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sexta-feira, 23 de agosto de 2013

A Funesta Presença de Outrem

Lourenço Leite

RESUMO
A presença de outrem, para ser funesta, deve estar encoberta de uma ausência de alteridade que somente uma consciência revoltada poderia engendrar. Albert Camus, em O Equívoco, (Le Malentendu) mais uma vez, traz em cena a problemática do absurdo escondida no cotidiano da existência sem cor, em que o sentido apenas se pretende provedor da felicidade individual. O outro, com efeito, adquire não apenas uma tonalidade de ausência, mas uma presença irremediavelmente funesta. Sua morte é anunciada antes de sua chegada. Em O Equívoco, por conseguinte, Camus destitui-se de toda herança adâmica e edênica e tenta mostrar, sob a égide da pura existência, a absurdidade da vida humana quando premedita a morte de outrem para poder salvar a si próprio. A peça de teatro O Equívoco, de Albert Camus, narra a história de um jovem que, a fim de melhorar de vida, deixa a família e retorna vinte anos depois, próspero, casado e com um filho. No intuito de fazer surpresa a sua mãe e a sua irmã, ele se hospeda sozinho na pensão que pertenciam as duas. Habituadas a assassinar os hóspedes para usufruírem seus bens e poderem comprar uma casa de praia, sem saberem que aquele se tratava do filho pródigo, decidem matá-lo, como os demais, mas são descobertas pela esposa da vítima que reivindica o seu desaparecimento. Obra de estonteante surrealismo trata da condição humana em seus meandros individuais e da solidão que desencadeia o desespero com o único intuito de se ser feliz.

RÉSUMÉ
Pour que la présence de l´autre soit funeste elle doit être recouverte d´une absence d´altération qui ne pourrait être engendrée que par une conscience révoltée.  Dans LE MALENTENDU Albert Camus met de nouveau en scène la  problématique de l´absurde cachée dans le quotidien de l´existence sans couleur où seul le sens prétend être le pourvoyeur de la félicité individuelle.  Par cet effet, l´autre acquiert non seulement une tonalité d´absence mais aussi une présence irrémédiablement funeste.  Sa morte est annoncée avant son arrivée.  En conséquence, Camus dans LE MALENTENDU se destitue de tout héritage adamique et edenique et tente montrer, sous l´égide de l´existence pure, l´absurdité de la vie humaine quand elle prémédite la mort d´une autre personne pour pouvoir se sauver.
 La pièce de théâtre d´Albert Camus LE MALENTENDU narre l´histoire d´un jeune homme qui laisse sa famille à fin d´améliorer sa vie et retourne vingt ans plus tard, prospère, marié et père d´un fils. Dans l´intention de faire une surprise à sa mère et à sa soeur, il s´auberge seul dans la pension dont elles sont propriétaires.  Ayant l´habitude d´assassiner leurs clients pour rester avec leurs biens et pour pouvoir acheter une maison en bord de mer, sans savoir qu´il s´agit du fils prodige, elles décident de le tuer, comme les autres, mais elles sont découvertes par l´épouse de la victime qui revendique son disparaissement.
Oeuvre d´un surréalisme impressionant qui traite de la condition humaine dans ses recoins particuliers et de la solitude qui provoque le desespoir ayant pour seul intuitu être heureux.



Martha: nada receie. Deixá-la-ei morrer como deseja. Parece-me que com esta dor atroz que me aperta o ventre me torno de tal maneira cega que nada vejo à minha volta. E nem a sua mãe nem a senhora nunca serão mais do que rostos fugitivos, reencontrados e perdidos no decurso de uma tragédia que não tem fim. Não sinto por vós nem ódio nem compaixão. não posso amar nem detestar ninguém. (Esconde subitamente o rosto entre as mãos.) tive tempo de sofrer e de me revoltar. A desgraça era maior do que eu
(Albert CAMUS, O Equívoco).



