Lourenço Leite[2]
Resumo:
O
presente artigo [1] reflete sobre a precariedade da vida sob a óptica filosófica de
Camus, em sua obra O Mito de Sísifo,
e sob a metáfora do absurdo de Saramago, em sua obra Todos os Nomes, protagonizada por gente comum, tendo, com
destaques, em ambas, o problema do paradoxo do “Absurdo diante do Mistério” da
existência humana e a sua tentativa de resolução por meio do conhecimento do
“Suicídio”.
O absurdo nasce da confrontação entre os anseios
humanos e o silêncio
iníquo do mundo .
É isso que
não se pode esquecer .
É disso que é necessário
enganchar-se porque toda
a conseqüência de uma vida pode brotar disso. A
irracionalidade , a nostalgia humana
e o absurdo que
surge de seu confronto ,
são , portanto
os três personagens
do drama que
deve necessariamente acabar com
toda a lógica
de onde uma existência
é possível [3].
(CAMUS, O Mito de Sísifo)
O
|
paroxismo do absurdo na esfera do cotidiano
se, de um lado, engendra[4]
uma ausência de outrem, de outro, testemunha uma presença na própria presença.
A tarefa de nomear essas aparições e esses ocultares evoca às avessas, o apelo
do real ao homem no mundo da existência. Camus[5],
como profeta da revolta, de um lado, Saramago, profeta da cegueira, de outro,
conduz a uma entrada nos labirintos de um tipo de sociedade burocrática, em que
o outro não possui identidade enquanto não for nomeado. A obra mais recente de
José Saramago[6], Todos
os Nomes[7],
entrelaça-se, aqui, com o absurdo camusiano e desvela-se como mais um
aditamento àquilo que vem na linha de Ensaio
sobre a Cegueira: a reflexão sobre a precariedade da vida humana, reflexão
protagonizada por gente vulgar, neste caso um auxiliar de escrita de uma
hipotética Conservatória Geral do Registro Civil. Como no romance anterior, os
personagens não têm nomes próprios, sendo identificados por uma perífrase («a
senhora do rés-do-chão», «a mãe da criança», «o marido ciumento», etc.).
Excetua-se o personagem central, o Sr. José. O protagonista é um homem de meia
idade, funcionário inferior do Arquivo do Registro Civil. Esse funcionário
cultiva a pequena mania de colecionar notícias de jornais e revistas sobre
gente célebre. Um dia reconhece a falta, nas suas coleções, de informações
exatas sobre o nascimento (data, naturalidade, nome dos pais, etc.) dessas
pessoas. Dedica-se, portanto, a copiar os respectivos dados das fichas que se
encontram no arquivo. Casualmente, a ficha de uma pessoa comum (uma mulher)
mistura-se com outras que está copiando. O súbito contraste entre o que é
conhecido e o que é desconhecido faz surgir nele a necessidade de conhecer a
vida dessa mulher que fora identificada como uma suicida. Começa assim uma
procura pelo reconhecimento de outrem através de elementos numéricos e
burocráticos que, aparentemente, não revelam nenhum tipo de singularidade.
Ao se
cotejar Todos os Nomes de Saramago com O Mito de Sísifo, de Camus, pode-se verificar que, inicialmente,
está circunscrito o paradoxo da existência como um problema filosófico da mais
alta relevância: “o absurdo do mistério”.
Tanto uma
como outra obra tem em seu âmago o problema do suicídio e que tem se posto como
uma questão insolúvel da Filosofia. Do ponto de vista camusiano, a questão do
“Absurdo” e do “Suicídio”, não são questões de uma filosofia absurda, como ele
próprio afirma no prefácio de O Mito de Sísifo, mas preocupações em
querer mostrar um mal de l’esprit vivido
pelo homem contemporâneo representado por uma especulação metafísica.
A tentativa de se querer nomear o Absurdo é, seja
em Saramago, seja em Camus, um trabalho de perscrutação, quase infindável.
Destarte, poder-se-ia se fazer vir à tona a ética do absurdo que se comporta em
meio às absurdidades do mundo como algo imbricado no torvelinho das aparências
destituídas de sentido.
Ambos querem mostrar as possibilidades recônditas de uma conduta humana
que pode se tornar sensata e aplicável à esfera da eticidade. Visto desse modo,
quando se trata da obra O Mito de Sísifo, poder-se-á enveredar por caminhos
que conduzem ao desvelamento de verdades que somente o senso comum e o
cotidiano congregam. Essa obra, talvez, contém uma das mais ousadas tentativas
especulativas sobre a busca de sentido do homem e do mundo que se tornarão
conhecidas, desde que possam ser nomeadas. Prova disso, em uma de suas digressões
sobre o desespero humano, à esteira de Kierkegaard, Camus afirma: “O absurdo, que é
o estado metafísico do homem consciente, não conduz a Deus. Talvez esta noção
se esclarecerá se eu arrisco esta enormidade. O absurdo é o pecado sem Deus” [8] (CAMUS, 1989, p. 58).
Como se viu
acima, Camus, apesar de querer racionalizar o absurdo da existência,
identifica, quase que simultaneamente, a ausência de Deus como um paradigma
tradicional que norteia o agir humano. Mesmo as noções mais elementares do
cristianismo, tais como: o pecado e a direção do homem ao mundo escatológico
tornam-se presentes em seu pensamento dando a impressão de um testemunho de um
crente disfarçado. Todavia, a atitude de Camus é extremamente coerente e
sensata diante do problema da fé religiosa. Sua busca de Deus não é de um deus
pessoal ou paradigmático, mas de um Homem Deus que deve dar contas de sua
existência, sem prestar contas da existência. Mesmo porque, para Camus, Deus é
um ser inefável. E, do ponto de vista teológico, pode-se ler, em O Mito de Sísifo, uma das mais
autênticas definições de Deus que, somente um ateu, poderia expressar: [...] sua grandeza é sua inconseqüência. Sua prova é a sua inumanidade [9] (CAMUS, 1989, p. 53).
O estandarte do absurdo
verificado no mundo de Camus e Saramago não carrega nenhum tipo de divindade
nem de nenhuma realidade metafísica que se possa ir a busca de sua identidade.
Se o absurdo em Camus se consolida como uma demonstração de ´pecado sem Deus`,
em Saramago de ´vida sem nome`. Neste último, o ser humano está perdido no
anonimato completo e somente outro ser humano poderia dar-lhe um nome. O que se
extrai de importante desses autores são as formas que se aplicam ao absurdo
para destituí-lo de seu anonimato e trazê-lo à tona da razão. Se o absurdo
apresentar-se como a miséria, como ocorre nas narrativas em Camus, deve-se
transformá-la em fartura, se mostrar como incógnita de uma instância
burocrática sem nome deve-se nomeá-la.
Em Todos os Nomes, Saramago é
um tecelão dos sentidos e dos significados, buscando com auxílio da semiótica a
última textura do destino humano nos meandros do labirinto das palavras e nos
diálogos dos personagens. Após ser atendido por um enfermeiro, quando se feriu
tentando encontrar fichas sobre a suicida, o Sr. José retoma o teor do diálogo
que tivera e tenta encontrar em suas minúcias internas algum elemento novo para
sua investigação:
O diálogo
fora difícil, com alçapões e portas falsas surgindo a cada passo, o mais
pequeno deslize poderia tê-lo arrastado a uma confissão completa se não fosse
estar o seu espírito atento aos múltiplos sentido das palavras que
cautelosamente ia pronunciando, sobretudo aquelas que parecem ter um sentido
só, com elas é que é preciso mais cuidado. Ao contrário do que em geral se crê,
sentido e significado nunca foram a mesma coisa, o significado fica-se logo aí,
é direto, literal, explícito, fechado em si mesmo, unívoco, por assim dizer, ao
passo que o sentido não é capaz de permanecer quieto, fervilha de sentidos
segundos, terceiros e quartos, de direções irradiantes que se vão dividindo e
subdividindo em ramos e ramilhos, até se perderem de vista, o sentido de cada
palavra parece-se com uma estrela quando se põe a projectar marés vivas pelo
espaço fora, ventos cósmicos, perturbações magnéticas, aflições (SARAMAGO,
1997, p. 134-135).
