HAMLET[1]:
a aurora do anti-herói
moderno[2]
Lourenço Leite ,
“uma grande
ação é imposta
a uma alma que
não está em
condições de realizá-la”
Goethe
A obra Hamlet
de William Shakespeare[3]
foi encenada pela primeira
vez em
1601 e é considerada de tragédia de vingança . O autor em Hamlet utiliza-se de uma numerosa
diversidade de literatura
e de teatro , e as mistura ,
tais como :
a tragédia grega ,
o drama burlesco ,
a farsa , a comédia ,
a magia . Nela, Shakespeare fez do teatro o espelho
do universo e de cada
um de seus
grandes personagens ,
Hamlet, Macbeth, Ricardo III, Othelo, Lear, Ofélia, Desdêmona, etc. O arquétipo de uma atitude do
homem diante
do enigma do mundo
ou diante das paixões
que
o devoram ou que
o exaltam.
A grande predominância do espírito
cristão na anterior
cristandade européia fez da vida uma impossibilidade de se atingir
seu fim
que não
fosse no além . A tragédia ,
portanto , nunca
podia atingir seu
termo na vida
terrena , afirma Auerbach em O Príncipe Cansado [4].
“... uma grande ação é imposta a uma alma
que não
está em condições
de realizá-la” afirma Goethe sobre
Hamlet ou ainda :
“um ser belo , puro , nobre , elevadamente
moral , sem
a força sensível
que faz o herói ,
sucumbe sob uma carga
que não
pode carregar nem
jogar longe
de si ...”[6]. O
herói não
se consagra em Hamlet como o herói grego , trágico ,
pré-figurado que precisaria ser iniciado nos mistérios para tomar consciência
de seu fado .
Hamlet ao contrário , pré-figura em certo sentido o anti-herói :
não sabe que
está sendo usado pelo destino ;
sua vida
sofre as dores do mundo ,
mas não
tem meios de redenção .
Sua morte , juntamente com
as de outros , apenas
formam a trama da história .
Ele não
passa de um
fantoche nas mãos
de Clio. Contudo , apesar
de Hamlet não confirmar
em seu
personagem a Jornada
do Herói , no sentido
grego do termo ,
aponta-nos para uma construção
de personagem com
um eu
estilhaçado e nos convida a perceber uma nova constituição de sujeito .
Aquela do sujeito moderno ,
pré-renascentista onde se começam a eclodir a individualidade
de dentro para
fora . Individualidade
essa que evoluirá em
toda a renascença
até o romantismo .
Abrem-se diante
do drama de Shakespeare o diálogo solipsista, estéril ,
difuso , mas
profundamente indicador
de um caminho
que conduzirá o homem
moderno . Interessante destacar
que talvez
o próprio Shakespeare não
tenha tido a pretensão de contribuir
para a construção da
subjetividade do homem moderno . Verificam-se em
sua contemporaneidade filosófica,
encontramos Descartes que inaugura no pensamento
filosófico essa compleição do eu no âmbito de
uma subjetividade individualista e
solipsista. Em Hamlet esse individualismo
ainda está por
fazer-se. Ele ainda
não encontrou o ‘método ’
cartesiano. Ele ainda
permanece na dúvida hiperbólica. Seu eu ainda não se
constituiu cartesianamente, porque suas paixões ainda são determinantes . O eu
moderno cartesiano se constituirá pela tomada de consciência de si
e do mundo em
sua própria
evidência dada
pela razão .
Hamlet permanece na obscuridade das paixões da alma
que quer
entender a realidade como se fosse redutível a ele .
Não há nele a compreensão
da alteridade do mundo
suficiente para
colocá-lo em estado
de julgamento autêntico
e de percepção da distinção .
Tudo em
sua volta
ainda é algo
que se confunde com
o todo . A totalidade
da existência não
pode se fazer compreender
porque sua
visão de mundo
é ainda intuitiva, logo ,
puramente simbólica. Mas é nesse drama
extraordinário de Shakespeare que a visão
existencial do indivíduo é mostrada como possibilidade. Em
Hamlet, o ‘télos’[7] abre-se para o mundo além da Dinamarca. O seu
fim escatológico como
sentido último
transcende seu próprio
ethos. Seu questionamento
da existência o coloca mesmo além de seu grande amigo Horácio. Portanto ,
seu discurso
não se coaduna a ação .
Dizer e agir são formas
dicotomizadas e irreconciliáveis .