A
presença de outrem, para ser funesta, deve estar encoberta de uma ausência de alteridade que somente uma consciência revoltada poderia engendrar. Albert Camus, em O Equívoco, mais uma vez, traz em cena a problemática do absurdo escondida no cotidiano da existência sem cor, em que o sentido apenas se pretende provedor da felicidade individual. O outro, com efeito, adquire não apenas uma tonalidade de ausência, mas uma presença irremediavelmente funesta. Sua morte é anunciada antes de sua chegada.
Em O Equívoco, por conseguinte, Camus destitui-se de toda herança adâmica e edênica e tenta mostrar, sob a égide da pura existência, a absurdidade da vida humana quando premedita a morte de outrem para poder salvar a si próprio. A exclusão de outrem é o grande acinte perante a ética da alteridade em que o primado da lógica não cede lugar á lógica dos sentidos.
A peça de teatro O Equívoco[1] (Le Malentendu), de Albert Camus, narra a história de um jovem que, a fim de melhorar de vida, deixa a família e retorna vinte anos depois, próspero, casado e com um filho. No intuito de fazer surpresa a sua mãe e a sua irmã, ele se hospeda sozinho na pensão que pertenciam as duas. Habituadas a assassinar os hóspedes para usufruírem seus bens e poderem comprar uma casa de praia, sem saberem que aquele se tratava do filho pródigo, decidem matá-lo, como os demais, mas são descobertas pela esposa da vítima que reivindica o seu desaparecimento. Obra de estonteante surrealismo trata da condição humana em seus meandros individuais e da solidão que desencadeia o desespero com o único intuito de se ser feliz.
Paradoxo entre a liberdade e a infelicidade, Camus subentende um Deus sem fala e homens revoltados com o peso de sua existência. A revolta de não poder fugir ao destino é mostrada como a forma mais dilacerante e visceral que Camus pôde alcançar. Não se trata de uma declaração da “morte de Deus”, mas, sobretudo, de uma manifestação da “ausência de Deus” em que a revolta se torna metafísica por excelência. O esforço do homem em sobreviver fora do Éden Adâmico traça um deus, além de mudo, surdo perante sua labuta. Em O Homem Revoltado, obra prima da revolta, publicada em 1951, Camus elabora de forma filosófica a problemática dessa blasfêmia e afiança-se a Epicuro na demonstração poética da ética do absurdo como um canto de vitória sobre o mundo divinizado.
Un dieu sans récompense ni châtiment, un dieu sourd est la seule imagination religieuse des révoltés. [...] Epicure juge que, puisqu’il faut mourir, le silence de l’homme prépare mieux à ce destin que les paroles divines. Epicure: [...] “J’ai déjoué tes embûches, ô destin, j’ai fermé toutes les voies par lesquelles tu pouvais m’atteindre. Nous ne nous laisserons vaincre ni par toi, ni par aucune force mauvaise. Et quand l’heure de l’inévitable départ aura sonné, notre mépris pour ceux qui s’agrippent vainement à l’existence éclatera dans ce beau chant: Ah! que dignement nous avons vécu!” (CAMUS, 1998, p. 49).

Um deus sem recompensa nem castigo, um deus surdo é a única imaginação religiosa dos revoltados. [...] Epicuro julga que, sendo a morte inelutável, o silêncio do homem prepara melhor para esse destino do que as palavras divinas. [...] “Eu desmontei as tuas cidades, ó destino, fechei todos os caminhos pelos quais podias alcançar-me. Não nos deixaremos vencer nem por ti, nem por nenhuma força nefasta. E, quando soar a hora da inevitável partida, nosso desprezo por todos que se agarram em vão à existência irromperá neste belo canto: Ah! Com que dignidade vivemos!” (CAMUS, 1997, p. 47).
