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sábado, 24 de agosto de 2013

A Ambigüidade da Indiferença


Lourenço Leite

 A problemática da ambigüidade da indiferença no pensamento camusiano contribui para que se evidencie quão necessária é a manifestação do outro no mundo das relações a fim de que se diminua a absurdidade de seu aniquilamento pelo narcisismo contemporâneo. Anteriormente, verificou-se uma tentativa de recriação de outrem quando o si mesmo está vazio (de cheiro, de cor, de sabor) e sem sentido no mundo. Aqui, doravante, empreender-se-á uma “epifania” de outrem, paradoxalmente oculto na indiferença perante situações extremas. Somente assim, poder-se-ia expressar quão dilacerante e fugidia é a dor da indiferença quando a espera do outro se torna porta voz de sua presença num enlace de paroxismos sem precedentes.
              É tão-somente diante do desejo de outrem que se pode compreender o absurdo da sua rejeição. Esse modo de ver a vida do homem supõe, implicitamente, que ninguém pode prescindir de outrem para ser. Estar no mundo, caído na existência, implica sentir, não somente, a dor da Solidão de si, mas, igualmente, a dor da Solidão de outrem. A tarefa que se segue é a de pretender evidenciar o alastramento da indiferença em nossa contemporaneidade e as conseqüências que esse absurdo enleia no espírito humano, instalando dificuldades na projeção da ética. Com base nisto, utilizar-se-á o pensamento de Camus sobre a “indiferençaem A Queda, cotizando-a com alguns autores, tais como Tzvetan Todorov[1] que indicam os limites da ausência de outrem e de Emmanuel Lévinas que re-valoriza a epifania[2] do outro a partir do encontro face a face.
 Tratar do problema da indiferença tem como objetivo o esclarecimento da negação de outrem em contraposição a afirmação de si. Evidentemente, haja vista a sociedade individualista dos tempos atuais, ela, por si , não aponta para o entendimento desse absurdo no homem. O problema se impõe, não por justaposição histórica, mas por uma revelação da condição humana que encontrou meio propício para realizar tais absurdidades. Dados as circunstâncias, tem-se a atitude de indiferença instalada. Senão, ter-se-ia que apenas entender o problema como um fenômeno exclusivo da contemporaneidade, sem precedentes na história. Seguir suas pegadas é, desde , supor uma premissa de condições que se instauram, à medida que o individualismo toma corpo como algo que se pretende soberano. Mas, como o homem não pode ser considerado como um ser abSoluto de si mesmo, ele é o que aprende a ser com os seus semelhantes na diferença de sua própria existência. Isto é, o si e outro são diferentes no modo de ser e no ser em si. Sua relatividade, ou melhor, dizendo, sua contingência, portanto, faz parte de sua natureza, assim como a sua plenitude. Contingência e Necessidade, mesmo sendo antagônicos, formam a paradoxalidade da existência humana.
Com efeito, a indiferença de um ser humano perante outro poderá ser mais bem compreendida se se admitir que esse outro coloque em risco a supremacia do si, tanto almejada, assim como, tão assegurada em se manter. Mas, por mais que se pense que o “outro”, mais próximo venha sucumbir à alteridade do “si mesmo”, isto é, a dimensão de si próprio como diferença, há um constante paradoxo nessa relação. Ambos digladiam-se constantemente, mesmo que, essa relação seja amorosa.
Ao se pinçar essa problemática entre amado/amante, vale perceber o que Lévinas, em seu ensaio sobre a exterioridade, intitulada Totalidade e Infinito, assegura:
Não terá o amor outro termo que não seja uma pessoa? A pessoa goza aqui de um privilégio — a intenção amorosa vai para Outrem, para o amigo, o filho, o irmão, a amada, os pais. Mas uma coisa, uma abstração, um livro, podem igualmente ser objetos de amor. É que, por um aspecto essencial, o amor que, transcendência, vai para Outrem, arremessa-nos para aquém da própria imanência: designa um movimento pelo qual o ser procura aquilo a que se ligou, antes mesmo de ter tomado a iniciativa da procura e, apesar da exterioridade, onde o encontra. A aventura por excelência é também uma predestinação, escolha do que não tinha escolhido. O amor como relação com Outrem pode reduzir-se a essa imanência fundamental, despojar-se de toda a transcendência, procurar apenas um ser conatural, uma alma irmã, apresentar-se como incesto. O mito de Aristófanes no Banquete de Platão, em que o amor reúne as duas metades de um ser único, interpreta a aventura como um regresso a si. A fruição justifica esta interpretação. Faz ressaltar a ambigüidade de um acontecimento que se situa no limite da imanência e da transcendência (LÉVINAS, 1988, p. 233).
