidos outrora em Paris, quando vivia como advogado. Seu destino de agora em diante é a irreversibilidade das alturas, conforme é mencionado em um de seus diálogos unilaterais: “Se o destino me houvesse forçado a escolher um trabalho manual, torneiro ou pedreiro — pode estar certo de que eu teria escolhido os telhados e feito amizade com as vertigens[7] (CAMUS, 198-, p. 21).
A busca de Jean-Baptiste, o juiz-penitente, é por algo que recusa paradoxalmente encontrar. Uma presença foi instalada em seu ser que somente poderia ser compreendido pela via alegórica do pecado original. Ele, como se assinalou anteriormente, precisa se tornar de novo imaculado de toda mancha que venha comprometer sua nova categoria social e existencial. É o desterrado perdido no anonimato da vida urbana e tecnicista em que o outro, mesmo Solfejando sua presença, não o retira de seu mundo nem o desloca de sua carapaça. Sua indiferença é mantida pela força da impunidade social, histórica e metafísica. De tudo e de todos o protagonista dessa história deve estar ileso. Seu poder de viver no anonimato da cidade das águas é abSolutamente inquestionável. No relato a seguir, Clamence mostra-se como se pode sobreviver a todo tipo de impunidade:

Ma profession satisfaisait heureusement cette vocation des sommets. Elle m´enlevait toute amertume à l´égard de mon prochain que j´obligeais toujours sans jamais rien lui devoir. Elle me plaçait au-dessus du juge que je jugeais à son tour, au-dessus de l´accusé que je forçais à la reconnaissance. Pesez bien cela, cher monsieur : je vivais impunément. Je n´étais concerné par aucun jugement, je ne me trouvais pas sur la scène du tribunal, mais quelque part, dans les cintres, comme ces dieux que, de temps en temps, on descend, au moyen d´une machine, pour transfigurer l´action et lui donner son sens (CAMUS, 1998, p. 26).

A minha profissão satisfazia, felizmente, esta vocação das alturas. Ela me livrava de qualquer amargura em relação ao próximo, a quem eu sempre servia, sem nunca lhe dever nada. Ela me colocava acima do juiz, que, por minha vez, eu julgava; acima do réu, que eu obrigava ao reconhecimento. Medite bem sobre isto, meu caro senhor: eu vivia impunemente. Nenhum julgamento me dizia respeito, não me encontrava no palco do tribunal, mas em algum lugar nas galerias, como esses deuses[8] que, de tempos em tempos, se fazem descer por meio de um maquinismo, para transfigurar a ação e dar-lhe o seu sentido (CAMUS, 198-, p. 22-23).
O protagonista em apreço manipula de tal maneira as justificativas de suas ações morais que consegue se igualar ao deus ex machina encontrada nas representações da Tragédia Grega, principalmente nas de Eurípedes. A renúncia de sua culpa é vertiginosamente conduzida a um estado de consciência em que a ação adquire força esmagadora para poder sucumbir toda e qualquer fissura hereditária ou conduta ocorrida no seu próprio passado. Adiante, poder-se-á verificar como Clamence, numa reinterpretação dos atos cometidos, destrói a temporalidade lógica da narrativa e faz com que o leitor se remeta a Paris, em um dado momento único e irremediável, quando um RISO ecoa na noite e vai persegui-lo até Amsterdã.
Je me redressai et j’allais allumer une cigarette, la cigarette de la satisfaction, quand, au même moment, un rire éclata derrière moi. Surpris, je fis une brusque volte-face: il n’y avait personne. J’allai jusqu’au garde-fou: aucune péniche, aucune barque. Je me retournai vers l’île et, de nouveau, j’entendis le rire dans mon dos, un peu plus lointain, comme s’il descendait le fleuve. Je restais là, immobile. Le rire décroissait, mais je l’entendais encore distinctement derrière moi, venu de nulle part, sinon des eaux. En même temps, je percevais les battements précipités de mon coeur. Entendez-moi bien, ce rire, naturel, presque amical, qui remettait les choses en place. Bientôt d’ailleurs, je n’entendis plus rien. Je regagnai lês quais, pris la rue Dauphine, achetai dês cigarettes dont je n´avais nul besoin. J´étais étourdi, je respirais mal. Ce soir-là, j´appelai um ami qui n´était pás chez lui. J´hésitais à sortir, quand, soudain, j´entendis rire sous mes fenêtres. J´ouvris. Sur trottoir, em effet, dês jeunes gens se séparaient joyeusement. Je refermai les fenêtres, en haussant les épaules ; après tout, j´avais un dossier à étudier. Je me rendis dans la salle de bains pour boire un verre d´eau. Mon image souriait dans la glace, mais il me sembla que mon sourire était double (CAMUS, 1998, p. 36).

Eu me endireitei e ia acender um cigarro, o cigarro da satisfação, quando, no mesmo momento, explodiu uma gargalhada atrás de mim. Surpreendido, fiz uma brusca meia-volta: não havia ninguém. Fui até o parapeito: nenhuma barcaça, nenhum barco. Virei-me para a ilha e de novo ouvi o riso às minhas costas, um pouco mais distante, como se descesse o rio. Fiquei onde estava, imóvel. O riso diminuía, mas eu o ouvia ainda distintamente atrás de mim, vindo de lugar nenhum, a não ser das águas. Ao mesmo tempo, sentia os batimentos precipitados do meu coração . compreenda-me bem, este riso nada tinha de misterioso: era um riso bom, natural, quase amigável, que recolocava as coisas no seu lugar. Aliás, logo depois não ouvi mais nada. Retornei ao cais, entrei na rua Dauphine, comprei cigarros, sem necessidade alguma. Estava atordoado, respirava com dificuldade. Nessa noite, telefonei para um amigo, que não estava em casa. Hesitava em siar, quando, de repente, ouvi alguém rir sob a minha janela. Abri. Com efeito, na calçada, alguns jovens despediam-se alegremente. Dei de ombros, tornei a fechar a janela; afinal de contas, eu tinha um processo para estudar. Dirigi-me ao banheiro para beber um copo de água. A minha imagem sorria no espelho, mas pareceu-me que me via com um duplo sorriso... (CAMUS, 198-, p.32-33)
Curiosamente, o protagonista, nessa situação, é tomado inteiramente pelo riso ecoado na noite. A presença de algo, mesmo desconhecido e não identificado, toma acento na vida dele a tal ponto que se motiva a telefonar para alguém a fim de relatar o ocorrido. A presença de um simples riso numa madrugada silenciosa quebrara o silêncio da noite e fizera diminuir os passos daquele transeunte que flanava nas ruas dos cais da capital da urbanidade moderna. A presença de um afeto que ecoou em sua interioridade e o fez ver a si próprio através de um duplo espelho de si mesmo. Apesar de ter passado ao largo e não ter podido cumprir com nenhuma atitude de compartilhamento, a acolhida do riso em sua intimidade, será, como se poderá verificar, mais adiante, o contraponto da marca indelével da culpa gerada pela indiferença perante a queda do corpo que cai no rio. Em seguida, esse fato é inteiramente retratado por Clamence ao seu interlocutor oculto:
Vraiment, mon cher compatriote, je vous suis reconnaissant de votre curiosité. Pourtant, mon histoire n´a rien d´extraordinaire. Sachez, puisque vous y tenez, que j´ai penseé un peu à ce rire, pendant quelques jours, puis je l´ai oublié. De loin en loin, il me semblait l´entendre, quelque part en moi. Mais, la plupart du temps, je pensais, sans effort, à autre chose. Je dois reconnaître cependant que je ne mis plus les pieds sur les quais de Paris. Lorsque j´y passais, en voiture ou en autobus, il se faisait une sorte de silence en moi. J´attendais, je crois. Mais je franchisssais la Seine, rien ne se produisait, je respirais. J´eus aussi, à ce moment, quelques misères de santé. Rien de précis, de l´abattement si vous voulez, une sorte de difficulté à retrouver ma bonne humeur. Je vis des médecins qui me donnèrent des remontants. Je remontais, et puis redescendais. La vie me devenait moins facile : quand le corps est triste, le coeur languit. Il me semblait que je désapprenais en partie ce que je n´avais jamais appris et que je savais pourtant si bien, je veux dire vivre. Oui, je crois bien que c´est alors que tout commença (CAMUS, 1998, p. 39-40).