A despeito de, em O Equívoco, Camus metaforizar o inelutável destino do homem, as filhas do silêncio sofrem com a ausência do Sol. Mãe e filha são mesmo a torpe olhar, as representantes mais fidedignas da crise de ética na moderna contemporaneidade. Isoladas em seu mundo hoteleiro, Mãe e Martha engendram, não apenas os assassinatos dos hóspedes, mas, sobretudo a saída inconteste de um mundo em que nãosaída. O absurdo, como um deus ex machina da espera infindável, nãotrégua nem alivia a solidão. A dor se transforma em sofrimento e a felicidade, tanto almejada, configura-se como escrava de um destino inalcançável. O Sol camusiano é substituído pelo mar da praia; a areia pelo vento do esquecimento em que os grãos, além de fazerem cócegas nas solas dos pés, queimam-nos, dando sinal que o paraíso encontra-se alhure. A hora do esquecimento de outrem foi tecida, dia após dia, naquela estalagem da Moravia desde o momento em que o filho decidiu partir em busca de sua felicidade. Mãe e Filha, em verdade, não se prepararam para recebê-lo de volta. A preparação se deu negando toda e qualquer forma de alteridade, assumindo, portanto, uma máscara, cada uma a seu modo, de alguém que se basta a si mesmo. A presença de outrem, como ocorrera com todos os hóspedes, devera-se somente em trânsito de passagem, remetendo-as sempre para outra realidade, porém, sem fronteira metafísica alguma. Em O Mito de Sísifo pode-se perceber essa fronteira e o vazio que se instala entre o mim mesmo e a certeza da existência: “Entre a certeza que eu tenho de minha existência e o conteúdo que tento dar a essa segurança, há um vazio que nunca será preenchido. Para sempre, serei estrangeiro de mim mesmo[2] (CAMUS, 1989, p. 38).
Camus não pretendera, com essa peça, exortar nenhuma forma de aniquilamento moral. Ao contrário, visto de modo paradoxal, a presença de outrem era, desde o início, algo revelador da ausência do que se almeja. Naquele caso preciso: a felicidade está fora do hotel, isto é, o desejo toma forma em cada chegada dos hóspedes. Aqui, em O Equívoco, o outro não se configura como nenhuma ameaça. Ele é intrinsecamente a salvação. Não há, portanto, a instauração de uma paranóia defensiva. A questão não é de ordem psicopatológica. A questão é de ordem exclusivamente existencial. Por isso que só se pode interpretar o seu conjunto como algo de equívoco.
O destino houvera-nas traído por ter se deparado com o peso de uma existência incomensurável e sem esperança. “A desgraça era maior do que eu” assevera Martha. Desgraça essa que não havia se instalado em suas vidas por um destino trágico. Tudo o que acontecia em suas vidas era produto de uma tessitura existencial. Não havia nem deuses nem demônios, nem Fiandeiras nem Quimeras, tudo fora posto em consonância com os pontos dados pelas mãos de seu cotidiano na tapeçaria de seus mundos individuais. Não existira o Sol nem a Praia para se tornarem cúmplices e culpados pelas mortes por assassinato. Restou-lhes apenas a solidão sem presença alguma.  Camus transfere nessa peça todas as possibilidades de felicidade para um lugar distante e irremediavelmente inalcançável. Não é à toa que a protagonista enseja e vislumbra em seus sonhos esse lugar com seus matizes inalcançáveis:
Martha, avec agitation — Ah! mère! Quand nous aurons amassé beaucoup d’argent et que nous pourrons quitter ces terrres sans horizon, quand nous laisserons derrière nous cette auberge et cette ville pluvieuse, et que nous oublierons ce pays d’ombre, le jour où nous serons enfin devant la mer dont j’ai tant rêvé, ce jour-lá, vous me verrez sourire. Mais il faut beaucoup d’argent pour vivre devant la mer. C’est pour cela qu’il ne faut pas avoir peur des mots. C’est pour cela qu’il faut s’occuper de celui qui doit venir. S’il est suffisamment riche, ma liberté commencera peut-être avec lui (CAMUS, 1998, p. 160).

Marta, com agitação — Ah, mãe! Quando tivermos muito dinheiro e pudermos abandonar estas terras sem horizonte, quando deixarmos atrás de nós esta cidade chuvosa, e esquecermos este país de sombra, no dia em que enfim estivermos diante do mar com que eu tenho sonhado tanto, nesse dia ver-me-á sorrir! Mas, é necessário muito dinheiro para viver livre junto ao mar. É por isso que não devemos ter medo das palavras. É por isso que nos devemos preocupar com aquele de quem estamos à espera. Se ele for bastante rico, talvez que a minha liberdade comece com ele (CAMUS, 197-, p. 179-180).