Destarte, o problema da indiferença que se coloca acima não é apenas o de uma época que aprendeu a sobreviver consigo própria, construindo, à medida que aprende a viver em sociedade, não somente muros intransponíveis para impedir o acesso de outrem, mas, sobretudo um novo Éden onde nãolugar para a diferença. Ao se seguir o raciocínio de Lévinas, em Totalidade e Infinito pode-se notar como estas características funda-se em algo que a razão não consegue dar conta:
O desejo — movimento incessantemente relançado, movimento sem tempo para um futuro, nunca suficientemente futuro — quebra-se e satisfaz-se como a mais egoísta e a mais cruel das necessidades. Como se a demasiada grande audácia da transcendência amorosa se pagasse com uma recusa aquém da necessidade. Mas este mesmo aquém, pelas profundidades do inconfessável aonde conduz, pela oculta influência que exerce sobre todos os poderes do ser, testemunha uma excepcional audácia. O amor continua a ser uma relação com outrem, que se transforma em necessidade; e tal necessidade pressupõe ainda a exterioridade total, transcendente do outro, do amado. Eis porque através do rosto se escoa a obscura luz que vem de além do rosto, daquilo que ainda não é, de um futuro nunca suficientemente futuro, mais longínquo do que o possível. [...] A possibilidade para Outrem de aparecer como objeto de uma necessidade conservando ao mesmo tempo a sua alteridade, ou ainda, a possibilidade de fruir de Outrem, de se colocar ao mesmo tempo aquém e além do discurso, essa posição em relação ao interlocutor que ao mesmo tempo o atinge e o ultrapassa, a simultaneidade da necessidade e do desejo, da concupiscência e da transcendência, tangência do confessável e do inconfessável, constitui a originalidade do erótico que, nesse sentido, é o equívoco por excelência (LÉVINAS, 1988, p. 233-234).
A presença do outro descrito por Lévinas se inicia por um desejo que se quebra e se satisfaz como a mais egoísta e cruel das necessidades. Todavia, essa audácia da transcendência amorosa permite o reconhecimento do outro a partir de seu próprio rosto. Nesse aparecimento do encontro face a face o “outro” conserva sua alteridade e tem a possibilidade de se colocar além do discurso onde a necessidade e o desejo se ultrapassam. Contudo, há uma ambigüidade da indiferença e da responsabilidade perante outrem, muitas vezes presente nas relações entreamado/amante’, que pretende negar sua própria necessidade de ser, como se o seu interlocutor viesse aniquilar sua alteridade. Falta-lhe, portanto, o verdadeiro sentimento de amar que une tudo, principalmente as diferenças. Todavia, terá que ser cego, senão a alteridade permanece ameaçada.