Realmente, meu caro compatriota, fico-lhe muito grato, pela sua curiosidade. No entanto, minha história nada tem de extraordinário. Saiba, que tem tanto interesse nisso, que pensei um pouco naquele riso, durante alguns dias, e depois o esqueci. De vez em quando, parecia-me ouvi-lo, em algum lugar dentro de mim. Mas, durante a maior parte do tempo, eu pensava sem esforço em outras coisas. Devo reconhecer, no entanto, que não pus mais os pés nos cais de Paris. Quando passava por de automóvel ou de ônibus, fazia-se dentro de mim uma espécie de silêncio. Acho que esperava. Mas atravessava o Sena, nada sucedia, e então eu respirava. Tive também, nessa época, alguns problemas de saúde. Nada de preciso, um abatimento, se prefere, uma espécie de dificuldade em encontrar o meu bom humor. Fui a médicos, que me deram tônicos reconstituintes. Melhorava, e depois recaía. A vida tornava-se menos fácil: quando o corpo está triste, o coração perde as forças. Parecia-me desaprender em parte o que nunca tinha aprendido e que, no entanto, sabia tão bemisto é, viver. Sim, acho que tudo começou mesmo nessa ocasião  (CAMUS, 198-, p. 35-36).
Tudo houvera começado naquela ocasião. A presença de um efêmero riso iria desencadear uma tomada de consciência que outrora o protagonista nunca tivera coragem de enfrentar, porque isso iria remeter a sua origem humana que tanto fizera para esquecer e para se libertar. A vida em uma cidade como Amsterdã era a real possibilidade de entrar profundamente no reino do esquecimento como se Clamence caísse no rio Estige que antecede o Hades. O passado para ele comportava um medo aterrador que poderia soçobrar com o presente originário. No entanto, torna-se tão presente no presenteporque não reSolvido — que o faz rememorar aquele ocorrido como se fosse algo que se metaforizava em outrem. Havia um tipo de culpa sem nome que o perseguia sem pedir licença. Diferentemente do grito que iria ecoar mais adiante, o riso antepõe-se como uma presença amigável. Seu afeto pelo humano fora despertado e a sua vida, aparentemente organizada e perfeita, estivera marcada por uma situação sem precedentes naquela noite do cais do absurdo. Algo inefável havia se posto entre ele e o mundo. Seu medo era pertinente: essa coisa sem nome poderia tomar forma e ocupar seu próprio lugar. Sua identidade de cidadão cosmopolita de um mundo sem universalidade estaria posta em cheque. Era preciso livrar-se daquele risomesmo porquesua permanência em Amsterdã não deveria ser passageira. Aquela cidade haveria de ser seu novo mundo, seu novo Ethos em que estaria totalmente protegido das fragilidades dos débeis forasteiros do cotidiano vulgar. Como umgorila na floresta”, haveria de possuir forças suficientes para espezinhar “as formigas humanas” que desfilavam abaixo de seu apartamento. Todavia, a presença do absurdo poderia como bem disse Camus, em O Mito de Sísifo, “fazer rir o homem honesto”:
[...] la raison universelle, pratique ou morale, ce déterminisme, ces catégories qui expliquent tout, ont de quoi faire rire l’homme honnête. Ils n’ont rien à voir avec l’esprit. Ils nient sa vérite profonde qui est d’être enchaîné. Dans cet univers indéchiffrable et limité, le destin de l’homme prend désormais son sens (CAMUS, 1998, p. 38-39).

[...] essa razão universalmoral ou prática —, esse determinismo, essas categorias que explicam tudo têm com que fazer rir o homem honesto. Não têm nada a ver com o espírito. Negam sua verdade profunda, que é estar acorrentado. Nesse universo indecifrável e limitado o destino do homem, daí em diante, adquire seu sentido  (CAMUS, 1989, p. 40).
A nova ordem estabelecida na vida de Clamence é um tipo de configuração de sentimentos que não pode ser explicado pela simples razão que se ocupa da sobrevivência e da aparência. A mundaneidade de seu cotidiano não tem elementos suficientes para uma hermenêutica do inexplicável. A natureza humana, mais uma vez, sob a luz camusiana, é mostrada através da obscuridade do protagonista e sua autoculpabilidade. A circunstância em que tudo houvera começado, em verdade, adquiriria sentido com a narrativa da queda do corpo no rio. O seu barulho, tênue naquela ocasião, tornar-se-ia ensurdecedor e o perseguiria em toda a sua existência, limitada que fosse à obra A Queda. A sua felicidade, a partir daquele momento, tornar-se-ia inteiramente comprometida. Sua inocência primitiva acabaria com a explosão do riso, com o barulho da queda ela se estilhaçaria. O Sol, a verdade, a no homem, tudo estava perdido. Convém, mais uma vez, retomar a narrativa da queda que se iguala em riqueza de detalhes à descrita no O Estrangeiro, quando da morte do Árabe na praia:
Cette nuit-là, en novembre, deux ou trois ans avant le soir où je crus entendre rire dans mon dos, je regagnais la rive gauche, et mon domicile, par le pont Royal. Il était une heure après minuit, une petite pluie tombait, une bruine plutôt, qui dispersait les rares passants. Je venais de quiter une amie qui, sûrement, dormait déjà. J’étais heureux de cette marche, un peu engourdi, le corps calmé, irrigué par un sang doux comme la pluit qui tombait. Sur le pont, je passai derrière une forme penchée sur le parapet, et qui semblait regarder le fleuve. De plus près, je distinguai une mince jeune femme, habillée de noir. Entre les cheveux sombres et le col du manteau, on voyait seulement une nuque, fraîche et mouillée, à laquelle je fus sensible. Mais je poursuivis ma route, après une hésitation. Au bout du pont, je pris les quais en direction de Saint-Michel, où je demeurais. J’avais déjà parcouru une cinquantaine de mètres à peu près, lorsque j’entendis le bruit, qui, malgré la distance, me parut formidable dans le silence nocturne, d’une corps qui s’abat sur l’eau. Je m’arrêtai net, mais sans me retourner. Presque aussitôt, j’entendis un cri, plusieurs fois répété, qui descendait lui aussi le fleuve, puis s’éteignait brusquement. Le silence qui suivit, dans la nuit soudain figée, me parut interminable. Je voulus courir et je ne bougeai pas. Je tremblais, je crois, de froid et de saisissement. Je me disais qu’il fallait faire vite et je sentais une faiblesse irrésistible envahir mon corps. J’ai oublié ce que j’ai pensé alors. “Trop tard, trop loin...” ou quelque chose de ce genre. J’écoutais toujours, immobile. Puis, à petits pas, sous la pluie, je m’éloignai. Je ne prévins personne (CAMUS, 1998, p. 61-62).