O outro aqui é a virtual possibilidade de libertação onde não se , nem por hipótese, a presença de uma redenção ética. Com a sua chegada o sinistro bate a porta da desgraça e todo o processo de arrependimento invade todos os cômodos da existência de Martha e da Mãe. Além de estarem habituadas a praticarem o assassinato dos hóspedes, estão, igualmente, habituadas a se arrependerem, dia a dia, de seus atos. Paradoxo entre a moralidade dos atos e o desejo de felicidade, as protagonistas são lançadas por Camus no pântano do Éden do Absurdo. Mesmo que para elas isso seja apenas um simples equívoco. Ele não utiliza uma narrativa em que o diálogo do coro, assim como um superego, torne-se presente para relembrar-lhes às conseqüências de seus atos nem lhes apontar algo que as transcenda definitivamente. A suposta escatologia desaparece em cada novo diálogo da existência.
La Mère — Je ne sais pas. Je vois mal et je l’ai mal regardé. Je sais, par expèrience, qu’il vaut mieux ne pas les regarder. Il est plus facile de tuer ce qu’on ne connait pas. (Un temps.) Rejouis-toi, je n’ai pas peur des mots maintenant (CAMUS, 1998, p. 161).

A MãeNão sei. Como vejo mal, não reparei bem nele. Sei, por experiência própria, que é preferível não os fixar muito. É mais fácil matar o que não se conhece (pausa) Alegra-te! Agora não tenho medo das palavras (CAMUS, 197-, p. 180).
O inconsciente das protagonistas em O Equívoco é, paradoxalmente, consciente de seus atos. O simbólico é imediatamente transfigurado pelo crivo da razão, por isso: É mais fácil matar o que não se conhece. O pobre João não poderia ser reconhecido, mas, mesmo sendo, seria reduzido à categoria de hóspede. Durante os encontros que se dão na estalagem antes da noite cair com o chá fatídico, o filho é revelado em lampejos de reconhecimento pela mãe. Há, evidentemente, alguns sinais desse reconhecimento, mas Camus não pretende trair a coerência do roteiro, senão não seria um drama de teatro do absurdo em que o equívoco era o personagem principal. Contudo, ao se verificar sua extemporaneidade simbólica se pode perceber o vai e vêm de um conflito que se pretendia ambíguo, mas que a imperiosa força da existência inibe-o sem trégua. Há uma inequívoca presença do absurdo que somente um Camus poderia engendrar.
Haja vista que a ausência de moralidade nessa peça revela a sub-reptícia paradoxalidade entre a justiça e a injustiça, como se pode notar, analogamente, em outra obra de Camus, O Avesso e o Direito:
Comme tout le monde, j’ai essayé, tant bien que mal, de corriger ma nature par la morale. C´est, hélas ! ce qui m´a coûté le plus cher. Avec de l´énergie, et j´en ai, on arrive parfois à se conduire selon morale, non à être. Et rêver de morale quand on est un homme de passion, c’est se vouer à l’injustice, dans le temps même où l’on parle de justice (CAMUS, 1997, p. 27).

Como todo mundo, tentei, bem ou mal, corrigir minha natureza pela moral. Mas, pobre de mim, foi o que me custou mais caro. Com energia, e isso eu tenho, às vezes chega-se a uma conduta segundo a moral, mas não se consegue ser. E sonhar com moral, quando se é um homem de paixão, é consagrar-se à injustiça, no próprio tempo em que se fala de justiça (CAMUS, 1995, p. 30).
O conflito que se estabelece nesse drama mostra, justamente, a ausência da paixão camusiana em seus personagens. Daí não se poder ajuizar a problemática entre o que é justo e o que é injusto.  A vida de Martha e da Mãe é a prova da inexeqüibilidade da felicidade num mundo destituído de Sol. Neste, reina a névoa úmida e taciturna da existência onde os sussurros provêm apenas das falas da Mãe e da Filha confirmada pela mudez do criado.  O dia é tão silencioso quanto a noite. A noite é tão fria quanto o dia. Nãoentusiasmo dionisíaco nem êxtase algum que se possa identificar no cotidiano das hospedeiras. A única demonstração que se pode ver é a de seu filho/irmão que retorna com o coração cheio de felicidade e com os bolsos plenos de dinheiro como se representasse o funcionário da casa de apostas lotéricas com um bilhete premiado.