Lévinas, em sua obra Totalidade e Infinito, no capítulo a Fenomenologia de Eros, traça essa trajetória que reúne os amantes, a partir da ternura e da vulnerabilidade que ocorre quando se quer estar próximo de outrem, sem, contudo, afirmar a humilhação ou a servidão:
A maneira da ternura consiste numa fragilidade extrema, numa total vulnerabilidade. [...] No entanto, essa extrema fragilidade tem também a ver com o limite de uma existência <sem maneiras>, <sem rodeiros>, de uma espessura <não-significante> e crua, de uma ultramaterialidade exorbitante. Estes superlativos, melhor que metáforas, traduzem um paroxismo de materialidade. A ultramaterialidade não indica uma simples ausência de humano num amontoado de rochedos e de areias de uma paisagem lunar; nem a materialidade que se excede, pasmada sob as suas formas dilaceradas, nas ruínas e nas feridas; ela indica a nudez exibicionista de uma presença exorbitante — que vem como que de mais longe do que a franqueza do rosto profanadora e inteiramente profanada, como se tivesse forçado o interdito de um segredo. O essencialmente escondido lança-se para a luz, sem se tornar significação. Não o nada, mas o que ainda não é. Sem que a irrealidade, no limiar do real, se ofereça como um possível a captar, sem que a clandestinidade descreva um acidente gnosiológico que acontece a um ser. Não-ser-ainda não é um isto ou um aquilo; a clandestinidade esgota a essência dessa não essência. Clandestinidade que, no impudor da sua produção, confessa uma vida noturna, que não equivale a uma vida diurna apenas privada de claridade, nem à simples interioridade de uma vida Solitária e íntima, mas que procuraria uma expressão para superar o seu recalcamento. Ela refere-se ao pudor que profanou sem o superar. O segredo aparece sem aparecer, não porque apareceria a meias, ou com reservas, ou na confusão. A simultaneidade do clandestino e do descoberto define precisamente a profanação. Aparece no equívoco. Mas é a profanação que permite o equívocoessencialmente erótico — e não inversamente. O pudor, insuperável no amor, constitui o seu patético (LEVINAS, 1988, p. 235).
Em vista disso, a indiferença, aqui tratada, aproximar-se-á dos extremos em que se pode viver e como ela causa um modo de absurdidade diante da existência humana, por se tornar inumana. Inumanidade essa que é destituída de todo tipo de Solidariedade. O “Não-ser-ainda”, ao ser identificado e tocado por mãos inescrupulosas, tende a ser profanado. Logo, sua presença/ausência é o sinal da alteridade. Mesmo porque, como Camus pronunciou-se sobre o homem, em A Peste:nos homens mais coisas a se admirar do que a se desprezar[3] (197-, p. 334).
O reconhecimento dessa admiração é o que aperfeiçoa o homem. O desprezo já é a negação dessa humanidade que se firma ao ver no outro o seu espelho. Este apanágio não se aplica aos animais nem às divindades. Ora, admitir-se que o desprezo anula a imposição de um tipo de ser, estar-se-ia admitindo que o ser do homem não ponha nada e nem se impõe ao outro. Prova disso, ao se ressaltar uma das especulações filosóficas de Simone de Beauvoir, em sua obra A Moral da Ambigüidade, encontra-se uma ontologia do homem: “O homem, diz-nos Sartre, é “um ser que se faz carência de ser a fim de que haja ser(197-., p. 7).
A atitude da indiferença humana não é desse modo, isenta de posição. Ela requer sempre algo de outro, de diferente do que se lhe impõe em cada situação perante o mais próximo, o outro, portanto. Mesmo que essa atitude seja mostrada pela mentira, ela é um desvelamento e um aceno de reconhecimento do que se é em verdade. Ou seja, do que se esconde atrás de um fato ou de um pronunciamento que pressupõe uma verdade. A ambigüidade do indiferente é sempre acompanhada de uma alegorização de outra realidade. O ser humano indiferente acredita que convence ao outro próximo e este, à medida que pode interpretar esta “mentira”, pode perceber o ser do outro velado, porém, que deixa à vista um viés de sua cortina. Camus, em A Queda, numa de suas divagações a cerca da mentira, enaltece-a e a torna uma certeza de verdade a ser compreendida, quando afirma: “Pode-se, às vezes, vir mais claro em quem mente do que em quem fala a verdade. A verdade, como a luz, cega. A mentira, ao contrário, é um belo crepúsculo, que valoriza cada objeto[4] (p. 94).