Naquela noite, em novembro, dois ou três anos antes da noite em que julguei ouvir rir às minhas costas, eu voltava para a margem esquerda, para casa, pela Ponte Royal. Passava uma hora da meia-noite, caía uma chuva miúda, mais uma garoa, que dispersava os raros transeuntes. Acabava de deixar uma amiguinha que, com certeza, estava dormindo. Sentia-me bem com esta caminhada, um pouco entorpecido, o corpo acalmado, irrigado por um sangue suave como a chuva que caía. Na ponte, passei por detrás de uma forma debruçada sobre o parapeito e que parecia olhar o rio. De mais perto, distingui uma mulher nova e esguia, vestida de preto. Entre os cabelos escuros e a gola do casaco, via-se apenas uma nuca, fresca e molhada, que me sensibilizou. Mas segui meu caminho, depois de uma hesitação. No fim da ponte, peguei o cais, em direção a Saint-Michel, onde eu morava. havia percorrido uns cinqüenta metros, mais ou menos, quando ouvi o barulho de um corpo que se precipita na água e que, apesar da distância, no silêncio da noite, me pareceu grande. Parei na hora, mas sem me voltar. Quase imediatamente, ouvi um grito várias vezes repetido, que descia também o rio e depois se extinguiu bruscamente. O silêncio que se seguiu na noite paralisada pareceu-me interminável. Quis correr e não me mexi. Acho que tremia de frio e de emoção. Dizia a mim mesmo que era preciso agir rapidamente e sentia uma fraqueza irresistível invadir-me o corpo. Esqueci-me do que pensei então. “Tarde demais, longe demais...”, ou algo no gênero. Escutava ainda, imóvel. Depois, afastei-me sob a chuva, às pressas. Não avisei ninguém  (CAMUS, 198-, p. 55-56).
Imediatamente após a queda, o silêncio que se seguia ao barulho do corpo adquiria um infindável eco que poderia ser compreendido por analogia ao estado de deSolação[9] da natureza. Contudo, a deSolação remete sempre a um lugar de ausência plena onde o homem não encontraria nenhum elemento que lhe remetesse a uma presença. A deSolação identificada na noite da queda, ao contrário, possui uma presença transcendental que somente é percebida na subjetividade humana por analogia ao real. Transcendentalidade essa que faz remissão a algo ocorrido e que evoca, através do GRITO, uma reação. Daí se poder discorrer sobre o problema da CULPA na esfera do humano. A presença do outro se torna marca indelével que clama por justiça, ou seja, por um direito natural de ser, estar e afetar daquele modo. A indiferença abSoluta, em tese, não existe. Ela somente poderia ser nomeada como uma metáfora da ausência-presença. O homem, como ente posto, não consegue anular a percepção da presença. Ao se vir, vê-se sempre algo de outro. O problema que fora genialmente demarcado pela psicanálise do Século XIX, a partir de Freud, revela que a rejeição da presença de outrem é uma forma do indivíduo não se perder de si mesmo naquela situação eminente. A presença de outrem, como foi abordada no Capítulo sobre A Ambigüidade da Indiferença, torna-se, desse modo, ameaçador. A fuga do outro, em realidade, é para o reino do esquecimento. Mas como humanamente não se pode esquecer, mesmo porque desde os fatores físico-químicos do cérebro humano, toda e qualquer experiência vivida é devidamente registrada nos arquivos da consciência. A saída, a partir do ponto de vista psicanalítico, é a transferência para uma situação alhures ou para outrem. Mas o problema aqui abordado começa com esse paradoxo da ausência de outrem.
A chuva que se segue ao grito ecoado naquela noite interminável é a representação camusiana do apelo expiatório que deve se completar. Camus, desse modo, transfere seu personagem para a Holanda, lugar onde ele poderá ser rebatizado pelas águas dos canais da humanidade perdida. Somente assim poder-se-ia falar de uma ética do humano a ser restaurada ou de uma ética a ser aplicada em situações humanas, mesmo sem precedentes. O contrário dessa possibilidade é o retorno a barbárie onde a civilidade não assume feições éticas. Destituição, portanto, de qualquer morada em um Ethos[10] verdadeiramente humano. A ética camusiana, por conseguinte, não parte de nenhuma esfera transcendental para nortear a conduta humana. A ética camusiana tem seu ponto de partida no Ethos como nova morada do agir humano. A existência do homemsomente ela — é garantia ética da sobrevivência de si mesmo e de outrem.
A absurdidade da indiferença ocorrida na noite da queda é também acompanhada da absurdidade de um suposto suicídio. O personagem de A Queda é deparado, inclusive, com essa atitude de autoaniquilamento e que ele, naquele instante, representar-se-ia a sociedade em sua indiferença ambulante. A suicida — admitindo que a queda fora proposital — não tivera que apelar a atenção de ninguém para expressar o motivo de sua morte. Seu testemunho ficara perdido na escuridão da noite da existência humana. Todos estavam ausentes. Inclusive Clamence. Porém, paradoxalmente, ele  carrega consigo não somente as evocações do RISO e do GRITO, mas também a dor de sua indiferença que fora relegado à citadina. A redenção, portanto, ocorre quando ele consegue elaborar as razões que poderiam ter levado ao suicídio da desconhecida por meio de seu diálogo unissonante:
“Il s’est tué parce qu’il n’a pu supporter de...” Ah! cher ami, que les hommes sont pauvres en invention. Ils croient toujours qu’on se suicide pour une raison. Mais on peut très bien se suicider pour deux raisons. Non, ça ne leur entre pas dans la tête. Alors, à quoi bom mourir volontairement, se sacrifier à l’idée qu’on veut donner de soi? Vous mort, ils en profiteront pour donner à votre geste des motifs idiots, ou vulgaires. Les martyrs, cher ami, doivent choisir d’être oubliés, raillés ou utilisés. Quant à être compris, jamais (CAMUS, 1998, p. 66).