A semiótica
do discurso dos demais personagens de Todos os Nomes coaduna-se com o do protagonista. O
“pensar com seus botões” do Sr. José adquire uma dialética interna que se
conforma com a retórica do cotidiano. A inquietante busca do significado da
morte da Fulana de Tal toma-o sem medidas.
A
investigação do Sr. José se dá por inteiro. Saramago não quer mais saber, a
maneira de Agatha Christi, quem é o assassino dessa desconhecida. A causa
mortem, além desse encontrar no Rés-do-Chão da cidade,
encontra-se, igualmente, no Rés-do-Sotão da linguagem humana das
palavras e das emoções. É preciso esmiuçar todas as evidências da morte,
inclusive as da subjetividade da suicida, posto que a ausência de todo tipo de
metafísica nesse contexto coloca apenas como fronteira da investigação a partir
do que está à mão para o Sr. José.
O investigador em Todos os Nomes é
tão solitário quanto a sua desconhecida.
O Sr. José, assim como o homem contemporâneo, é um ser solitário que
tenta, a todo instante, encontrar saídas do labirinto de sua existência.
Enquanto isso viceja como um pavão uma vida que se mostra apenas em público. Na
solidão do seu quarto ou diante de sua escrivaninha a ausência de outrem acaba
revelando a sua carência. Enquanto investigador, Sr. José mostra-se como um ser
sabedor de sua tarefa com poderes de criar e recriar o que estiver morto ou
esquecido. Todavia, entrementes sua lida investigativa, seu comportamento
mostra-se vulnerável, carente, solitário, demasiadamente humano, falível,
portanto. Exemplo disso encontra-se em sua invulnerabilidade, quando seu chefe
o adverte:
A solidão,
Sr. José, declarou com solenidade o conservador, nunca foi boa companhia, as
grandes tristezas, as grandes tentações e os grandes erros resultam quase
sempre de se estar só na vida, sem um amigo prudente a quem pedir conselho
quando algo nos perturba mais do que o normal de todos os dias, Eu, triste, o
que se chama propriamente triste, senhor, não creio que o seja, respondeu o Sr.
José, talvez a minha natureza seja um pouco melancólica, mas isso não é
defeito, e quanto às tentações, bom, há que dizer que nem a idade nem a
situação me inclinam a elas, quer dizer, nem eu as procuro nem elas me procuram
a mim, E os erros, Está a referir-se, senhor, aos erros do serviço, Estou a
referir-me aos erros em geral, os erros do serviço, mais tarde ou mais cedo, o
serviço os fez, o serviço os resolve, Nunca fiz mal a ninguém, pelo menos em
consciência, é tudo quanto lhe posso dizer, E erros contra si próprio, Devo ter
cometido muitos, se calhar por isso é que me encontro sozinho, Para cometer
outros erros, Só os da solidão, senhor (SARAMAGO, 1997 p. 141).
Assim como
todo homem, o funcionário da Conservatória comete erros na solidão. O curioso é
que ele mais uma vez se identifica com a desconhecida que cometeu suicídio na
solidão. Ambos não possuem a devida presença de outrem que os faça retomar a
normalidade do cotidiano da existência. Abastece-se com o sumo da solidão que
se destila a cada instante no seio do desespero e do vazio. O resultado é a
consolidação da melancolia antiprometéica em que o espírito filantrópico
converte-se em egoísmo. Encontrar essa pessoa que cometeu crime contra si mesmo
é poder restaurar a normalidade da vida, a “harmonia do dia” [10].
É também impedir que ele (Sr. José) definhe nesse mundo de repetição sem
sentido em que o rochedo se torna cada vez mais pedra antisisifiana.
Seja
investigando-o, seja tornando-se disponível
à sua revelação ,
antes , porém ,
de se poder vislumbrar o rosto verdadeiro
do absurdo . Requerer-se-ia uma atitude que auxilie
na transformação de uma realidade concreta para outra abstrata :
a revolta . O contrário
é a resignação, informe , indolente , repetitiva ,
alienada e sem
brilho que ,
além de gerar
uma indiferença diante
de outrem , fortalece as injustiças e apaga a noção
de absurdidade.
De forma inigualável, ver-se-á
adiante como Camus conduz a questão da revolta na interpretação sobre Sísifo,
personagem mítico que se metaforiza no anseio de todo homem revoltado:
No instante sutil onde o homem se
volta para a vida, Sísifo, voltando-se em direção ao seu rochedo, contempla
essas ações sucessivas, sem ligação entre elas, mas que acabam se tornando seu
destino, criado por ele mesmo, unido sob o olhar de sua memória, e em seguida
selado pela sua morte. Desse modo, persuadido por tudo que é humano, cego que
deseja ver e que sabe que a noite não tem fim, ele está sempre em marcha. O
rochedo rola ainda (CAMUS, 1989, p. 145).
As ações sucessivas impingidas pelo
destino do Senhor dos Infernos (Hades) transformam-se em um novo destino que,
somente Sísifo, com a sua astúcia e artimanha, pode engendrar. A questão não é
a submissão à pena, mas o cumprimento dela sob a via da escolha. Mesmo no
Hades, Sísifo pode escolher e traçar seu próprio destino. Desse modo,
assemelha-se aos deuses, torna-se, inclusive, superior a eles.
[...] Sísifo
ensina a fidelidade superior que nega os deuses e eleva os rochedos. Ele também
julga que tudo está bem. Este universo doravante sem mestre não lhe parece nem
estéril nem fútil. Cada partícula desta pedra, cada brilho mineral desta
montanha plena de noite, para ele, só faz formar um mundo. A luta, ela mesma,
em direção às alturas são suficientes para encher o coração do homem. É preciso
imaginar Sísifo feliz [11]
(CAMUS, 1989, p. 145).
Sísifo, enquanto herói mítico, supera
os deuses, sejam do Olimpo, sejam do Hades, porque metaforiza a sua punição.
Ele consegue ver um sentido para a sua condenação (repetir a tarefa de fazer
rolar, “infindavelmente”, um rochedo) não como uma prova de sua punição. Ele
dá, em verdade, um sentido para a sua condenação. A repetição do dia-a-dia
(assim como a condenação do homem contemporâneo) adquire um sentido que ele lhe
dá. O absurdo da repetição como forma entojada de punição impede qualquer saída
ou qualquer revelação de novidade. No entanto, Camus vê Sísifo feliz. Ele
consegue, finalmente, superar os deuses. Ele aprende a se identificar com as
pedras, ou seja, com o próprio rochedo que servia de grilhão para escravizá-lo
eternamente. A existência se metaforiza em rochedo e faz de Sísifo um homem
livre. Ele concebe o mundo a partir de sua rocha imediata, assim como a rocha
do cotidiano da existência. Ter-se-á que dar vida a ela, sob pena de se cair no
reino da repetição, onde a inumanidade tornaria o Ser apenas um Ente sem
categoria metafísica transcendental. Somente desse modo poder-se-ia entender o
que Camus afirmou, sob influência de Nietzsche, sobre a força do pensamento
humano: “O pensamento de um homem é, antes de tudo,
sua nostalgia” [12] (CAMUS, 1989, p. 65).
Se de um
lado, vê-se Camus perseguindo um sentido para a vida diante da absurdidade do
mundo, de outro, vê-se Saramago investigando as possibilidades de decodificação
da existência a partir da vida de alguém sem nome.