Consoante tal afirmação, a mentira, aqui, é demonstrada como algo simbólico da linguagem humana, que, em meio ao tempo atual, parece adquirir um status maior do que se poderia almejar. Verificar isso como um sintoma da indiferença é reconhecer, concomitantemente, a absurdidade que o demonstra nas relações humanas. Desse modo, vitimado pela indiferença, o homem contemporâneo, outrossim, vitima a outros iguais, numa atitude de desprezo, como se ele, este homem, fosse o único sobrevivente do holocausto da Solitude, destituído, portanto, de toda e qualquer prova de presença. É como se a ausência de outrem criasse um fosso abissal consigo próprio e ele não pudesse nem mais perceber sua própria presença. Em meio a essa ausência, Camus com seu paroxismo sisifiano, argumenta:
Même les hommes sans évangile ont leur mont des Oliviers. Et sur le leur non plus, il ne faut pas s’endormir. Pour l’homme absurde, il ne s’agit plus d’expliquer et de résoudre, mais d’éprouver et de décrire. Tout commence par l’indifférence clairvoyante (CAMUS, 1998, p. 131).

Mesmo os homens que não acreditam no Evangelho têm seu Monte das Oliveiras. Embaixo deles não se deve pegar no sono. Para o homem absurdo não se trata de explicá-lo nem de compreendê-lo, mas de experimentá-lo e de descrevê-lo. Tudo começa pela indiferença perspicaz (CAMUS, 1989, p. 116).
Ora, se não se pode explicar nem compreender o absurdo, como se refere Camus, o primeiro passo seria descrevê-lo, já que se trata aqui de torná-lo evidente à razão. Porém, antes de se poder explicitá-lo melhor, vale especular a que se deve esse sentimento de estranheza diante de Outrem? Isto é, quais as suas causas possíveis que sintomatizam a indiferença?
Trazer para casa esse sentimento de estranheza foi uma das démarches de Freud, particularmente em seu artigo O Estranho. Diferentemente do protagonista de A Queda, o estranho freudiano põe-se a dúvida e, igualmente, o medo de se perder sem a presença de outrem. Na conduta de ser estranho em outro, transferido[5] ou irreconhecível, pode-se destacar a dupla qualidade da estranheza: o estranho que é o outro e o estranho que está no homem que o percebe e que se torna outro para o outro. O fato é que o homem está sempre no precipício do encontro. O querer[6], no sentido freudiano, como algo impulsionador, é onde os homens encontram sua morada[7]. Pode-se, desde , perceber em meio a algumas elucubrações, que o homem se distancia para não assumir com autenticidade a sua própria condição de ser com o outro. No entanto, percebe-se também uma diferença desse estranhamento como algo a resgatar. Chegar-se-ia, decerto, a um paradoxo ontológico: O homem que se faz estranho para poder permanecer na diferença do que ainda não é, isto é, sendo igualmente em outro, todavia, sendo na diferença do que é, mas sem inclusão, logo, permanecendo estranho[8]. Não sabe ser o que se é porque sua diferença ainda ocupa o espaço da exclusão ou do preconceito. É o homem des-dignificado pela humilhação hedionda da guerra ou dos campos de concentração. Com isso, poder-se-ia verificar com Todorov, em sua obra Em Face do Extremo, a reação que um homem teria ao ser rebaixado a um estado de desumanidade, quando ele reescreve Camus: [...]a única dignidade do homem reside na tenaz revolta contra sua condição (1995, p. 70).
É o homem que quer ser diferente em meio a um processo de tempo e espaço; onde se remete a um lugar onde o próprio tempo não tem tempo para modificá-lo. Daí se podem verificar em seu corpo os sintomas de sua falta de superação. Não é em vão que, atualmente, haja tantas pessoas em todo o mundo se tatuando[9]. Mas afinal, onde realmente está sua morada? Seria na estranheza de sua diferença ou no cuidado de sua presença no mundo? Que virtude seria esta, a do cuidado[10] com outrem, que faz o homem diferente de si próprio? Ao enaltecer cuidadosamente essa virtude, como Solidariedade universal, Todorov, mais uma vez, Em Face do Extremo, assegura:
Essa nova qualidade exigida para as ações virtuosas, que devem não provar a dignidade de seus autores, mas servir também para o bem dos outros, pode ser chamada de cuidado. Esta é a Segunda virtude cotidiana: trata-se sempre de um gesto dirigido a um ser humano individual muito próximo, não à pátria ou à humanidade. Esse cuidado para com o próximo traz em si mesmo a própria recompensa: acontece de sermos capazes de realizar para os outros, ações que não empreenderíamos para nós mesmos; estamos, portanto, entregues à vida (TODOROV, 1995, p. 26).