O filho pródigo quisera poder gritar e abrir os braços para acolher a Mãe e a Irmã, mas o seu segredo deveria perdurar por, pelo menos, uma noite. Tivera esperado tanto tempo; tivera se ausentado das duas e as deixado sozinhas na lida diária. Era preferível que depois da aurora ele anunciasse as duas que, agora, definitivamente, ele retornara. Tinha se habituado a estar e a esperar pelo reencontro.
Contudo, Camus puxa o fio do destino das duas, de Martha e da Mãe para que elas possam finalmente efetivar o paradoxo do “encontro”. A metonímia do absurdo se dá em cada avesso desse encontro. O “direitonão engendra a absurdidade da existência nem faz aparecer os reais sentimentos de inconformismo perante a própria vida. É preciso, como no ato de cozer um bordado, dar ponto sem definitivo. A estampa do tapete do absurdo se consolida em cada atitude que se torna hábito, nas consagrações das falasO Equívoco.
La Mère :— je n´y ai pas pensé. J´ai répondu par habitude. Martha — L´habitude ? Vous le savez, pourtant, les occasions ont été rares ! La Mère — Sans doute. Mais l´habitude commence au second crime. Au premier, rien ne commence, c´est quelque chose qui finit. Et puis, si les occasions ont été rares, elles se sont étendues sur beaucoup d´années, et l´habitude s´est fortifiée du souvenir. Oui, c´est bien l´habitude qui m´a poussée à répondre, qui m´a avertie de ne pas regarder cet homme, et assurée qu´il avait le visage d´une victime (CAMUS, 1998, p. 161).

A Mãe — Não é justo dizeres-me que pensei... mas o hábito tem uma grande força... Marta — O hábito? Mas a mãe foi a primeira a dizer que as ocasiões têm sido raras... A Mãe — Sem dúvida, mas o hábito começa ao segundo crime. Com o primeiro, nada começa: é, antes, qualquer coisa que finda. E, além disso, se têm sido raras as ocasiões, elas têm-se prolongado por muitos anos — e o hábito fortaleceu-se com a recordação. Sim, foi de facto o hábito que me obrigou a responder a este homem, que me advertiu que o não olhasse, que me garantiu que ele tinha uma expressão de vítima (CAMUS, 197-, p. 181).
Assim como o crime se reifica[3] com a recordação, seu avesso põe-se em garantia de vida e de reencontros. De um lado Camus utiliza a recordação para fortificar o crime e justificá-lo; de outro, faz de João, o pródigo da ausência, rememorado de todo seu passado e, com isso, redime-o no presente. O mores cultural em ambos os casos adquire sentido simbólico para além de si mesmo. A felicidade está alhures, mesmo que seus agentes estejam aqui e agora.
Em igualdade de condições, o homem contemporâneo se põe a caminho entre esses dois pólos: um, que reivindica a lembrança para matar, outro que a evoca para viver e ser feliz. Numa polissemia de desejos e de palavras, nenhum dos personagens possui a capacidade de estabelecer um tipo de interlocução com a diferença de outrem. Ambos dirigem-se para um Éden sem o outro. O paraíso perdido agora se torna achado numa consciência sem pátria e sem augures. O isolamento da solidão permeia tanto os sentimentos quanto os raciocínios de uma lógica sombria. É chegada a hora da execução de um tipo de homem sem destino. Seu traço de presença deixou-se invadir por um futuro sem passado. E Martha, a representante mor de uma denúncia camusiana perante a injustiça do mundo, definha-se pouco a pouco, esperando poder ainda sorrir pela vida fora de seu quarto. A Mãe, como o ex machina, traz ao palco da existência de Martha a metafísica do Sol que redimiria a ambas:
La Mère — Je n´y suis pas allée, tu le sais. Mais on m´a dit que le soleil dévorait tout. Martha — J´ai lu dans un livre qu´il mangeait jusqu´aux âmes et qu´il faisait des corps resplendissants, mais vidés par l´intérieur. La Mère — Est-ce cela, Martha, qui te fait rêver ? Martha — Oui, j´en ai assez de porter toujours mon âme, j´ai hâte de trouver ce pays où le soleil tue les questions. Ma demeure n´est pas ici (CAMUS, 1998, p. 163-164).