Na obra de
Saramago, o protagonista, além de se interessar por uma desconhecida, irá
defrontar-se igualmente com o problema do suicídio e do absurdo e o que eles
representam num mundo onde o cotidiano assemelha-se ao ‘vazio de morte’. Portanto,
como toda evocação de mistério ou de chamamento, no sentido iniciático, é
revestida de um enigma, em Todos os
Nomes, os acontecimentos que advirão da procura do Sr. José pela
desconhecida, terão, como ponto de partida, o puro e o simples cotidiano: sem
sentido histórico, sem sentido em si mesmo e sem entrelaçamento decorrentes das
mãos do destino. Cada passo dado se revestirá de um sentido, isto é, cada parte
do quebra-cabeça revelará o todo. Mas não se tem certeza, ao ler Todos os Nomes, que ao final esse
‘quebra-cabeça’ se formará[13].
A Conservatória onde o Sr. José
trabalha, abriga, por analogia, a possibilidade metafísica de nomeação de todas
as coisas como se o mundo burocrático tivesse o poder absoluto de tudo saber,
tudo nomear, tudo registrar, tudo arquivar.
É uma condição fundamental
se se quiser ser funcionário
da Conservatória Geral
do Registro Civil ,
o meu chefe , por exemplo , só para que a senhora fique com uma idéia ,
sabe de cor todos
os nomes que
existem e existiram, todos os nomes e todos
os apelidos , [...] Sendo, como é, capaz
de realizar todas as combinações
possíveis de nomes
e apelidos , o cérebro
do meu chefe não só conhece
os nomes de todas as pessoas que
estão vivas e de todas as que morreram, como
poderia dizer-lhe como
se chamarão todas as que vierem a nascer daqui até ao fim do mundo
(SARAMGO, 1997, p. 62).
O Chefe do
Sr. José é, igualmente, o chefe da Conservatória. Nele, realizam-se todas as
possibilidades de nomeação dos entes da sociedade. Inacreditavelmente, a
Conservatória, na ausência de outrem, supre a sua falta engendrando, tanto o
seu nome como a sua singularidade no mundo. O “grande irmão” [14]
que tudo sabia, agora tudo pode, inclusive ressuscitar pessoas.
Nessa tentativa de busca de um objeto
anônimo para transformá-lo em um sujeito nomeado, o Sr. José, à medida que
entra nas inter-relações dos personagens que poderiam levá-lo ao encontro com
aquele ser perdido no anonimato, percebe que nenhum deles possuía laços de
união, afora os naturais, que o conduzissem a, mesmo antes do possível
‘encontro’, deparar-se com explicações que o ajudariam a perceber a causa
daquela morte. Estamos diante do mais puro e mais genuíno individualismo
moderno em que o ‘outro’ não se liga a ninguém, nem a si mesmo, a não ser para
construir o seu mundo. Mas o protagonista quer retirar aquela pessoa desse
mundo sem vida, sem sentido, sem nome, sem cor onde reina a desolação. Ele quer
transformar a sua identificação numérica em alfabética; ele quer singularizá-la
dando-lhe uma identidade, mesmo que virtual. Seu impulso de busca é
efetivamente sem propósito definido. Toma forma e corpo à medida que se situa
no contexto da ausência.
Em rigor,
não tomamos decisões, são as decisões que nos tomam a nós. A prova
encontramo-la em que, levando a vida a executar sucessivamente os mais diversos
actos, não fazemos preceder cada um deles de um período de reflexão, de
avaliação, de cálculo, ao fim do qual, e só então, é que nos declararíamos em
condições de decidir se iríamos almoçar, ou comprar o jornal, ou procurar a
mulher desconhecida (SARAMAGO, 1997, p. 42).
Como assinala Saramago, são as decisões que tomam o Sr. José
e não ele que as toma. Ora, se tudo está posto, cabe ao homem se encontrar e se
adaptar ao que está posto. O andante soturno de Saramago embrenha-se nos
labirintos da Conservatória como se também fosse um funcionário da existência
posta, mas sem nome. Ele próprio autodenomina-se Fulano de Tal. Necessita, à
medida que se lhe reconhece como funcionário investigativo, de um sobrenome.
Pode-se bem perceber essa falta quando Saramago o descreve:
No entanto, por
algum desconhecido motivo, se é que não decorre simplesmente da insignificância
da personagem, quando o Sr. José se lhe pergunta como se chama, ou quando as
circunstâncias lhe exigem que se apresente, Sou Fulano de Tal, nunca lhe serviu
de nada pronunciar o nome completo, uma vez que os interlocutores só retêm na
memória a primeira palavra dele, José, a que depois virão a acrescentar, ou
não, dependendo do grau de confiança ou de cerimônia, a cortesia ou a
familiaridade do tratamento (SARAMAGO, 1997, p. 19).
Vale
salientar que em Todos os Nomes, além
do nome do protagonista, só existem mais três nomes próprios: Conservatória
Geral do Registro Civil, Cemitério Geral e Ariadne. O primeiro, representando a
real possibilidade de nomeação, isto é, de vida; o segundo, representando o
aniquilamento e o esquecimento de outrem e o terceiro, o fio da razão que
reconstrói, ressuscita e reifica o outrem sem vida.
A narrativa de Saramago transforma o Sr. José em presa de um impulso
incontrolável, tira-lhe o sono e o faz perseguir no “labirinto confuso da sua cabeça sem metafísica o rasto dos motivos que
o tinham levado a copiar o verbete da mulher desconhecida, e não conseguia
encontrar um só que tivesse podido determinar, conscientemente, a inopinada
ação” (SARAMAGO, 1997, p. 39).
Diante
desse quadro, contracenando com Camus, este mostra a força imperiosa da
presença do “absurdo” que se torna uma paixão: “A partir do momento em que ela é reconhecida, a absurdidade é uma
paixão, a mais dilacerante de todas” [15] (CAMUS, 1989, p. 41).
Paixão essa que se poderia entender a
partir da experiência vivida pelos gregos no momento da gênese da Filosofia em
que se entrava em estado de estupefação diante do desconhecido que se dava a
conhecer pelas mãos da razão. Aqui, Pathos e Philos co-habitam
diante da experiência única e irremovível do homem diante do mistério.
Almejou-se sempre desvelar o mundo em meio ao Caos instalado desde sua origem.
Houve sempre intrépidos heróis, sejam da força, sejam do saber que tentaram por
ordem no Caos. Porém, as paixões provindas do reconhecimento das absurdidades,
nem sempre ou nunca, conseguiram chegar a termo:
Pessoas
assim, como este Sr. José, em toda a parte as encontramos, ocupam o seu tempo
ou o tempo que crêem sobejar-lhes da vida a juntar selos, moedas, medalhas,
jarrões, bilhetes-postais, caixas de fósforos, livros, relógios, camisolas
desportivas, autógrafos, pedras, bonecas de barro, latas vazias de refrescos,
anjinhos, cactos, programas de óperas, isqueiros, canetas, mochos,
caixinhas-de-música, garrafas, bonsais, pinturas, canetas, cachimbos, obeliscos
de cristal, patos de porcelana, brinquedos antigos, máscaras de carnaval,
provavelmente fazem-no por algo a que poderíamos chamar angústia metafísica,
talvez por não conseguirem suportar a idéia do caos como regedor único do
universo, por isso, com as suas fracas forças e sem ajuda divina, vão tentando
pôr alguma ordem no mundo, por um pouco de tempo ainda o conseguem, mas só
enquanto puderem defender a sua coleção, porque quando chega o dia de ela se
dispersar, e sempre chega esse dia, ou seja por morte ou seja por fadiga do
coleccionador, tudo volta ao princípio, tudo torna a confundir-se (SARAMAGO, 1997, p. 23-24).
Situações
insólitas, transgressões, encontros e desencontros sucedem-se no caminho de
busca do viajante solitário, Sr. José. Ele percorre quatro grandes espaços: a
Conservatória, a Cidade, a Escola e o Cemitério (ou Labirintos). No último,
constata que o objeto de sua lida que o levou à tamanha transformação não
existe mais. A mulher desconhecida está morta e perdida no anonimato.