Vida essa que, mesmo em meio a um campo de concentração onde a perversidade e a maldade humanas assumem configurações inimagináveis; onde o algoz pretende aniquilar não apenas o corpo de sua vítima, porém demonstrar que o poder pode atingir a aniquilação do espírito humano, é que se pode profundamente perceber o que é a Solidariedade humana. No primeiro capítulo de O Homem Revoltado Camus observa tal garantia, quando diz: “Na revolta, o homem se transcende no outro, e, desse ponto de vista, a Solidariedade humana é metafísica. Trata-se simplesmente, por ora, dessa espécie de Solidariedade que nasce nas prisões (1997, p. 29). E, igualmente, em  A Queda, de Camus, pode-se verificar como esse homem moderno contemporâneo, individualista e alienado, busca, em meio ao seu cotidiano, o “Éden Perdido”, mesmo que para isso, de forma paradoxal, ele profanize sua imortalidade tão almejada:
Désespérant de l’amour et de la chasteté, je m’avisai enfin qu’il restait la débauche qui remplace très bien l’amour, fait taire les rires, ramène le silence, et, surtout, confère l’immortalité. À un certain degré d’ivresse lucide, couché, tard dans la nuit, entre deux filles, et vidé de tout désir, l’espoir n’est plus une torture, voyez-vous, l’esprit règne sur tous les temps, la douleur de vivre est à jamais révolue. Dans un sens, j’avais toujours vécu dans la débauche, n’ayant jamais cessé de vouloir être immortel. N’était-ce pas le fond de ma nature, et aussi un effet du grand amour de moi-même dont je vous ai parlé ? Oui, je mourais d’envie d’être immortel. Je m’aimais trop pour ne pas désirer que le précieux objet de mon amour ne disparût jamais. Comme, à l’état de veille, et pour peu qu’on se connaisse, on n’aperçoit pas de raisons valables pour que l’immortalité soit conférée à un singe salace, il faut bien se procurer des succédanés de cette immortalité. Parce que je désirais la vie éternelle, je couchais donc avec des putains et je buvais pendant des nuits. Le matin, bien sûr, j’avais dans la bouche le goût amer de la condition mortelle (CAMUS, 1998, p. 87).

Desesperançado do amor e da castidade, compreendi, enfim, que restava a libertinagem, que substitui muito bem o amor, faz calar os risos, restabelecer o silêncio e, sobretudo, confere a imortalidade. Com uma certa lucidez provocada pela bebida, deitado, alta noite, entre duas moças, despido do desejo, a esperança não é mais uma tortura, compreenda, o espírito reina sobre todos os tempos, a dor de viver fica para sempre afastada. Em certo sentido, eu tinha vivido sempre na libertinagem, pois nunca deixei de querer ser imortal. Não seria essa a essência da minha natureza, e também a conseqüência do grande amor por mim mesmo, de que lhe falei? Sim, eu morria de vontade de ser imortal. Eu me amava demais para desejar que o precioso objeto do meu amor desaparecesse para sempre. Em nosso estado de vigília e em nosso pouco conhecimento, não encontramos razões válidas para que a imortalidade seja conferida a um macaco lascivo; assim, faz-se necessário descobrir substitutos para essa imortalidade. Porque eu desejava a vida eterna, eu dormia com prostitutas e bebia durante noites inteiras. É claro que, de manhã, sentia na boca o gosto amargo da condição de mortal (CAMUS, p. 79/80).
Além disso, Camus tenta mostrar, de forma alegórica, na obra A Queda, o homem que não age diante da demanda de outrem, contudo, sente-se sensibilizado pelo seu riso e com isso pode olhar a si próprio.