Antevemos aqui
a aurora do anti-herói
moderno como
alguém que
pretende se fazer à medida
que seu
eu se remonte. Em
Hamlet o eu do sujeito
está despedaçado como
os personagens míticos gregos Orfeu e Dioniso. O ‘diasparagmós’[8] não foi completado com
a reunião de suas
partes . Resta
ainda que
o seu eu
se reconstitua como sujeito
próprio para haver a verdadeira reconciliação consigo
e com o mundo .
Seu pai
só poderia
ser vingado em
sua consciência ,
mas não
de fato . É o novo
paradigma da reconciliação da consciência moderna
que se mostra
em Hamlet. Assim
como Sócrates o fez na Paidéia grega , só
poderá haver reconciliação no ‘lógos’, ou seja, na consciência
de si .
O sujeito moderno entra, a partir
dessa óptica , a ver a si mesmo por meio do que se instaura na consciência .
A verdade terá que
ser objetivada no sujeito
que a percebe. Temos aí o grande momento epistemológico do saber
moderno : pensar
o ser de alguma coisa é
pensá-lo no eu do sujeito
que pode conhecer
algo .
A realidade cultural
dinamarquesa não importa mais . Hamlet é o nosso
anti-herói moderno ,
contemporâneo, e talvez pós-moderno. Seu eu está em frangalhos e
necessita de um ponto
de partida . Precisa ,
assim como
os personagens míticos gregos , efetuarem uma ‘anábase’[9].
Hamlet representa uma profunda
‘catábase’[10] aos estágios de sua
própria consciência .
Ele não
tem controle de sua
situação existencial nem de sua história . Tratado
como anti-herói ,
representa a racionalização negativa , ou seja, não
pretende seguir nenhum
protótipo de realidade .
Ele não
pretende retornar à Dinamarca nem
ao seu aconchego
materno . Sua
busca vai além
de tudo isso :
pretende encontrar respostas
que não
estão na realidade diante
dele. A transcendência o provoca assim como
todas as artimanhas de Cláudio, o rei da Dinamarca. Seu
encontro com
a verdade só
poderá ocorrer fora
de todo o contexto
de sua cultura .
Seu eu
urge a reconciliação, porém , sua alma ,
impossibilitada de confirmar seu
entendimento , continua vulnerável e órfã. Não
será nele que ocorrerá a redenção da Dinamarca, entenda-se aí
a da morte de seu
pai , as das tramas
de seu tio ,
as das pretensões de Polônio . A redenção
poderá ser iniciada
por Fortimbrás, o verdadeiro
herói , rei
da Noruega que conquista
e se apossa da velha Dinamarca. No entanto , o próprio
Fortimbrás não tem consciência
da verdadeira decadência da Dinamarca. Ele apenas
representa alguém que
tem o poder da conquista ,
mas não
tem o poder da compreensão .
Se Shakespeare não acrescentasse o personagem Horácio para retratar toda a história , sua conquista seria imemorial .
Ou seja, a memória
se inicia pelo terceiro
elemento , o outrem .
Aquele que
vê e antevê a realidade .
As próprias efetivações de Hamlet, mesmo
com sua
morte , não são suficientes
para compor o enredo da história que a Dinamarca iniciara.
Hamlet quer ser primordialmente o
outro enquanto
outro . Sua
alteridade é superior
a toda e qualquer
ordem estabelecida. Sua
indiferença diante
de todas as posses e propriedades constrange a todos .
Ele pretende-se ser
aquilo que
ainda não
é, ou seja, ser
alguém que
poderia construir
sua própria
história independente
das determinações morais .
Hamlet é a marca
cabal da liberdade
da existência que
se instaurará na modernidade. Kierkegaard é quem
iniciará a construção dessa fisionomia
do homem em
desespero diante
de si mesmo .
Mas vale ressaltar que Goethe,
no seu Fausto ,
apresenta-nos inúmeras características
dessa falta de transcendência .
O descontentamento de Fausto diante
de sua existência
é algo tão
monumental , que
depois dele não
podemos mais pensar
a solidão do ser outro como mera excentricidade . A questão está posta e não pode mais ser rejeitada. Creio que
Hamlet de Shakespeare inicia esse questionamento de maneira
magistral . O limite
da existência não
é mais a própria
vida plantada no ethos. A vida humana
está condenada a transcender a si
mesma .