A MãeBem sabes que nunca de aqui saí... Mas têm-me dito que sim, que o sol devora tudo. Martha — Li num livro que o sol até devora as almas, e que torna os corpos resplandecentes, e vazios por dentro. A Mãe — E é isso, Martha, o que te faz sonhar? Martha — Sim, é que estou cansada do peso da minha alma, e anseio por encontrar o país onde o Sol mata todas as perguntas. O meu lugar não é aqui  (CAMUS, 197-, p. 183-184).
O Sol camusiano curtido nos vilarejos da Argélia é o desejo de Martha e da Mãe que vislumbram em sua imaginação o Éden do Sol ao desempenharem suas vidas como atrizes, porém subsidiadas pelo Metteur en Scène solar que está sempre presente atrás dos bastidores desse teatro do absurdo.
Alhures, ela poderá experimentar de uma vez por todas o resplandecente brilho de seu corpo opaco e esvaziar sua lúgubre alma. Nesse lugar, o que conta é o fora. A consciência pesada e cansada das duas irá se aliviar quando houver chegado a hora do encontro. O arrependimento cederá lugar ao prazer sem culpa e o riso se tornará presente para sempre.
A filha representa, nesse equívoco da inteligência, o futuro sem passado, daí a grande dor no presente de sua existência. A Mãe, conquanto, representa o presente sem futuro carregando a dor do passado. Ambas possuem uma fissura incurável porque herdaram em seus corpos a marca indelével de um vazio extremo (uma, o passado e a outra, o futuro) em que a melancolia se finca no presente e toma assento. A Mãe se basta com o sono e o esquecimento enquanto que a filha com a vigília e as lembranças eternas.
La Mère — Auparavant, hélas ! nous avons beaucoup à faire. Si tout va bien, j´irai, bien sûr, avec toi. Mais moi, je n´aurai pas le sentiment d´aller vers ma demeure. A un certain âge, il n´est pas de demeure où le repos soit possible, et c´est déjà beaucoup si l´on a pu faire soi-même cette dérisoire maison de briques, meublée de souvenirs, où il arrive parfois que l´on s´endorme. Mais naturellement, ce serait quelque chose aussi, si je trouvais à la fois le sommeil et l´oubli (CAMUS, 1998, p. 164).

A MãeAntigamente, ai de nós, tínhamos muito que fazer. Se tudo correr bem, eu irei com certeza ter contigo. Mas quanto a mim... não terei a sensação de quem encontrou o lugar que queria. Quando se chega à minha idade, nãolugar onde o repouso seja possível, e é muito bom que tenhamos, à nossa custa, construído esta ridícula casa de tijolo, mobilada (mobiliada[4]) de recordações, onde às vezes ainda é possível adormecer. Mas, é claro que seria uma bela coisa se eu pudesse encontrar ao mesmo tempo o sono e o esquecimento (CAMUS, 197-, p. 184).