Je me redressai et j’allais allumer une cigarette, la cigarette de la satisfaction, quand, au même moment, un rire éclata derrière moi. Surpris, je fis une brusque volte-face: il n’y avait personne. J’allai jusqu’au garde-fou: aucune péniche, aucune barque. Je me retournai vers l’île et, de nouveau, j’entendis le rire dans mon dos, un peu plus lointain, comme s’il descendait le fleuve. Je restais là, immobile. Le rire décroissait, mais je l’entendais encore distinctement derrière moi, venu de nulle part, sinon des eaux. En même temps, je percevais les battements précipités de mon coeur. Entendez-moi bien, ce rire n´avait rien de mystériex ; c´était un bon rire naturel, presque amical, qui remettait les choses en place. Bientôt d’ailleurs, je n’entendis plus rien (CAMUS, 1998, p. 36).

Voltei-me e ia acender um cigarro, o cigarro de prazer, quando, ao mesmo tempo, uma risada ecoou atrás de mim. Surpreso, bruscamente olhei para trás: não havia ninguém. Fui até o parapeito: nenhuma barcaça, nenhum barco. Virei-me para a ilha e de novo ouvi o riso às minhas costas, um pouco mais distante, como se descesse o rio. Fiquei onde estava imóvel. O riso diminuía, mas eu o ouvia ainda distintamente atrás de mim, vindo de lugar nenhum, a não ser das águas. Ao mesmo tempo, sentia os batimentos precipitados do meu coração. Compreenda-me bem, este riso nada tinha de misterioso: era um riso bom, natural, quase amigável que recolocava as coisas no seu lugar. Aliás, logo depois não ouvi mais nada (CAMUS, p. 32-33).
Veja-se que o riso, diferentemente do grito de um corpo que cai na água, não remete o protagonista ao mistério nem ao desconforto. O riso demonstra-se, como quase amigável algo bom. Não há aí algo de estranhamento que conduza a uma indiferença. Enquanto que no grito, pôde-se notar uma crueza de atitude, no riso, nota-se uma curiosidade de saber o que é. Não se quer passar ao largo. O riso é irremediavelmente bom.
Considerando, com efeito, o homem atual em a busca do Éden Perdido, faz dele um ser distanciado de outrem porque vive numa selva da urbanidade moderna, desse modo, a vivência cotidiana sob formas extremadas pode colocar o homem em estado de constante vigília e em situação de sobrevivência ao caos. Nem algo nem ninguém devem restringir a condição humana. Sobreviver não se torna um ato imoral quando a civilidade pode se impuser em prol da coletividade. Talvez esse seja o modo nevrálgico que Camus pôde, não somente, vislumbrar, mas revoltar-se e se fazer o “porta voz” daqueles que não sabem nem podem pronunciar-se contra toda forma de opressão e de exclusão. Deve-se, consoante Camus, distinguir a diferença fundamental entre a revolta e o ressentimento. Este último apresenta-se sempre sob a forma individual e não tem fôlego para atingir nenhum tipo de universalidade ao que a Ética pressupõe. Veja-se, a título de exemplo, como ele prefigura essa universalidade, fazendo com que o ato moral, tal como ato, esteja subjacente no movimento de revolta: Na experiência do absurdo, o sofrimento é individual. A partir do movimento de revolta, ele ganha a consciência de ser coletivo, é a aventura de todos...” [11] (CAMUS, 1997, p. 35). A contenta da revolta, Camus reconceitualiza assim o cogito, ergo sum[12] cartesiano: Eu me revolto, logo existimos.
O homem em face do extremo não poderia, segundo Camus, nem se conformar nem se resignar. Revoltar-se faz dele, o homem, alguém inserido na alma de seu tempo e sempre disposto a reagir contra tudo que o conduz às fronteiras da exclusão.