Suicidara-se poucos dias antes. A frustração do Sr. José só pode se
compreendida porque em meio ao seu trabalho obsessivo de trazer à luz a incógnita
de um suicídio ele está simultaneamente metaforizando sua própria existência e
a instituindo de sentido. Entretanto, antes de poder realizar essa proeza, é
preciso ir aos arquivos mortos da Conservatória, escutar os sons do anonimato e
se deixar contaminar com os fungos da memória impregnados nos papéis. Entrar
nesse mundo é se entregar totalmente a uma realidade sem vida, mas dela poderá
brotar algo que restaure a vida. Saramago, então, conduz Sr. José às catacumbas
da humanidade,
[...] o
Sr. José não terá portanto mais luz a valer-lhe que o débil círculo luminoso
que, ao ritmo dos passos, mas também por causa do tremor da mão que segura a
lanterna, oscila à sua frente. É que há uma grande diferença entre vir ao
arquivo dos mortos durante as horas normais de serviço, com a presença, lá
atrás, dos colegas, que, apesar de pouco solidários, como se tem visto, sempre
acorreriam em caso de perigo real ou de irresistível crise nervosa, sobretudo
mandando o chefe, Vão lá ver o que se passa com aquele, e aventurar-se sozinho,
no meio duma negra noite, por estas catacumbas da humanidade dentro, cercado de
nomes, ouvindo o sussurrar dos papéis, ou um murmúrio de vozes, quem os poderá
distinguir (SARAMAGO, 1997, p. 169).
Esquecimento
e Memória, apesar de serem conhecidos como modos antagônicos de conhecimento,
aqui, em Saramago, eles adquirem uma qualidade inigualável que vai contribuir
para que o Sr. José, homem de nossos dias, possa perscrutar a realidade humana
e reconduzi-la ao seu curso histórico que foi desviado. Apesar do Sr. José
utilizar-se do “Fio de Ariadne” para procurar os seus papéis no arquivo morto
que irão trazer a tona os ´esquecidos`, ele locupleta-se consigo próprio de
devaneios sobre a absurdidade de um tipo de arquivamento que reflete, ainda que
sumariamente, o caos da memória sócio-histórica,
[...] se
não houvessem ocorrido recentemente certos outros factos e se eles não tivessem
suscitado em mim certas outras reflexões, nunca eu teria chegado a compreender
a dupla absurdidade que é separar os mortos dos vivos. Em primeiro lugar, é uma
absurdidade do ponto de vista arquivístico, considerando que a maneira mais
fácil de encontrar os mortos seria poder procura-los onde se encontrassem os
vivos, posto que a estes, por vivos serem, os temos permanentemente diante dos
olhos, mas, em segundo lugar, é também uma absurdidade do ponto de vista
memorístico, porque se os mortos não estivessem no meio dos vivos acabarão mais
tarde ou mais cedo por esquecidos, e depois, com perdão da vulgaridade da
expressão, é o cabo dos trabalhos para conseguir descobri-los quando precisamos
deles, como também mais tarde ou mais cedo sempre vem a acontecer (SARAMAGO,
1997, p. 208).
O que foi
esquecido nos arquivos torna-se lembrado e a memória se mostra como fonte
resubstanciadora do que estava perdido. A desconhecida é também todo homem que
se perdeu nos labirintos de uma sociedade estatal em que sua memória depende de
uma ficha arquivada ou de bytes informáticos registrados nos computadores de
órgãos governamentais. O homem perdeu sua singularidade em meio ao caos da
burocracia e foi devorado pelo monstro da tecnocracia como se vê na sentença
final d´O Processo de Kafka.
Em conformidade com essa elaboração
simbólica e com essa busca incessante de compreensão, Camus aponta-nos o
absurdo do mundo cotidiano analogamente ao homem:
Posso tudo negar da parte de mim mesmo que
vive de nostalgias incertas, exceto o desejo de unidade, este apetite de
resolução, esta exigência de clareza e de coesão. Posso negar tudo que neste
mundo que rodeia, me choca ou me transporta, exceto o caos, este rei do acaso e
esta divina equivalência que nasce da anarquia [16]
(CAMUS, 1989, p. 68).
A presença
do ‘absurdo’ no mundo só tem significação quando o homem a percebe. Seja ao
dobrar uma esquina, seja em resistir a um ataque de tanque de guerra nas ruas
de Berlin oriental no período da guerra fria. Ora, se Camus, reconhece o
absurdo e tenta desvelá-lo, Saramago intenta por investigá-lo para torná-lo
doméstico.
Para o Sr.
José essa nova tarefa repleta de investigação é algo que o insere, pela
primeira vez, numa situação em que o desejo de saber sobre esse ‘outro’, sem
nome, atira-lhe num universo em que Camus insinua constantemente em O Mito de Sísifo sobre o problema do
‘absurdo’ e do seu encontro que, aqui, Saramago representa: “Também ando a
juntar papéis sobre o bispo e nem por isso estou interessado em falar algum dia
com ele, Parece-me absurdo, É absurdo, mas já era tempo de fazer algo absurdo
na vida” (SARAMAGO,
1997, p. 83).
Entretanto, esse desejo do absurdo de
Sr. José, está paradoxalmente ligado ao problema que Camus levanta sobre a
absurdidade da indiferença. Apesar dele querer fazer algo de absurdo diante da
indiferença dos registros das pessoas na Conservatória, ou dos mortos
desconhecidos no cemitério — que eram apenas identificados por números — ele
não quer permanecer indiferente a alguém que poderá ser revivido, desde que
encontrado e identificado. A noção de indiferença adquire sua antinomia, desde
que se esteja em vias de superação das desigualdades impostas no decorrer do
dia-a-dia: “A Conservatória Geral é diferente, depois
acrescentou, como se precisasse responder a si próprio, Provavelmente, quanto
maior é a diferença, maior será a igualdade, e quanto maior é a igualdade,
maior a diferença será, naquele momento ainda não sabia até que ponto estava na
razão” (SARAMAGO, 1997, p. 97). É necessário, então, que o detetive de almas vá
até o Cemitério Geral da cidade. Nesse ambiente lúgubre e fúnebre reside a
explicação de todos os nomes não decifrados:
Da mesma
maneira que a Conservatória do Registro Civil, ainda que a correspondente
informação, por deplorável esquecimento, não tenha sido dada na altura própria,
a divisa não escrita deste Cemitério Geral é Todos os Nomes, embora deva
reconhecer-se que, na realidade, à Conservatória é que estas três palavras
assentam como uma luva, porquanto é nela que todos os nomes efetivamente se
encontram, tanto os dos mortos como os dos vivos, ao passo que o Cemitério,
pela sua própria natureza de último destino e último depósito, terá de
contentar-se sempre com os nomes dos finados (SARAMAGO, 1997, p. 217).
A suicida passa a ser sua própria
criatura. Ele se pretende, aqui, com a mesma angústia de Calígula, na
peça de Camus: transgredir a medida da condição humana no papel de criador. Seu
empenho de procura adquiriu uma força e uma coragem irreversível. Nada poderia
impedi-lo. Tudo deveria ser consumado, por mais ironia do destino que isso
representasse. Sua idéia fixa e obstinada deveria ser concluída no total
esclarecimento da morte da suicida, agora sua amada, sua alma gêmea, sua
cúmplice e fiel amiga. Mas, muito embora o desfeche da investigação estava
preste a se consumar, o limite a que a desconhecida havia se colocado, era, a
duras penas, a representação de um limite que o Sr. José, assim como todo
homem, coloca-se e depara-se. Verifica-se, igualmente, essa pressuposição em O Mito de Sísifo de Camus:
O suicídio, como a salvação, é a aceitação
de seu limite. Tudo está consumado, o homem se exprime em sua história
essencial. Seu futuro, seu único e terrível futuro, ele o discerne e se
precipita nele. A seu modo, o suicídio resolve o absurdo. Ele o arrasta na
mesma morte. Mas sei que, para manter-se, o absurdo não pode se resolver [17]
(CAMUS, 1989, p. 71).