“Matou-se porque não pôde suportar que...” Ah! caro amigo, como os homens são pobres de inventiva! Julgam sempre que nos suicidamos por uma razão. Mas podemos muito bem suicidar-nos por duas razões. Não, isso não lhes entra na cabeça. Para que serve, então, morrer voluntariamente, sacrificar-se à idéia que se quer dar de si mesmo? Uma vez morto, eles se aproveitarão disso para atribuir ao gesto motivos idiotas ou vulgares. Os mártires, caro amigo, têm de escolher entre serem esquecidos, ridicularizados ou usados. Quanto a ser compreendidos — isso, nunca  (CAMUS, 198-, p. 59-60).
O ingresso do suicida no inferno do esquecimento motivado pela indiferença faz de Clamence um ator desmesurado da vida. Imediatamente ao diálogo da justificativa da morte por suposto suicídio, Camus redime-o com sua experiência pregressa da Argélia do Sol e o torna vívido de felicidade por estar e querer viver, quando afirma: [...]eu amo a vida, eis a minha verdadeira fraqueza. Amo-a tanto, que não tenho nenhuma imaginação para o que não for vida (CAMUS, 198-, p. 60).
O protagonista não quer cair no esquecimento, por isso a demonstração de uma avidez em querer viver eternamente como um ser impune de qualquer julgamento. Mas ele só será lembrado em vida, logo, deve-se viver para se ver o reconhecimento de sua presença. Sua atitude de indiferença, sub-repticiamente, não deve ser imitada por nenhum dos mortais. Diferentemente disso, sua vida adquiriria feições inimagináveis de exclusão social. Todavia, precisa entender esse “desconforto” que o persegue para poder definitivamente se livrar dele e viver em paz. A maneira que Camus encontra para redimir Clamence das “câimbras” iniciadas nos cais do Sena é remetê-las, metaforicamente, a todos os homens:
[...] ce cri qui, des années auparavant, avait retenti sur la Seine, derrière moi, n´avait pas cessé, porté par le fleuve vers les eaux de la Manche, de cheminer dans le monde, à travers l´étendue illimitée de l´Océan, et quíl m´y avait attendu jusqu´à ce jour où je l´avais rencontré. Je compris aussi qu´il continuerait de m´attendre sur les mers et les fleuves, partout enfin où se trouverait l´eau amère de mon baptême. Ici encore, dites-moi, ne sommes-nous pas sur l´eau ? Sur l´eau plate, monotone, interminable, qui confond ses limites à celles de la terre ? comment croire que nous allons arriver à Amsterdam ? Nous ne sortirons jamais de ce bénitier immense. Écoutez ! N`entendez-vous pas les cris de goélands invisibles ? S´ils crient vers nous, à quoi donc nous appellent-ils ? Mais ce sont les mêmes qui criaient, qui appelaient déjà sur l´Atlantique, le jour où je compris définitivement que je n´étais pas guéri, que j´étais toujours coincé, et qu´il fallait m´en arranger. Fini la vie glorieuse, mais fini aussi la rage et les soubressauts. Il fallait se soumettre et reconnaître sa culpabilité. Il fallait vivre dans le malconfort. C´est vrai, vous ne connaissez pas cette cellule de basse-fosse qu´au Moyen Âge on appelait le malconfort. En général, on vous y oubliait pour la vie. Cette cellule se distinguait des autres par d´ingénieuses dimensions. Elle n´était pas assez haute pour qu´on s´y tînt debout, mais pas assez large pour qu´on pût s´y coucher. Il fallait prendre le genre empêché, vivre en diagonale ; le sommeil était une chute, la veille un accroupissement. Mon cher, il y avait du génie, et je pése mes mots, dans cette trouvaille si simple. Tous les jours, par l´immuable contrainte qui ankylosait son corps, le condamné apprenait qu´il était coupable et que l´innocence consiste à s´étirer joyeusement. Pouvez-vous imaginer dans cette cellule un habitué des cimes et des ponts supérieurs ? Quoi ? On pouvait vivre dans ces cellules et être innocent ? improbable, hautement improbable ! Ou sinon mon raisonnement se casserait le nez. Que l´innocence en soit réduite à vivre bossue, je me refuse à considérer une seule seconde cette hypothèse. Du reste, nous ne pouvons affirmer l´ ínnocence de personne, tandis que nous pouvons affirmer à coup sûr la culpabilité de tous. Chaque homme témoigne du crime de tous les autres, voilà ma foi et mon espérance (CAMUS, 1998, p. 92-94).