Na descrição da revolta, em O Homem Revoltado, ele assume essa atitude como algo que não pode se curvar a nenhuma forma de determinismo, mesmo que seja histórico ou ontológico:
La première et la seule évidence qui me soit ainsi donnée, à l’intérieur de l’expérience absurde,  est la révolte. [...] La révolte naît du spectacle de la déraison, devant une condition injuste et incompréhensible. [...] Elle crie, elle exige, elle veut que le scandale cesse et que se fixe enfin ce qui jusqu’ici s’écrivait sans trêve sur la mer. Son souci est de transformer (CAMUS, 1998, p. 23).

A primeira e única evidência que assim me é dada, no âmbito da experiência absurda, é a revolta. [...] A revolta nasce do espetáculo da desrazão diante de uma condição injusta e incompreensível. [...] A revolta clama, ela exige, ela quer que o escândalo termine e que se fixe finalmente àquilo que até então se escrevia sem trégua sobre o mar. Sua preocupação é transformar (CAMUS, 1997, p.  21).
O “aquilo” da citação, evidentemente, guarda algo de hipostático[13] do ponto de vista ético. O ato moral circunscreve-se sem trégua sobre a condição humana. Evoca-se sua realização para que o escândalo das injustiças não tome o lugar da justiça. Mesmo porque, toda justiça é essencialmente ética e ela assegura uma condição de igualdade em que todos, mesmo João Ninguém pode continuar humano, cuja alusão se pode ler em Todorov:
Continuar humano é mais precioso do que continuar vivo. Essa escolha dos valores morais não implica necessariamente a depreciação da vida, sobreviver permanece um objetivo abSolutamente respeitável, mas não a qualquer preço (TODOROV, 1995, p. 49).

Visto dessa maneira, a instigante e desconcertante denúncia de Camus frente aos postulados do pensamento contemporâneo adquire um caráter extremamente inovador, apesar de recuperar o pensamento grego, tal como: há uma natureza humana comum a todos os homens. Mesmo que, como assinala André Nicolas, em Albert Camus ou Le Vrai Prométhée,O individualismo toma lugar da Solidariedade, e esta Solidariedade, mesmo que tenha surgido da consciência do escravo, é propriamente metafísica” (NICOLAS, 1966, p. 90). Isto é, a consciência do outro nasce metafísica por excelência, porque seu objeto transcende toda a expectativa desmesurada da redução do si mesmo. se pode revoltar, portanto, quando o sentimento de absurdo, brota do coração humano.

Referências:
    • BEAUVOIR, Simone de. Moral da ambigüidade. Tradução de Anamaria de Vasconcellos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 197-.
    • CAMUS, Albert. A queda. Rio de Janeiro: Record,
    • CAMUS, Albert. A Peste. Lisboa : Edição Livros do Brasil, 197-.
    • CAMUS, Albert. La peste. Paris : Gallimard, 1999.
    • CAMUS, Albert. O homem revoltado. Tradução de Valerie Rumjanek. Rio de Janeiro: Record, 1997
    • CAMUS, Albert. O mito de sísifo: ensaio sobre o absurdo. Rio de Janeiro: Guanabara, 1989.
    • LÉVINAS, Emmanuel. Totalité et infini : essai sur l’extériorité. Paris: Kluwer Academic, 1990.
    • __________________. Totalidade e infinito. Lisboa: edições 70, s/d.
    • NICOLAS, André. Albert camus ou le vrai prométhée. France : Éditions Seghers, 1966.
    • TODOROV, Tzvetan. Em face do extremo. Campinas, SP: Papirus Editora, 1995.




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[1] Tzvetan Todorov é coordenador de pesquisas do Centre National de Recherches Scientifique (CNRS). Crítico e ensaísta, publicou várias obras sobre literatura e sobre a sociedade, entre as quais: Au non du peuple (Éd. De L’Aube), Éloge du quotidien (Adam Biro), Les morales de l’histoire (Grasset), e as traduzidas para o português: Gêneros do discurso (Martins Fontes, 1980); A Conquista da América (Martins Fontes, 1993 e Em Face do Extremo (Papirus, 1995) obra em destaque neste estudo.
[2] Epifania do outro — designa o sentido de revelação, i. é., tornar evidente o sagrado no encontro do face-a-face.
[3] [...] il y a dans les hommes plus de choses à admirer que de choses à mépriser (CAMUS, 1999, p. 334).