O papel, portanto, do Sr. José, não
estava em apenas, simploriamente, resolver o problema da morte da suicida e
acrescentar aos laudos de óbito. O absurdo do suicídio, conforme Camus
arrasta-o na morte. Mas o absurdo permanece porque não se resolve.
Tinha procurado a
mulher desconhecida por toda a parte, e veio encontra-la aqui, debaixo daquele
montículo de terra que as ervas bravas não tardarão a tapar, se antes não vier
o pedreiro aplana-lo para assentar a placa de mármore com a habitual inscrição
de datas, a primeira e a última, e o nome, podendo suceder, também, que a
família seja das que preferem para os seus defuntos uma simples moldura
rectangular no interior da qual depois se há-de semear uma decorativa relva,
solução que oferece a dupla vantagem de ser menos cara e servir de casa aos
insetos da superfície. A mulher está, pois, ali, fecharam-se para ela todos os
caminhos do mundo, andou o que tinha de andar, parou onde quis, ponto final,
porém o Sr. José não consegue libertar-se de uma idéia fixa, a de que mais
ninguém, a não ser ele, poderá mover a derradeira pedra definitiva, aquela que,
se for movida na direção certa, virá a dar sentido real ao jogo, sob pena, não
o fazendo, de o deixar empatado para a eternidade (SARAMAGO, 1997, p. 235).
O poder de reviver a desconhecida por
Sr. José, desse momento em diante, é o mesmo poder que possui o chefe da
Conservatória. Aquele agora está inserido no panteão dos senhores absolutos que
podem tudo, até mesmo o de ressuscitar alguém ou o de redimir alguém que cometeu
suicídio. A lógica da virtude e da justiça foi suplantada pela lógica da razão
que pode tanto, criar como destruir. O mundo que se instala a partir desse
frontispício lógico-burocrático é o mundo virtual em que tudo se evapora, assim
como tudo pode tornar-se. Realidade e aparência não se digladiam mais. O
simulacro da existência ganha forças nas mãos do investigador. Não há mais
necessidade de separar os mortos dos vivos.
Sabe o que eu
faria se estivesse no seu lugar, perguntou, Não Senhor, Sabe qual é a única
conclusão lógica de tudo o que sucedeu até o momento, Não senhor, Fazer para
esta mulher um verbete novo, igual ao antigo, com todos os dados certos, mas
sem a data do falecimento, E depois, Depois coloca-lo no ficheiro dos vivos,
como se ela não tivesse morrido, Seria uma fraude, Sim, seria uma fraude, mas
nada do que temos feito e dito, o senhor e eu, teria sentido se não a
cometêssemos, Não consigo compreender. O conservador recostou-se na cadeira,
passou lentamente as mãos pela cara, depois perguntou, Lembra-se do que eu
disse ali dentro na sexta-feira, quando se apresentou ao serviço com a barba
por fazer, Sim senhor, De tudo, De tudo, Portanto lembras-se de eu me ter
referido a certos factos sem os quais nunca teria chegado a compreender a absurdidade
que é separar os mortos dos vivos, Sim senhor, Precisarei de dizer-lhe a que
factos em referia, Não senhor (SARAMAGO, 1997, p. 278).
Para o Sr.
José, o problema não está na mentira do mundo, porque o absurdo de sua procura
é fortificado pelo cotidiano. Sua transgressão configura-se muito mais como
linguagem de uma fala sem palavras. Revitalizar a desconhecida é também
revitalizar sua própria vida que se perdera no passado ao trabalhar
cotidianamente com os verbetes das figuras ilustres ou desconhecido. Mas,
entrementes a devassa que ele praticara ao recompor toda a vida daquela pessoa
sem nome e sem destino certo, havia algo que se consolidara pouco a pouco:
acabara por vir a amar aquela criatura. O seu amor por essa criatura era, de um
certo modo, o mesmo amor por si mesmo. Amor narcísico que reflete
peremptoriamente o sentimento do homem de nossos dias. A Fulana de Tal ocupa o
lugar do espelho em que Sr. José deve olhar e ver a si próprio. O fato de amar
uma criatura não quer dizer com isso que se deve tê-la por perto. A ausência
deve, paradoxalmente, ser assegurada. A descoberta do Sr. José da suicida nos
verbetes não pode dar-lhe vida real. Ela deve permanecer na incógnita da
existência. Senão, tomaria o seu próprio lugar. O criador não convive com a
criatura. Metaforicamente, a criatura é o próprio Sr. José. Conquanto, o pastor
do Cemitério Geral alivia-o de sua angústia quando afirma: “se for certo, como
é minha convicção, que as pessoas se suicidam porque não querem ser
encontradas, estas aqui, [...] ficaram definitivamente livres de importunações” (SARAMGO,
1997, p. 241).
Em um determinado momento, portanto,
a investigação se conclui. A incessante tarefa acaba e o Sr. José corre o risco
de voltar a viver como antes. Porém, o caminho percorrido era sem retorno. Era
preciso continuar a procurar outros verbetes, porque, dessa vez, ele detinha o
poder oficial de dar vida a quem quer que fosse. Ele tinha as chaves e o Fio de
Ariadne para ir aos Arquivos Mortos e retornar com vida. O labirinto estava sob
controle, o Minotauro havia sido dominado e agora só restava trazer à tona
outros desconhecidos que foram esquecidos por engano ou propositadamente pelo
“sistema burocrático”.
O caso da
mulher desconhecida tinha chegado ao fim, só faltava esta indagação no colégio,
depois a inspeção da casa, se tivesse tempo, ainda iria fazer uma visita rápida
à senhora do rés-do-chão direito para lhe narrar os últimos acontecimentos, e
depois nada mais. Perguntou-se como iria viver a sua vida daqui para diante, se
voltaria às suas coleções de gente famosa, durante rápidos segundos apreciou a
imagem de si próprio, sentado à mesa ao serão, a recortar notícias e
fotografias com uma pilha de jornais e revistas ao lado, a intuir uma
celebridade que despontava ou que pelo contrário fenecia, uma vez ou outra no
passado, tivera a visão antecipada do destino de certas pessoas que depois se
tornaram importantes, uma vez ou outra tinha sido o primeiro a suspeitar que os
louros deste homem ou daquela mulher iam começar a murchar, a encarquilhar-se,
a cair em pó, Tudo acaba no lixo, disse o Sr. José, sem perceber naquele
momento se estava a pensar nas famas perdidas ou na sua coleção (SARAMAGO,
1997, p. 263-264).
Ao se findar o caso da Fulana de Tal, devidamente
esclarecido, devidamente arquivado e registrado em óbito às avessas, mantêm-se
a possibilidade de restaurar a vida de uma outra pessoa, recuperando seus dados
e informando à história o que aquela pessoa teria sido ou poderia ter sido. Mas
ao fim de contas, tudo se torna lixo. O importante era, de fato, escolher um
verbete da coleção de alguém que tenha sido famoso.
Ao final da obra, após ter dado conta de sua
empreitada, o Sr. José retorna à Conservatória Geral, constata a cumplicidade
do Conservador, recebe a chave que lhe permite acesso ao grande arquivo, tanto
dos mortos quanto dos vivos, pega a sua lanterna, ata o “fio de Ariadne” e
dirige-se para a escuridão. Saramago, aqui, metaforiza, de certo modo, a
entrada do Sr. José no arquivo morto como a de Orfeu no mundo ctônico do Hades
a fim de recuperar sua amada.