Em sua aparente ambigüidade, a peça, O Equívoco, embora seja protagonizada por duas realidades humanas, com efeito, representa um tipo de homem. Como no mito, Camus engendra a dicotomia do homem para poder metaforizar a dualidade humana. Ao se remeter, a título de exemplo, ao mito de Prometeu, poder-se-á perceber que, tanto o filantropo da humanidade, como seu irmão Epimeteu, ambos representam o homem em vias de civilização e de conhecimento. Em O Equívoco, Mãe e Filha representam, a partir desse ponto de vista, o homem em crise de ética na tardia contemporaneidade moderna. De um lado, justificando suas faltas em nome da lógica, de outro, justificando-as em nome da ausência de outrem. É como se a individualidade não tivesse nenhuma responsabilidade por seus atos morais e tudo pudesse ser justificado. Consciência e Liberdade dar-se-ão impressão que prescinde de toda e qualquer alteridade. O que importa é a vida cotidiana como se estivesse sendo vivida no Éden perdido. O Éden não pressupõe outrem. A casa de praia desejada pelas duas será habitada de forma individual. A tolerância da presença de outrem ocorre somente no âmbito da espera do novo Éden. Desde que ele se realize, o outro é suprimido. Mesmo que esse outro seja Mãe ou Filha. Os demais, por sua vez, que não se encontram nesse âmbito, podem, desde , ser assassinados. Suas mortes não são provenientes de crimes de sangue nem crimes de vingança, são reais possibilidades de se poder alcançar a paruzia terrena. que Deus, em suas relações humanas, estabelece predileção por uns e deixam outros de fora. Com isso, a justiça divina é injusta. Analogamente, poder-se-ia identificar a injustiça divina na tragédia bíblica de Caim e Abel. [5]
[...] Abel tornou-se pastor de ovelhas e Caim cultivava o solo. Passado o tempo Caim apresentou produtos do solo em oferenda a Iahweh; Abel, por sua vez, também ofereceu as primícias e a gordura de seu rebanho. Ora, Iahweh agradou-se de Abel e de sua oferenda. Mas não se agradou de Caim e de sua oferenda, e Caim ficou muito irritado e com o rosto abatido. Iahweh disse a Caim: “Por que estás irritado e por que teu rosto está abatido? Se estivesses bem disposto, não levantarias a cabeça? Mas se não estás bem disposto não jaz o pecado à porta, como animal acuado que te espreita; podes acaso dominá-lo?” Entretanto Caim disse a seu irmão Abel: “Saiamos”. E, como estavam no campo, Caim se lançou sobre seu irmão e o matou.
Iahweh disse a Caim: “Onde está teu irmão Abel?” Ele respondeu: “Não sei. Acaso sou guarda de meu irmão?” Iahweh disse: “Que fizeste! Ouço o sangue de teu irmão, do solo, clamar para mim! Agora, és maldito e expulso do solo fértil que abriu a boca para receber de tua mão o sangue de teu irmão. Ainda que cultives o solo, ele não te dará mais seu produto: serás um fugitivo errante sobre a terra”. Então Caim disse a Iahweh: “Minha culpa é muito pesada para suportá-la. ! Hoje tu me banes do solo fértil, terei de ocultar-me longe de tua face e serei um errante fugitivo sobre a terra: mas o primeiro que me encontrar me matará!” Iahweh lhe respondeu: “Quem matar Caim será vingado sete vezes”. E Iahweh colocou um sinal sobre Caim, a fim de que não fosse morto por quem o encontrasse. Caim se retirou da presença de Iahweh e foi morar na terra de Nod, a leste de Éden (BIBLIA, 1995, p. 36-37).
As Filhas de Caim foram habitar a leste do Éden, numa pousada soturna, todavia, assim como Caim, não se davam conta mais da presença de Abel, ou seja, de outrem, mesmo depois de tê-lo assassinado por inveja. Por conseguinte, reconhece-se em uma das falas da Mãe (O EQUÍVOCO) o estigma dessa “Queda”: [...] “Já não me preocupo com as palavras, tudo me é indiferente. A verdade é que, com um só gesto, esgotei tudo. Perdi a liberdade, começou o meu inferno” [6] (CAMUS, 197-, p. 267).
O momento ético inicia-se aí quando há a negação do outro e se instala uma orfandade divina. Assim como “Caim, a primeira revolta coincide com o primeiro crime”. De agora em diante “é ao deus pessoal que a revolta pode pedir pessoalmente uma prestação de contas (CAMUS, 1997, p. 49). Errante como Caim, o homem de nossos dias constrói seu novo Éden e todos os seus crimes transformam-se em atos justificados e, como bem afirma Camus, “evoca a inocência para se justificar” e faz da “história da revolta, tal como a vivemos atualmente, muito mais a dos filhos de Caim do que a dos discípulos de Prometeu”.