[...] aquele grito que, anos atrás, havia ressoado atrás de mim no Sena, levado pelo rio em direção às águas da Mancha, não havia deixado de caminhar pelo mundo, através da vastidão ilimitada do oceano, e que me tinha esperado até aquele dia em que o encontrara. Compreendi, também, que ele continuaria a esperar-me nos mares e nos rios, por toda a parte, enfim, onde se encontrasse a água amarga do meu batismo. Mesmo aqui, diga-me, não estamos nós sobre a água? Sobre a água plana, monótona, interminável, que confunde os seus limites com os da terra? Como acreditar que vamos chegar a Amsterdam? Nunca mais sairemos desta imensa pia de água benta. Escute! Não ouve os gritos de gaivotas invisíveis? Se gritam na nossa direção, pra que então nos chamam? Mas são as mesmas que gritavam, que chamavam desde o Atlântico, no dia em que compreendi definitivamente que não estava curado, que continuava encurralado e que era preciso me acomodar. Acabara-se a vida gloriosa, mas também a raiva e os sobressaltos. Era preciso submeter-se e reconhecer a culpa. Era preciso viver no desconforto. É verdade, o senhor não conhece aquela cela de masmorra, a que na Idade Média chamavam de “desconforto”. Em geral, esqueciam-nos para o resto da vida. Esta cela distinguia-se das outras por suas engenhosas dimensões. Não era suficientemente alta para se poder ficar de , nem suficientemente larga para se poder deitar. Tinha-se de assumir uma posição encolhida, viver em diagonal; o sono era uma queda; a vigília acocorada. Meu caro, era engenhoso, e eu peso as minhas palavras, neste achado tão simples. Todos os dias, através do imutável constrangimento que anquilosava o seu corpo, o condenado aprendia que era culpado e que a inocência consiste em poder esticar-se livremente. Pode-se imaginar nesta cela um freqüentador das alturas e das cobertas de navios? O quê? Podia-se viver nesta cela e ser inocente? É impossível, altamente improvável! Ou então, a minha lógica cairia por terra. Que a inocência se veja restrita a viver corcunda, recuso-me a considerar por um único segundo esta hipótese. Além disso, não podemos afirmar a inocência de ninguém, ao passo que podemos afirmar com segurança a culpabilidade de todos. Cada homem é testemunha do crime de todos os outros, eis minha e minha esperança (CAMUS, 198-, p. 85-86).
Ao se remeter às câimbras[11], isto é, a culpa a todos os homens, Clamence identifica a culpabilidade histórica da humanidade e ao mesmo tempo à inocência perdida. O desconforto impetrado aos “culpados” pelos algozes na Idade Média ainda permanece inalterável. Modificaram-se apenas as formas de se fazer admitir a culpa. A cela em que se joga um culpado nos dias de hoje não está mais restrita a uma masmorra ou a um porão imundo cheio de ratos. A força do carrasco aumentou ao longo da experiência histórica contra o antimoralismo social. Com a modernidade tardia os mecanismos de repressão a todo tipo de revolta e de indignação se tornaram eficientes a ponto de seu controle se fazer em qualquer lugar. O “grande irmão”  [12] possui recursos abSolutos de vigilância e de coesão. Antes, limitado ao obscurantismo medieval, agora, ilimitado aos meios midiáticos e informáticos de proliferação da ideologia de sanção. A onipotência medieval se atualizou pela onipresença dos meios de comunicação. O modelo de vida social não é mais determinado pelogrande irmão”, mas pelo modelo de vida de seus cidadãos.[13] A ideologia não precisa mais dos campos de concentração nem das estepes siberianas. A alienação, enquanto peste social ocorre em toda parte e faz de suas vítimas moribundas ambulantes e “distanciadas” de toda inoculação de vacina. Camus, em A Peste, ao metaforizar a ocupação nazista em Paris na segunda grande Guerra Mundial, alude para os efeitos que uma ocupação ideológica pode causar nos cidadãos.
On peut dire que cette invasion brutale de la maladie eut pour premier effet d’obliger nos concitoyens à agir comme s’ils n’avaient pas de sentiments individuels (CAMUS, 1999, p. 80). En particulier, tous nos concitoyens [...] l’effondrement de leur courage, de leur volonté et de leur patience était si brusque qu’il leur semblait qu’ils ne pourraient plus jamais remonter de ce trou. Ils s’astreignaient par conséquent à ne penser jamais au terme de leur délivrance, à ne plus se tourner vers l’avenir et à toujours garder, pour ainsi dire, les yeux baissés. Mais, naturellement, cette prudence, cette façon de ruser avec la douleur, de fermer leur garde pour refuser le combat étaient mal récompensées. En même temps qu’ils évitaient cet effondrement dont ils ne voulaient à aucun prix, ils se privaient en effet de ces moments, en somme assez fréquents, où ils pouvaient oublier la peste dans les images de leur réunion à venir. Et par là, échoués à mi-distance de ces abîmes et de ces sommets, ils flottaient plutôt qu’ils ne vivaient, abandonnés à des jours sans direction et à des souvenirs stériles, ombres errantes qui n’auraient pu prendre force qu’en acceptant de s’enraciner dans la terre de leur douleur (CAMUS, 1999, p. 85).

Pode-se dizer que esta invasão brutal da doença teve como primeiro efeito obrigar os nossos concidadãos a agir como se não tivessem sentimentos individuais (CAMUS, 197-, p. 82). Em particular, todos os nossos cidadãos [...] nesse momento, o ruir da sua coragem, da sua vontade e da sua paciência era tão brusco que lhes parecia que não poderiam jamais sair desse precipício. Então sujeitaram-se a não pensar mais no termo da sua clausura, a não voltar mais o olhar para o futuro e a conservar sempre, por assim dizer, os olhos baixos. Mas, naturalmente, esta prudência, esta maneira de enganar a dor, de bater em retirada para recusar o combate, eram mal recompensadas. Ao mesmo tempo que evitavam este abatimento que não queriam por nenhum preço, privavam-se, com efeito, desses momentos bastante freqüentes em que podiam esquecer a peste nas imagens da sua futura reunião. E, assim, encalhados a meia distância entre estes abismos e estes cumes, mais flutuavam que viviam, abandonados a dias sem sentido e a recordações estéreis, sombras errantes que poderiam ter ganho força aceitando criar raízes na terra da sua dor  (CAMUS, 197-, p. 86-87).
A transferência de culpa efetuada por Clamence, como se viu anteriormente, enfatiza a culpabilidade universal e a negação de toda inocência. Com efeito, o fato de condenar a todos traz consigo a atitude de revolta perante uma sociedade que busca encontrar sempre justificativas para todos os seus crimes. Apesar da indicação de condenação conter em seu bojo uma dose de transferência, não invalida, simultaneamente, o discernimento da culpa de outrem. É preciso, não somente, assumir o mea culpa, mas, sobretudo, revoltar-se com as “quedas” estendidas nas calçadas do cotidiano:
Le grand empêchement à y échapper n´est-il pas que nous sommes les premiers à nous condamner ? Il faut donc commencer par étendre la condamnation à tous, sans discrimination, afin de la délayer déjà. Pas d´excuses, jamais, pour personne, voilà mon principe, au départ. Je nie la bonne intention, l´erreur estimable, le faux pas, la circosntance atténuante. Chez moi, on ne bénit pas, on ne distribue pas d´abSolution. On fait l´addition, simplement, et puis : « Ça fait tant. Vous êtes un pervers, un satyre, un mythomane, un pédéraste, un artiste, etc. » Comme ça. Aussi sec. En philosophie comme en politique, je suis donc pour toute théorie qui refuse l´innocence à l´homme et pour toute pratique qui le traite en coupable (CAMUS, 1998, p. 111).