Ao se
retomar Camus lhe acrescentando essa alegoria do olhar para trás, o problema do
absurdo permanece, mesmo se se tiver as chaves dos ‘arquivos’ e, que, talvez,
queira-se permanecer livre do cotidiano: “Viver é fazer viver o absurdo. Fazer viver é, antes de tudo, olhá-lo.
Ao contrário de Eurídice, o absurdo não morre apenas quando se olha para trás”[18]
(CAMUS, 1989, p. 70-71).
Camus não
vislumbra, com seu ensaio sobre o absurdo, a possibilidade de uma vida sem cor
no seio do cotidiano vulgar. Ele nos põe diante do problema da existência do
homem, mesmo que este esteja subjugado às contingências do mundo. “O absurdo é a tensão mais extrema, do tipo
que mantêm constantemente um esforço solitário, pois ele sabe que dentro desta
consciência e dentro desta revolta, no dia-a-dia, ele testemunha a única
verdade que é o desafio” [19]
(CAMUS, 1989, p. 72).
Estar
desafiado a cada dia, não seria, como à primeira vista se verifica n´O Mito de Sísifo, estar submetido a um
cotidiano repetitivo, sem vida, enfadonho, entediante e precursor de baixa
estima. O desafio cotidiano revela o absurdo na fisionomia do efêmero ou nas
entrelinhas das fichas de um arquivo. Como uma Esfinge aterradora, o absurdo
vai tomando corpo e desenvoltura até que um forasteiro decifre o seu enigma.
No entanto, em Todos
os Nomes “não há vôos metafísicos. Tudo se desenrola cá em baixo, entre o
mundo de pedra e cimento”, como interpreta José Leon Machado:
[...]
catalogado em extensos ficheiros, criado pelo homem e que o sufoca. O próprio
protagonista tem a fobia das alturas. Tudo é demasiado chão. Tanto mais que o
protagonista é homem de pouca cultura, em que as suas leituras não vão além dos
jornais e das revistas donde ele recorta notícias para a sua coleção de personalidades
famosas. As reflexões que se elevam um pouco do solo são aquelas que o Sr. José
tem com o teto da sua casa, a própria consciência. (MACHADO,
1997, p. 01).
Conhecer, eis a grande questão seja para Saramago,
seja para Camus. Ambos não se propõem apenas a apontar uma perspectiva de
tradução do sentido do mundo. Se se estiver de mãos dadas com eles é para
poder-se, antever, de certo modo, um viés do sentido do homem em meio a essa
parafernália do mundo. O comportamento do homem soturno acaba encontrando
respostas que diminuem a angústia diante do mistério. Não importa que esta
busca seja em meio a um mundo caótico da burocracia ou da esquina do
quarteirão.
Posso tudo negar
da parte de mim mesmo que vive de nostalgias incertas, exceto o desejo de
unidade, este apetite de resolução, esta exigência de clareza e de coesão.
Posso negar tudo que neste mundo que me rodeia choca ou me transporta, exceto o
caos, este rei do acaso e esta divina equivalência que nasce da anarquia [20]
(CAMUS, 1989, p. 68).
O que importa é que o homem de Saramago ou o de Camus
entretêm-se em meio a conhecer o mundo e a vivê-lo. Porém, tanto aqui em baixo,
no mundo imediato, como lá em cima, no mundo abstrato, o homem tem sede de
apreensão do que não se mostra evidentemente. Sua consciência será sua
possibilidade de evasão do destino trágico. Veja-se como Camus, n´O Mito de Sísifo, descreve o paradoxo da
consciência que se sabe a si mesma, portanto, torna-se trágica:
Se a descida,
deste modo, se faz em certos dias na dor, ela pode se fazer também na alegria,
esta palavra não é demais para tanto. Imagino ainda Sísifo voltando em direção
ao seu rochedo e a dor estava no início. Quando as imagens da terra marcam
fortemente, quando o apelo da felicidade se faz pesado demais, acontece que a
tristeza se instala no coração do homem: é a vitória do rochedo, é o rochedo
ele mesmo. A imensa aflição é pesada demais para suportar. São as noites no
Getsêmani. Mas as verdades esmagadoras perecem ser reconhecidas. Deste modo,
Édipo obedece de início o destino sem o saber. A partir do momento em que ele
sabe, sua tragédia começa. [21]
(CAMUS, 1989, p. 143-144).
Não seria desse modo que se poderiam
acenar os primeiros gestos de reconhecimento do outro e se sair do nefasto
reino da indiferença? Mesmo porque, muito embora se pense que se poderia
resolver o problema do absurdo ao identificá-lo como um ser, constituído de
sentido, ele continuaria preso à existência humana, senão, não seria absurdo. A
questão que se impõe é a mesma levantada por Camus: não basta o suicídio para
resolver o problema da falta de sentido. A vida sem a presença do absurdo seria
destituída de mistério. Não haveria, portanto, nem ciência, nem filosofia, nem
arte. Assim sendo, não se seria homem e a inumanidade preencheria o lugar do
mistério. Ou ainda, o Kairós[22],
como anteviram os gregos, não revelaria a presença do sagrado.
A bem da verdade, salvo engano, mesmo
que se vislumbre algo de transcendental a partir dessas duas obras de Camus e
de Saramago, não se pode impingi-las de realidade propriamente metafísica
porque elas são representativas do mito, isto é, narrativas simbólicas. Tanto
um como outro, apesar de remeter-nos ao clima do mistério, não se pretendem
epifânicos do Ser. Prova disso, Camus, em O
Mito de Sísifo, esclarece sua postura diante do transcendental, como se vê
adiante:
A premissa
kiriloviana: “Se Deus não existe, eu sou Deus”. Vir a ser Deus é unicamente ser
livre sobre esta terra, não é servir a outro imortal. Certamente, é sobretudo,
tirar todas as conseqüências desta dolorosa independência. Se Deus existe tudo
depende Dele e nós não podemos fazer nada contra sua vontade. Se Ele não
existe, tudo depende de nós” [23]
(CAMUS, 1989, p. 129).
Ora, se tudo depende do homem,
igualmente à maneira de Hegel e de Nietzsche, o homem é Senhor de sua conduta
porque pode, diante de uma situação sem precedentes, decidir pelo outro ou por
si mesmo. Resta saber como esse mesmo Homem-Deus, destituído do inefável que
transcende a si próprio, comporta-se diante de sua ausência, como imagina Camus
em O Homem Revoltado [24]:
O
essencial [...] não é ainda remontar às origens das coisas, mas sendo o mundo o
que é, saber como se conduzir nele. No tempo da negação, podia ser útil
examinar o problema do suicídio. No tempo das ideologias, é preciso decidir-se quanto
ao assassinato. Se o assassinato tem suas razões, nossa época e nós mesmos
estamos dentro da conseqüência. Se não as tem, estamos loucos, e não há outra
saída senão encontrar uma conseqüência ou desistir [25]
(CAMUS, 1997, p. 14)
A
justificação de todo tipo de crime seja contra si ou contra outrem, apontada
por Camus, quer mostrar como se pode sobreviver em um mundo em que se aprendeu
a não negar, não apenas, a presença de outrem, mas, sobretudo, de além dessa
atitude, encontrar razões que justifiquem toda e qualquer barbaridade.
Ao dar
vazão à natureza o homem se lembra de sua humanidade, ao tempo que a deixa
livre, torna-se inumano. Ao usufruir sua razão como uma faculdade sem limites e
sem lógica, a natureza fica comprometida e abafada. Nesta última, os crimes de
lógica tornam-se todos justificados, mas também, toda construção ou engendração
do outro. A vida em sua “diferença” e em sua “unicidade” se esvai nas mãos de
quem detêm o poder absoluto da criação ou da manipulação genética, como se vê
nos momentos atuais. Há cinqüenta anos Camus, ao escrever O Homem Revoltado,
já havia notificado essa terrível situação a que se chegou há nossos dias:
Há crimes de paixão e crimes de
lógica. O código penal distingue um do outro, bastante comodamente, pela premeditação.