[pega
a caveira ] Que
lástima , pobre
Yorick! Eu o conheci, Horácio; era um tipo de infinita
graça e da mais
extraordinária fantasia ;
carregou-me na suas costas
mais de mil
vezes ; e agora
como é horrível
imaginar essas coisas !
Aperta-me a garganta ao pensar
nisso. Aqui ficavam os lábios que eu beijei nem
sei quantas vezes . Onde
estão agora os teus
gracejos ? As tuas cabriolas ?
As tuas canções ? Teus
lampejos de espírito
que eram capazes
de fazer gargalhar todos os convivas ?
Nenhum mais
agora , para zombar dos teus esgares ? Caiu-te o queixo ?
Vai agora aos aposentos
de minha dama
e diz-lhe que , por
mais grossas camadas
de pintura que
ela ponha sobre
a face , terá de chegar
a isto : vai fazê-la rir
com essa idéia ...
Bibliografia
consultada:
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[1]
Drama em cinco atos de
William Shakespeare. Uma narrativa do
historiador Saxo Grammaticus[1] (séc.
XIII) forneceu a Shakespeare o sujeito de seu drama , o mais célebre de
seu teatro .
Apareceu sobre as muralhas
do castelo d’Elseneur, na Dinamarca, o espectro do rei
relata à Hamlet, seu filho , que ele pereceu assassinado por
Claudius, seu irmão ,
em comum
acordo com
a rainha . Preparando sua vingança , Hamlet vai simular a loucura ,
abandonando sua noiva
Ofélia que perde a razão
e se afoga. No duelo em que se opõe
a Laertes, irmão de Ofélia, Hamlet é
ferido por uma espada
envenenada. Antes de morrer ,
ele mata
Cláudio o usurpador , ao passo
que Gertrude, sua
mãe , perece envenenada pelo
drinque que
ele havia preparado
para ela . Em um mundo onde a ciência tomou o poder da natureza , um poder que a religião atribuía até
então à divindade ,
toda noção
de fatalidade doravante
é abolida, Hamlet é o drama de acesso à consciência e à liberdade .
Entre as traduções
e adaptações , cita-se aquelas de Ducis
[1769], Alexandre Dumas e Paul Meurice
[1848], Eugène Morand e Marcel Schwod [1899], André Gide [1946], Marcel Pagnol
[1950] assim como
o filme de Laurence Olivier [1948] e a atual versão
inglesa feita por
Kennet Branagh de [1998]. Fonte : Petit Robert,
Paris: Le Robert.
[2]
Publicado pela Revista Ideação do Núcleo Interdisciplinar de Estudos e
Pesquisas em Filosofia da Universidade Estadual de Feira de Santana. V. 1 nº 6.
1997 – ISSN 1415-4668.
[3] William Shakespeare - Dramaturgo
e poeta inglês
(1564-1616). É considerado o maior dramaturgo da história
do Teatro . Nasce em
Stratford-upon-Avon, perto de Londres, cidade para onde se muda em 1591. Entre
1590 e 1594, escreve sua primeira peça ,
A Comédia dos Erros .
Dono de uma técnica
extremamente pessoal ,
sua obra marca
o teatro elisabetano da época
e influencia toda a produção
teatral posterior .
Em suas
peças , demonstra uma profunda visão
do mundo e da complexidade da alma humana . Retrata o comportamento
humano em
tragédias , comédias
e dramas históricos ,
como Henrique V. Entre
as tragédias mais
importantes estão Romeu e Julieta,
Macbeth, Hamlet, Rei Lear e Otelo. As comédias
mais encenadas incluem O Mercador de Veneza, A Megera
Domada e Sonhos de Uma Noite de Verão .
Muitas de suas peças
são adaptadas para
o cinema . Em
1609, publica uma série de sonetos , dedicados a um
rapaz e a uma senhora
não-identificados. Escreve sua última peça , A Tempestade , em
1613. Fonte : Almanaque
Abril 1997
[4]
Auerbach, Erich. O Príncipe Cansado. In: Mimesis. São Paulo: Perspectiva, 1998,
p. 284
[5] Op. Cit.
pp. 284-285
[6] Goethe
em Wilhelm Meisters Lehrjahre – livro IV, cap. 3 e 13
[8] Arte do
despedaçamento, desmembramento.
[9] Subida
do Hades; ascensão às realidades superiores da consciência; Fig.: tomada de
consciência
[10] Descida
ao Hades; aos infernos; descida aos estágios inferiores da natureza humana.
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