O grande impecilho a evitar não será o de sermos nós os primeiros a nos condenar? É preciso, pois, começar a estender a condenação a todos, sem discriminação, para diluí-la desde . Nada de desculpas, nunca, para ninguém, eis meu princípio, de saída. Nego a boa intenção, o erro compreensível, o passo em falso, a circunstância atenuante. Comigo não se abençoa, não se distribui abSolvição. Faz-se a conta, simplesmente, e depois: “Dá tanto. O senhor é um pervertido, um sátiro, um mitômano, um pederasta, um artista, etc.” Assim mesmo. Secamente. Em filosofia como em política, eu sou portanto a favor de qualquer teoria que recuse a inocência ao homem, e a favor de toda prática que o trate como culpado  (CAMUS, 198-, p. 102).
Contudo, muito embora Camus, ao denunciar a responsabilidade de todos os homens, não descarta a participação intransferível do indivíduo na luta do cotidiano frente a outrem. A vida de Clamence, enquanto citadino moderno é uma representação do desejo de eterno retorno à inocência que se transviou ao longo da existência, depois da Queda.[14] Empreender o caminho de retorno, portanto, requerer-se-á um arrependimento consuetudinário[15] que permite se viver em igualdade de condições na esfera do humano. Em vista disso, Camus ressalta a confissão de Clamence:
L´essentiel est de pouvoir tout se  permettre, quitte à professer de temps en temps, à grands cris, sa propre indignité. Je me permets tout, à nouveau, et sans rire, cette fois. Je n´ai pas changé de vie, je continue de m´aimer et de me servir des autres. Seulement, la confession de mes fautes me permet de recommencer plus légèrement et de jouir deux fois, de ma nature d´abord, et ensuite d´un charmant repentir (CAMUS, 1998, p. 119).

O essencial é poder permitir-se tudo, mesmo se for preciso proclamar, de vez em quando, em altos brados, a própria indignidade. Permito-me tudo, de novo, e sem rir, desta vez. Não mudei de vida, continuo a amar-me e a me servir dos outros. que a confissão das minhas culpas permite-me recomeçar de uma maneira mais leve, e gozar duplamente, primeiro a minha natureza e, em seguida, um encantador arrependimento (CAMUS, 198-, p. 110).
Por mais que possa parecer ao leitor que o protagonista, enfim, encaminhou-se para o âmbito do arrependimento, Camus, mais uma vez, subscreve-lhe o lado libertino e descomprometido de um tipo de homem imune das profecias escatológicas. O arrependimento de Clamence possui um caráter de humildade que, inversamente proporcional ao perdão, recoloca-o numa categoria divina porque destituído de toda obrigação com seu semelhante. A necessidade em arrepender-se é para atingir os píncaros de uma autonomia no cotidiano sem nenhuma conotação transcendental. É, igualmente, trazer para junto do humano ordinário os seresvirtuososque julgam, sem poderem ser julgados; que profetizam, sem viverem o messianismo; que maculam os outros sem culpa alguma. “[...] é preciso um novo papa que vivesse entre os infelizes, em vez de rezar sentado sobre um trono e, quanto mais depressa, melhor (CAMUS, 198-, p. 97).
A presença do riso ou do grito torna Clamence um ser que duvida de sua própria perseguição porque vive nas alturas de sua soberba e de sua arrogância. Devido sua categoria social, a existência adquire um tipo de isenção e de indiferença perante a culpa incomparavelmente individualista. O novo homem do Apocalipse, em verdade, é o homem novo do Éden urbano. Tudo é permitido:
Quelle ivresse de se sentir Dieu le père et de distribuer des certificats définitifs de mauvaise vie et moeurs. Je trône parmi mes vilains anges, à la cime du ciel hollandais, je regarde monter vers moi, sortant des brumes et de l´eau, la multitude du Jugement dernier. Ils s´élèvent lentement, je vois arriver déjà le premierentre eux. Sur sa face égarée, à moitié cachée par une main, je lis la tristesse de la condition commune, et le désespoir de ne pouvoir y échapper. Et moi, je plains sans absoudre, je comprendre sans pardonner et surtout, ah, je sens enfin que l´on m´adore ! (CAMUS, 1998, p. 120).

Que embriaguez sentirmo-nos Deus-pai e distribuir atestados definitivos de má conduta e maus costumes. Eu pontifico entre os meus anjos vis, no alto do céu holandês, vejo subir até mim, saindo das brumas e da água, a multidão do Juízo Final. Elevam-se lentamente, vejo chegar o primeiro de todos. Sobre o seu rosto desvairado, meio oculto por uma das mãos, leio a tristeza da condição comum, e o desespero de não poder escapar dela. E eu, lamento sem abSolver, compreendo sem perdoar e, sobretudo, ah, sinto enfim, que me adoram (CAMUS, 198-, p. 111)!
A redenção, como se imediatamente anterior, dá-se no bondoso e no cruel cotidiano da existência. Paradoxo da abSolvição, o dia-a-dia mostrado por Camus não perdoa os sobreviventes da condição comum. A repetição, enviesada pelo desespero da falta de se poder desvencilhar-se, cria obstáculos para qualquer um.  Contrariamente, o protagonista flana em seu dia-a-dia mesmo percebendo a presença de uma ausência desconcertante que outrora havia subvertido a harmonia da noite.
Ces nuits-là, ces matins plutôt, car la chute se produit à l´aube, je sors, je vais, d´une marche emportée, le long des canaux. Dans le ciel livide, les couches de plumes s´amincissent, les colombes remontent un peu, une lueur rosée annonce, au ras des toits, un nouveau jour de ma création (CAMUS, 1998, p. 120).

Nessas noites, ou melhor, nessas manhãs, pois a queda produz-se ao romper da aurora, eu saio, parto, numa marcha impetuosa, ao longo dos canais. No céu lívido, as camadas de penas adelgaçam-se, as pombas sobem um pouco, uma claridade rósea anuncia, ao nível dos telhados, um novo dia da minha criação (CAMUS, 198-, p. 111).
O « flâneur » do cotidiano, após a aurora da queda, passeia nos cais da existência retirando toda e qualquer absurdidade. O grito sem culpa perpassa sua alma como uma espada que não dilacera mais sua interioridade nem insidia uma dicotomia de sua personalidade. A aurora da libertação está instalada em seus pensamentos e em suas atitudes. É preciso planar por sobre tudo que está posto:
[...] planant par la pensée au-dessus de tout ce continent qui m´est soumis sans le savoir, buvant le jour d´absinthe qui se lève, ivre enfin de mauvaises paroles, je suis heureux, je suis heureux, vous dis-je, je vous interdis de ne pas croire que je suis heureux, je suis heureux à mourir ! oh ! Soleil, plages, et les îles sous les alizés, jeunesse dont le souvenir désespère ! (CAMUS, 1998, p. 120-121).