Estamos na época da premeditação e do crime perfeito. Nossos criminosos não são
mais aquelas crianças desarmadas que invocavam a desculpa do amor. São, ao
contrário, adultos, e seu álibi é irrefutável: a filosofia pode servir para
tudo, até mesmo para transformar assassinos em juízes. [26]
(CAMUS, 1997, p. 13).
A tentativa
de se querer engendrar o outro pela via da razão como única possibilidade de
compreensão da alteridade, pode também, fazer aparecer o absurdo e com isso
transformar assassinos em juízes.
Se o absurdo permanece
ao se olhar para trás , como
indica Camus, quer assim
dizer que ele não é apenas o espectro de
Eurídice, mas a verdadeira Eurídice de
Orfeu presente no mundo .
O amor de Orfeu se deveu ao fato dele ter percebido, pela via da arte ,
a presença do absoluto
da existência na figura
de Eurídice. Reencontrá-la é destituí-la daquela realidade
absoluta e plena
que se mostrou a ele
no toque de sua
lira [27]
ou no seu
amor por
uma mulher da Trácia. Talvez , assim como Orfeu, é preciso
que o homem
de hoje inicie seu
Diásparagmos[28]
para que
possa reencontrar a unidade
de si e, conseqüentemente ,
acolher o outro
enquanto outro .
Talvez , mais
que uma procura
astuciosa da razão ,
o homem tenha que
se deixar empreender
uma caminhada iniciática em direção ao Ser passando pelos pórticos da sensibilidade
humana onde
conhecimento e afeto
são adjutórios
da presença de outrem .
Talvez , desse modo ,
possa-se diminuir o paradoxo
da ausência de outrem
e a Ética da Existência
encontre um abrigo
mais seguro
na Estética da Existência .
§
BRANDÃO, Junito
de Souza. De Nix ao Leão de Neméia. In: idem. Mitologia Grega. Petrópolis: Vozes, 1989.
§
CAMUS, Albert. Caligula. Paris: Gallimard, 1998.
§
CAMUS, Albert. Calígula/O equívoco. Tradução de Ersílio Cardoso. Lisboa: Edições Livros do
Brasil, s.d.
§ CAMUS, Albert. Le Mythe de Sisyphe. Essai Sur L’Absurde. Paris:
Gallimard, 1998.
§
CAMUS, Albert. O Mito de Sísifo. Ensaio sobre o Absurdo.
Rio de Janeiro: Guanabara, 1989.
§ CAMUS, Albert. L’homme révolté. Paris: Gallimard, 1998
§
CAMUS, Albert. O Homem revoltado. Tradução de Valerie
Rumjanek. Rio de Janeiro: Record, 1997.
§ CAMUS, Albert. Essais. Paris: La Pléiade, 1981.
§
CHEVALIER, JEAN, GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos. Rio
de Janeiro: José Olympio, 1994.
§
KAST, Verena. A
condição prévia para o castigo. In: idem. Sísifo
- A Mesma Pedra - Um Novo Caminho. Trad. de Erlon José Paschoal. São Paulo:
Cultrix, s. d.
§
MACHADO, José
Leon. Todos os nomes de José Saramago. In.:
Letras & Letras, 1997, disponível em: http://www.ipn.pt/literatura/letras. Acesso em julho de 1997.
§ SARAMAGO, José. Todos os Nomes. São Paulo: Companhia das
Letras, 1998.
[1] Artigo publicado nos Cadernos Acadêmicos - Éthica da Revista do Programa
de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Gama Filho – Vol 10, n. 1 (2003).
[2] Professor de Filosofia e Ética da Universidade Federal da Bahia.
[3] L‘absurde naît
de cette confrontation entre l’appel
humain et le silence déraisonnable du monde. C’est cela
qu’il ne faut pas oublier. C’est à cela
qu’il faut se cramponner parce que toute
la conséquence d’une vie peut en naître. L’irrationnel, la nostalgie humaine et
l’absurde qui surgit de leur tête-à-tête ,
voilà les trois personnages du drame qui doit nécessairement finir avec toute
la logique dont une existence est capable.
[4] O verbo
engendrar possui uma significação lapidar
na compreensão do pensamento
camusiano em decorrência
da herança da tradição
mítica grega . Engendrar no mito
arcaico significa se fazer
mover como
uma máquina através
de uma engenharia cósmica, dando assim origem a outros elementos
primordiais . Não
há, portanto , o conceito
de criação , como
se verifica na tradição judaica . Os deuses ,
como representativos da natureza , engendravam os demais
elementos , isto
é, não possuíam o poder
de criar do nada ,
como fizera Yahveh.
[5] Albert Camus nasceu no dia 07 de novembro de 1913, na
Argélia, filho de um pai de origem alsaciana e de uma mãe de origem espanhola.
Sua família era de condição modesta. Ele era o segundo filho do casal: tinha um
irmão, Lucien, mais velho quatro anos. Seu pai ficou paralítico em setembro de
1914 por ter sido ferido na batalha de la Marne vindo a morrer em Saint-Brieuc
em 17 de outubro de 1914. Camus, portanto, não veio a conhecer seu pai. Desde a
mobilização de seu marido, Catherine e seus dois filhos vão se instalar na casa
de sua mãe em Alger, no bairro popular de Belcourt. Albert e Lucien serão mais
educados pela sua avó, uma professora, do que por sua mãe, que abdica ter toda
responsabilidade em razão de sua quase surdez e de uma dificuldade de falar. Na
escola, seu instrutor, Louis Germain, o motiva a participar do concurso de
bolsas: ele poderia, desse modo, prosseguir seus estudos no Liceu e na
Universidade. Camus guarda um tal reconhecimento por ele que, quando recebe o
Prêmio Nobel de Literatura em 1957, lhe escreve uma carta. Jornalista,
escritor, apaixonado por teatro, ele marca a vida cultural francesa de 1936 a
1960. Como todos os ‘Pieds-Noirs’, ele é traumatizado pela guerra da Argélia de
onde ele não verá o desenlace trágico. No dia 04 de janeiro de 1960, Camus
encontra a morte num acidente de carro. Em seu bolso, foi encontrado um bilhete
de trem referente ao mesmo trajeto, sem uso.
[6] José Saramago nasceu na aldeia ribatejana de Azinhaga, no dia 16 de
Novembro de 1922, embora o registro oficial mencione o dia 18. Seus pais
emigraram para Lisboa quando ele ainda não perfizera três anos de idade. Toda a
sua vida tem decorrido na capital, embora até ao princípio da idade madura tivessem
sido numerosas e as vezes prolongadas as suas estadas na aldeia natal. Fez
estudos secundários (liceu e técnico) que não pôde continuar por dificuldades
econômicas. Desde 1976 vive exclusivamente do seu trabalho literário. Em 1991
ganhou o Grande Prêmio APE, com o romance o Evangelho Segundo Jesus Cristo e o
Prêmio Camões em 1996 por toda a obra. Em 1998 ganha o Prêmio Nobel de
Literatura. Obras: os Poemas Possíveis [1966]; Provavelmente Alegria [1970];
Deste mundo e do Outro [1971]; A Bagagem do Viajante [1973]; As Opiniões que DL
teve [1974]; O Ano de 1993 [1975]; Os Apontamentos [1976]; Manual de Pintura e
Caligrafia [1977]; Objeto Quase [1978]; Poética dos cinco Sentidos [1979]; A
Noite [1979]; Levantado do Chão [1980]; Memorial do Convento [1982]; O Ano da
Morte de Ricardo Reis [1984]; A Jangada de Pedra [1986]; A Segunda Vida de
Machado de Assis [1987]; História do Cerco de Lisboa [1989]; Ensaio sobre a
Cegueira [1995]; Cadernos de Lanzarote [1994, 1995, 1996, 1997, 1998] Todos os Nomes
[1997].