[4] On voit parfois plus clair dans celui qui ment que dans celui qui dit vrai. La vérité, comme la lumière, aveugle. Le mensonge, au contraire, est un beau crépuscule, qui met chaque objet en valeur (CAMUS,1998, p. 102).
[5] Transferido aqui possui um sentido de transferência freudiana em que se projeta no outro o modo próprio de ser sem, contudo, nenhuma responsabilidade pelo ato praticado.
[6] Querer como ´desejo` no sentido freudiano.
[7] Morada aqui entendida como um lugar perdido, podendo-se remeter ao Éden original.
[8] Do ponto de vista psicanalítico, essa ambivalência seria facilmente identificada como uma esquizofrenia do eu. Contudo, o problema é muito mais profundo que a superfície psíquica. A ambivalência de ser diferente e, ao mesmo tempo, ser o mesmo, somente pode ser perseguida pela via do simbólico paradoxal. Visto desse modo, o pensamento camusiano traz uma novidade inigualável para essa esfera do entendimento humano. O outro quer ser outro em sua diferença, porém, enquanto isso não ocorre, mostra-se bivalente em comportamentos polissêmicos. Estar-se aí em verdade, mas, aparentemente, mostra-se pela metade porque está alhures. Contudo, o fato da presença não é pela metade como se pensa, é uma presença inteira. Seu ser é que está dividido, por isso ele sofre dores irreparáveis. O problema da divisão se instalou muito antes do processo de socialização. É um tipo de esquizogênese, isto é, está desde sua origem fundante como ser humano naquele contexto. (N. do A.).
[9] Convém salientar que o hábito da tatuagem provém de uma tradição milenar, inicialmente utilizada em pequenos clãs primitivos e que se propagou em todos os povos como representação de uma marca tribal. Em nossos dias, com o advento da era eletrônica o homem aprendeu a se robotizar, de tal modo, que a esfera do sagrado na representação simbólica da tatuagem adquiriu outra conotação: cada tatuagem representa um rito de passagem não efetuado em sua subjetividade. O corpo, que nos ritos iniciáticos, ocupa um papel preponderante na iniciação, agora apenas espelha o rito como algo intransponível. Seria como a revelação de ritos não transpostos, mas que se impõem de tal maneira ao corpo, que precisam marcar sua presença. Aliado às tatuagens, congrega-se outros elementos de metal perfurados na pele para demonstrarem um indolor rito de passagem. Seria como se a maturidade humana adviesse sem dor. Mas, muito embora, isso se propague como uma inovação iniciática dos tempos atuais, não se sabe, ainda, como redimir a melancolia.
[10] Apesar do cuidado se apresentar como uma possibilidade de superação da indiferença, não, necessariamente a garante. O cuidado, quando não se põe diante do outro, como atitude de um sujeito que cuida, salvaguardando sua identidade tende naturalmene, a se fundir com outro, ou seja, deixa-se tomar pelo objeto de sua ajuda. O outro, por sua vez, carente de ser em totalidade, apropria-se de quem se abre em abundância. Desaparece o sentido de Solidariedade e de compaixão. A relação passa a ser vampiresca. Nem um nem outro alcançam sua intencionalidade, apesar de deixar um vazio no outro, vice-versa, devendo, por mais antagônico que seja distanciarem-se. (N. do A.).
[11] Dans l’expérience absurde, la souffrance est individuelle. A partir du mouvement de révolte, elle a conscience d’être collective, elle est l’aventure de tous [...] (CAMUS, 1998, p. 38).
[12] Cogito, ergo sum – penso, logo (sou) existo, célebre expressão de René Descartes quando da descoberta do seu abrigo seguro da dúvida hiperbólica.
[13] Hipostático — aquilo, como aparece na citação, possui uma dimensão ontológica da noção de substância aristotélica. Aquilo guarda em sua essência a origem do problema apesar de estar revestido de seus acidentes. Este algo, oculto, subjaz em meio ao fenômeno e se mostra pela via da revolta. (N. do A.).

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