[...] planando em pensamento por cima de todo este continente que me é subordinado sem saber, bebendo a luz de absinto que se eleva, ébrio, enfim, de palavras más, sou feliz, sou feliz, estou lhe dizendo, proíbo-o de não acreditar que sou feliz, que morro de felicidade! Ah, Sol, praias, e as ilhas sob os alísios, juventude cuja lembrança desespera (CAMUS, 198-, p. 111-112)!
A experiência vivida sob os auspícios do Sol vem à tona no discurso irreverente de Clamence. Experiência que não se demonstra em nenhum momento da obra literária, mas é subentendida como algo vivido por outrem e que se guarda na memória do protagonista como sinal do paraíso perdido. O “flâneur” do cotidiano moderno almeja a todo custo viver como um transeunte inocente, imune de todo tipo de contaminação de outrem, asséptico de qualquer epidemia alienante sem saber que carrega o vírus da alienação irreversível. Seu estado de saúde é terminal. Sua única chance de sobrevida após a entrada no coma da indiferença abSoluta é a esperança de que o outro se torne presente de novo. Assim sendo, Camus anteviu no final de A Queda, a única e irremovível saída humana do rio da indiferença:
Alors, racontez-moi, je vous prie, ce qui vous est arrivé un soir sur les quais de la Seine et comment vous avez réussit à ne jamais risquer votre vie. Prononcez vous-même les mots qui, depuis des années, n’ont cessé de retentir dans mes nuits, et que je dirai enfin par votre bouche: “Ô jeune fille, jette-toi encore dans l’eau pour que j’aie une seconde fois la chance de nous sauver tous les deux!” Une seconde fois, hein, quelle imprudence! Supposez, cher maître, qu’on nous prenne au mot? Il faudrait s’exécuter. Brr...! l’eau est si froide! Mais rassurons-nous! Il est trop tard, maintenant, il sera toujours trop tard. Heureusement! (CAMUS, 1998, p. 123).

Conte-me, então, eu lhe peço, o que lhe aconteceu uma noite nos cais do Sena e como conseguiu nunca mais arriscar a vida. Pronuncie o senhor mesmo as palavras que, há anos, não pararam de ressoar nas minhas noites e que eu direi, enfim, pela sua boca: “Ó jovem, atire-se de novo na água, para que eu tenha, pela segunda vez, a oportunidade de nos salvar a ambos!” Pela segunda vez, hem, que imprudência! Imagine, caro colega, que nos levem ao da letra? Seria preciso cumprir. Brr...! A água está tão fria! Mas tranqüilizemo-nos ! É tarde demais, agora, será sempre tarde demais. Felizmente ! (CAMUS, 198-, p. 114).
Desse modo, Camus não quer apenas propor a salvação dos corpos contaminados pela peste, como se em A Peste, mas, sobretudosalvar as consciênciasmuito mais doentes ainda, pois elas decidiram, em nome de idéias abSolutas e inumanas, como descreve André Nicolas: “considerar a vida como qualquer coisa de negligente, invertendo assim o sentido da revolta que insurge os homens contra Deus, em favor dos homens, mas não os homens contra eles mesmos” (NICOLAS, 1966, p. 178).
Mesmo o tênue traço de arrependimento encontrado nos últimos diálogos de Clamence, não é convincente nem reparadores de uma possível tomada de consciência em que o outro tem assento. A água sempre está tão fria para que se mergulhe no rio da existência em que o outro é apenas uma presença que causa desconforto. A própria consciência que vislumbra a reparação da culpa encontra justificativa para amainá-la no se dar conta que “é tarde demais! Felizmente,” é tarde demais porque a água continua fria, aliás, como todos os dias.
Com A Queda a humanidade entra no “confessionário de sua consciência e Camus espera que ela saia regenerada”, consciente de seus limites e de suas responsabilidades, mas, sobretudo disponível a tudo que é humano. A Solidariedade, por conseguinte, poderia vir à tona mesmo que tivesse caído no “rio da indiferença”. Vale lembrar, mais uma vez, a descrição poética que Camus engendra em O Verão, quando remete a Prometeu a tarefa de que todos os homens possam vislumbrar mais uma vez as primaveras do mundo:
Au coeur le plus sombre de l´histoire, les hommes de Prométhée, sans cesser leur dur métier, garderont un regard sur la terre, et sur l´herbe inlassable. Le héros enchaîné maintient dans la foudre et le tonnerre divins sa foi tranquille en l’homme. C’est ainsi qu’il est plus dur que son rocher et plus patient que son vautour. Mieux que la révolte contre les dieux, c’est cette longue obstination qui a du sens pour nous. Et cette admirable volonté de ne rien séparer ni exclure qui a toujours réconcilié et réconciliera encore le coeur douloureux des hommes et les prin-temps du monde (CAMUS, 1998, p. 124).

No coração mais sombrio da história, os homens de Prometeu, sem interromper seu penoso ofício, conservarão um olhar sobre a terra e sobre a relva incansável. O herói acorrentado, mesmo sob o raio e o trovão divinos, mantém inabalável sua no homem. Assim, ele é mais duro que sua rocha, mais paciente que seu abutre. Melhor do que a revolta contra os deuses, é essa longa obstinação que faz sentido para nós; e essa admirável vontade de não separar nem excluir nada que sempre reconciliou e reconciliará o coração dolorido dos homens e as primaveras do mundo (CAMUS, 1979, p. 96).