[7] José SARAMAGO. Todos os Nomes. São Paulo : Companhia das
Letras, 1997.
[8] « L’absurde, qui est l’état métaphysique de l’homme conscient, ne
mène pas à Dieu. Peut-être cette notion s’éclaircira-t-elle si je hasarde cette
énormité: l’absurde c’est le péché sans Dieu » (CAMUS, 1998, p. 62).
[9] Dieu: “sa grandeur, c’est son inconséquence. Sa preuve, c’est son
inhumanité” (CAMUS, lendo Chestov,1998, p. 55).
[10] Harmonia do dia : alusão ao contexto da praia (em O
Estrangeiro) em que Meursault, após ter assassinado o Árabe, dá-se conta
que houvera destruído a harmonia do dia, a desgraça acabava de bater a sua
porta.
[11] A cet instant subtil où l’homme se retourne sur sa vie, Sisyphe,
revenant vers son rocher, contemple cette suite d’actions sans lien qui devient
son destin, creé par lui, uni sous le regard de sa mémoire et bientôt scellé
par sa mort. Ainsi, persuadé de l’origine tout humaine de tout ce qui est
humain, aveugle qui désire voir et qui sait que la nuit n’a pas de fin, il est
toujours em marche. Le rocher roule encore.
[...] Sisyphe enseigne la fidélité
supérieure qui nie les dieux et soulève les roches. Lui aussi juge que tout est
bien. Cet univers désormais sans maître ne lui paraît ni stérile ni futile.
Chacun des grains de cette pierre, chaque éclat minéral de cette montagne
pleine de nuit, à lui seul forme un monde. La lutte elle-même vers les sommets
suffit à remplir un coeur d’homme. Il faut imaginer Sisyphe heureux (CAMUS,
1998, p. 168).
[12] La pensée d’un homme est avant tout sa nostalgie (CAMUS, 1998, p. 71).
[13] Formará aqui possui mais o sentido de nomear.
[14] Grande Irmão, alusão se faz ao personagem central da obra, 1994, de
George Orwell.
[15] A partir du moment où elle est reconnue, l’absurdité est une passion,
la plus déchirante de toutes (CAMUS, 1998, p. 40).
[16] Je peux tout nier de cette partie de moi qui vit de nostalgies
incertaines, sauf ce désir d’unité, cet appétit de résoudre, cette exigence de
clarté et de cohésion. Je peux tout réfuter dans ce monde qui m’entoure, me
heurte ou me transporte, sauf ce chaos, ce hasard roi et cette divine
équivalence qui naît de l’anarchie (CAMUS, 1998, p. 75).
[17] Le suicide, comme le saut, est l’acceptation à sa limite. Tout est
consommé, l’homme rendre dans son histoire essentielle. Son avenir, son seul et
terrible avenir, il le discerne et s’y précipite. A sa manière, le suicide
résout l’absurde. Il l’entraîne dans la même mort. Mais je sais que pour se
maintenir, l’absurde ne peut se résoudre (CAMUS, 1998, p. 79).
[18] Vivre, c’est faire vivre l’absurde. Le faire vivre, c’est avant tout
le regarder. Au contraire d’Eurydice, l’absurde ne meurt que lorsqu’on s’en
détourne (CAMUS, 1998, p. 78).
[19] L’absurde est sa tension la plus extrême, celle qu’il maintient
constamment d’un effort solitaire, car il sait que dans cette conscience et
dans cette révolte au jour le jour, il témoigne de sa seule vérité qui est le
défi (CAMUS, 1998, p. 80).
[20] Je peux tout nier de cette partie de moi qui vit de nostalgies incertaines,
sauf ce désir d’unité, cet appétit de résoudre, cette exigence de clarté et de
cohésion. Je peux tout réfuter dans ce monde qui m’entoure, me heurte ou me
transporte, sauf ce chaos, ce hasard roi et cette divine équivalence qui naît
de l’anarchie (CAMUS, 1998, p. 75).
[21] Si la descentre ainsi se fait certains jours dans la douleur, elle
peut se faire aussi dans la joie, ce mot n’est pas de trop. J’imagine encore
Sisyphe revenant vers son rocher, et la douleur était au début. Quand les
images de la terre tiennent trop fort au souvenir, quand l’appel du bonheur se
fait trop pesant, il arrive que la tristesse se lève au coeur de l’homme: c’est
la victoire du rocher, c’est le rocher lui-même. L’immense détresse est trop
lourde à porter. Ce sont nos nuits de Gethsémani. Mais les vérités écrasantes
périssent d’être reconnues. Ainsi, Oedipe obéit d’abord au destin sans le
savoir. A partir du moment où il sait, sa tragédie commence (CAMUS, 1998, p.
166).
[22] Do grego Kairós (kairos)
= ocasião oportuna, oportunidade, época conveniente, tempo
próprio. Verbete: William Varey TAYLOR. Dicionário do Novo Testamento Grego.
Rio de Janeiro: JUERP, 1991.p.107 — Falar do Kairós é entrar no mundo do esquecimento como se viu acima. O Lógos grego aprisiona o Ser nas
fronteiras da razão memorial. Sem memória, a razão não consegue ver o visto nem
nomear algo. Ela precisa da memória, assim como o beduíno precisa do oásis para
entender a imensidão do deserto. No entanto, o Kairós revela-se como meio
de aparição das fagulhas do sagrado nas brechas do tempo. Com o Kairós o mistério reservado aos
sumo-sacerdotes ou aos iniciados é democratizado. Com ele, cuja presença revela
a ausência, não se tem a verdade do todo, como antes, na filosofia, pela proferição
da palavra, nem com a sua chegada pela a-lethéia
(verdade desvelada, sem o véu que a encobre e a reduz ao plano do
simbólico), a verdade contida no conceito ou na idéia.
[23] La prémisse kirilovienne: “Si Dieu n’existe pas, je suis dieu”.
Devenir dieu, c’est seulement être libre sur cette terre, ne pas servir un être
immortel. C’est surtout, bien entendu, tirer toutes les conséquences de cette
douloureuse indépendance. Si Dieu existe, tout dépend de lui et nous ne pouvons
rien contre sa volonté. S’Il n’existe pas, tout dépend de nous (CAMUS, 1998, p.
146).
[24] Ensaio, de 1951, que trata, igualmente, da noção de suicídio e de
absurdo.
[25] L’important n’est donc pas encore de remonter à la racine des choses,
mais, le monde étant ce qu’il est, de savoir comment s’y conduire. Au temps de
la négation, il pouvait être utile de s’interroger sur le problème du suicide.
Au temps des idéologies, il faut se mettre en règle avec le meurtre. Si le
meurtre a ses raisons, notre époque et nous-même sommes dans la conséquence.
S’il ne les a pas, nous sommes dans la folie et il n’y a pas d’autre issue que
de retrouver une conséquence ou de se détourner. (CAMUS, 1998, p. 16-17).
[26] Il y a des crimes de passion et des crimes de logique. Le Code pénal
les distingue, assez commodément, par la préméditation. Nous sommes au temps de
la préméditation et du crime parfait. Nos criminels ne sont plus ces enfants
désarmes qui invoquaient l’excuse de l’amour. Il sont adultes, au contraire, et
leur alibe est irréfutable: c’est la philosophie qui peut servir à tout, même à
changer les meurtries en juges (CAMUS, H. R. 1998: 15).
[27] Vale lembrar que a lira de Orfeu possuía nove cordas, ao contrário da
de Apolo, que possuía sete. Isto representa que Orfeu ainda estava, sob o plano
da arte, sob a inspiração das nove Musas, filhas de Zeus e Mnemósine.
[28] Diásparagmos – arte do despedaçamento iniciático.
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