[1] Iniciado em 1959, um ano antes de sua trágica morte. (N. do A.).
[2] A Queda – cf. Livro do Gênesis: “A serpente era o mais astuto de todos os animais dos campos, que Iahweh Deus tinha feito. Ela disse à mulher: “Então Deus disse: Vós não podeis comer de todas as árvores do jardim?” A mulher respondeu à serpente: “Nós podemos comer do fruto das árvores do jardim. Mas do fruto da árvore que está no meio do jardim, Deus disse: Dele não comereis, nele não tocareis, sob pena de morte.” A serpente disse então à mulher: “Não, não morrereis! Mas Deus sabe que, no dia em que dele comerdes, vossos olhos se abrirão e vós sereis como deuses, versados no bem e no mal.” A mulher viu que a árvore era boa ao apetite e formosa à vista, e que essa árvore era desejável para adquirir discernimento. Tomou-lhe do fruto e comeu. Então abriram-se os olhos dos dois e perceberam que estavam nus; entrelaçaram folhas de figueira e se cingiram. Eles ouviram o passo de Iahweh Deus que passeava no jardim à brisa do dia e o homem e sua mulher se esconderam da presença de Iahweh Deus, entre as árvores do jardim. Iahweh Deus chamou o homem: “Onde estás?”, disse ele. “Ouvi teu passo no jardim,” respondeu o homem; “tive medo porque estou nu, e me escondi.” Ele retomou: “E quem te fez saber que estavas nu? Comeste, então, da árvore que te proibi de comer!” O homem respondeu: “A mulher que puseste junto de mim me deu da árvore, e eu comi!” Iahweh Deus disse à mulher: “Que fizeste?” E a mulher respondeu: “A serpente me seduziu e eu comi.” Então Iahweh Deus disse à serpente: “Porque fizeste isso és maldita entre todos os animais domésticos e todas as feras selvagens. Caminharás sobre teu ventre e comerás poeira todos os dias de tua vida. Porei hostilidade entre ti e a mulher, entre tua linhagem e a linhagem dela. Ela te esmagará a cabeça e tu te ferirás o calcanhar.” À mulher ele disse: “Multiplicarei as dores de tuas gravidezes, na dor darás à luz filhos. Teu desejo te impelirá ao teu marido e ele te dominará.” Ao homem, ele disse: “Porque escutaste a voz de tua mulher e comeste da árvore que eu te proibira comer, maldito é o Solo por causa de ti! Com sofrimentos dele te nutrirás todos os dias de tua vida. Ele produzirá para ti espinhos e cardos, e comerás a erva dos campos. Com o suor de teu rosto comerás teu pão até que retornes ao Solo, pois dele foste retirado. Pois tu és e ao tornarás.” (BÍBLIA DE JERUSALÉM, 1985, p 34).
[3] É provável que Camus tenha criado o nome do protagonista em alusão a João Batista, figura bíblica do Novo Testamento que praticava batismos no rio Jordão e pregava a vinda do messias que haveria de batizá-lo. No entanto, o fato de João Batista ser aquele que batizava com água, remete, mesmo que, a “grosso modo”, a Jean-Baptista Clamence que precisa ser purificado com água, como uma catarse do seu espírito em estado de culpa, como verificar-se-á em sua estada nos países baixos.  (N. do A.).
[4] A Torre de Babel — todo o mundo se servia de uma mesma língua e das mesmas palavras. Como os homens emigrassem para o oriente, encontraram um vale na terra de Senaar e aí se estabeleceram. Disseram um ao outro: “Vinde! Façamos tijolos e cozamo-los ao fogo!”. O tijolo lhes serviu de pedra e o betume de argamassa. Disseram: “Vinde! Construamos uma cidade e uma torre cujo ápice penetre nos céus! Façamo-nos um nome e não sejamos dispersos sobre toda a terra!” Ora, Iahweh desceu para ver a cidade e a torre que os homens tinham construído. E Iahweh disse: “Eis que todos constituem um só povo e falam uma só língua. Isso é o começo de suas iniciativas! Agora, nenhum desígnio será irrealizável para eles. Vinde! Desçamos! Confundamos a sua linguagem para que não mais se entendam uns aos outros”. Iahweh os dispersou dali por toda a face da terra, e eles cessaram de construir a cidade (BÌBLIA DE JERUSALÉM, 1985, p. 45).
[5] Juiz-Penitente — enquanto termo jurídico, não se aplica mais. Atualmente, a função de juiz abarca qualquer função que lhe seja peculiar. (N. do A.).
[6] O círculos dos... Camus faz alusão aos Círculos dos Infernos de Dante descritos na Divina Comédia no Canto XXXII : “os poetas chegam à planície do nono e último Círculo, formada pelas águas geladas do Cocito (rio de passagem entre o Hades e o Mundo dos Vivos, lugar dos gemidos e das lamentações – N. do A.). quedavam-se ali os traidores em quatro giros concêntricos: a Caína, para os que atraiçoaram o próprio sangue; a Antenora, para os que atraiçoaram a pátria; a Toloméia, para os que atraiçoaram os amigos; e, finalmente, a Judeca, para os que atraiçoaram seus chefes e benfeitores”. (ALIGUIERI, 1979, p. 379).
[7] Si le destin m’avait obligé de choisir un métier manuel, tourneur ou couvreur, soyez tranquille, j’eusse choisi les toits et fait amitié avec les vertiges (CAMUS, 1998, p. 25).
[8] Esses deusesremissão feita ao Deus Ex Machina, uma espécie de fatalidade cega, como a Moîra, pesa sobre os personagens da Mitologia Grega como uma verdadeira maldição.
[9] DeSolação — a remissão dessa situação para um tipo de entendimento analógico poder-se-ia encontrar na natureza em sítios geográficos encontrados em alguns desertos do planeta, tais como: Atacama no Chile, Planícies da Sibéria, Deserto de Kalahari dentre outros. A deSolação é uma mostra de ausência de ninguém e de nenhuma coisa, de tal modo, que a sua sensação em algumas pessoas pode desencadear a agorafobia e, em outras, o desespero da Solidão cósmica. Na deSolação tudo de outrem é marcado pela ausência como se a composição natural daquele lugar estivesse paralisada. (N. do A.).
[10] Ethos — verdadeiramente humano: convém abalizar que as relações humanas começam a se configurar a partir do Ethos e não mais dentro de um contexto restrito como o da Oikia (morada originária do homem primitivo sob a égide do déspota). O homem ético advirá do seu Ethos. O Ethos como cultura humana da produção, do agir, do fazer, do pensar do querer. Tudo isso será determinante para a instauração da Ética. Ela, portanto, começará a aparecer quando o homem estiver inserido dentro de um outro contexto mais político, antes despótico; assim ele estará no caminho do Ethos. Esse caminho começa a se definir quando o homem aprende a dar os primeiros passos fora da Oikia. As relações humanas culturais começam a definir uma nova moral. Antes, na Oikia, essa moral era individualista, agora, fora, no mundo, ela é coletiva. O homem, por sua vez, diante de costumes e hábitos diferentes dos vividos nos limítrofes da “toca” percebe que eles só têm sentido fora. Ele começa então a perceber que a espontaneidade da Physis não tem mais lugar nem força como antes. O que vai definir de agora em diante o agir humano é a vivência desde seu Ethos. Diferentemente do estar vivendo sob a Physis, no reino da espontaneidade, agora é o viver sob os moldes da liberdade. O homem aprende a ser livre somente no Ethos. Aqui ele reconhece a marca da diferença entre ser espontâneo e ser livre. (N. do A.).
[11] Câimbras — termo metafórico que se refere à culpa de Clamence; encontra-se, igualmente, como  “desconforto” no sentido de perseguição de culpa, remorso. (N. do A.).
[12] Grande Irmãoalusão à obra 1984 de George Orwell. (N. do A.).
[13] O “Big Brother” da mídia capitalista, por exemplo, re-instaura a vigilância às avessas. Ao invés de ver e escutar as escondidas o dia-a-dia privado de seus escravos, torna-o público para poder disseminar sua ideologia através de seus estilos de vida, configurados e contaminados. (N. do A.).
[14] A alegorização sempre presente da gênese do homem sob os moldes bíblicos faz de Camus um autor de uma ambigüidade quase inigualável na literatura que se nomeia agnóstica. (N. do A.).
[15] Consuetudinárioque se pratica repetidamente, como um costume; usual, costumeiro, habitual; que diz respeito aos costumes de um povo. (N. do A.).

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