Com efeito, em O Equívoco, Camus demonstra que a história da revolta se inicia com a perda da liberdade da Mãe e o início do seu inferno na consciência. Doravante, o vazio encontrado na vida de Martha e da Mãe não deve deixar de pressupor, além da transcendentalidade ética, igualmente, a falta de amor. Se se pudesse escatologizar o cotidiano das duas, certamente que o primeiro perfume transcendental da existência iria embevecê-las de amor. Através de Maria, a esposa de João, Camus insere esse aroma nos cômodos da estalagem: “Quando se ama, deixa-se de sonhar” (CAMUS, s.d., p. 95). E, através do filho pródigo, traz, inclusive, de volta, a possibilidade de ser feliz, fora do exílio. João, esse filho, passa a ser o contraponto da revolta sem amor, aliás, do ressentimento vivido pela Mãe e pela Irmã, em que não se identifica nenhuma saída quando se planta a árvore da vida no solo de um cotidiano sem o húmus primordial, quando afirma: […] “não se pode ser feliz no exílio ou no esquecimento. Não se pode continuar toda a vida um estranho. [7] Se é certo que todo o homem precisa de felicidade, não é menos certo que também necessita de encontrar a sua definição [8] (CAMUS, 197-, p. 195-196).
Aliado ao retorno de João, Camus reintegra o amor de a Mãe como se quisesse restaurar o amor das relações originárias e carnais, deixando a pobre coitada Martha em seu próprio labirinto de desilusões amorosas.
La Mère — (...) Je ne suis plus assez jeune pour m’en arranger. Et de toute façon, quand une mère n’est plus capable de reconnaître son fils, c’est que son rôle sur la terre est fini. La Mère, de la même voix indifférente. —  Oui, mais, moi, je viens d’apprendre que j’avais tort et que sur cette terre où rien n’est assuré, nous avons nos certitudes. (Avec amertume.) L’amour d’une mère pour son fils est aujourd’hui ma certitude (CAMUS, 1998, p. 226).

A Mãe: — [...] Já não tenho idade para suportar estas coisas. E, seja como for, quando uma mãe já não é capaz de reconhecer o seu filho, então é porque o seu papel na Terra terminou. A Mãe, com a mesma voz indiferente: — Isso prova que há forças inegáveis num mundo em que tudo se pode negar e que nesta terra em que nada é seguro, também temos as nossas certezas (Com amargura). O amor de uma mãe pelo seu filho é agora a minha única certeza  (CAMUS, 197-, p. 265).
Num mundo em que tudo se pode negar, ou seja, nada se pode afirmar, o absurdo se torna onipresente. Não há, portanto, nenhum refúgio existencial que não seja a morte. A radicalidade de Camus é estonteante diante da vida, o seu avesso, certamente é verdade. Todavia, retira do cotidiano de Mãe e Filha os interstícios da vida que, apesar de revelarem um sinal de absoluto, não deixa fluir o élan que reintegra a existência. Perpassar o cotidiano da existência, para Camus, somente é possível pela presença do Sol. Sem Ele, a vida não tem sentido, nem cheiro e nem sabor. Em O Equívoco ele é substituído pelo amor, mas que nãomais lugar de se expandir por se ter perdido a experiência da inter-relação composta pela alteridade. A hora do chá, em lugar de confraternização, assume o rito de passagem para a morte. O amor, portanto, resta frustrado e não produz nenhum fruto. A esterilidade de Eros sem o ventre fecundo de Géia se dissipa e evapora no ar da noite silenciosa. O desejo pelo mundo se torna enfadonho e não se pode mais perceber as filigranas impregnadas nas paredes do dia-a-dia em que tudo toma corpo e forma. Em O Avesso e o Direito, Camus demonstra esse incansável desejo do mundo em que, se realizado, pode sorver o verdadeiro néctar da existência:
Si une angoisse encore m’étreint, c’est de sentir cet impalpable instant glisser entre mes doigts comme les perles du mercure. Laissez donc ceux qui veulent tourner le dos au monde. Je ne me plains pas puisque je me regarde naître. A cette heure, tout mon royaume est de ce monde. Ce soleil et ces ombres, cette chaleur et ce froid qui vient du fond de l’air: vais-je me demander si quelque chose meurt et si les hommes souffrent puisque tout est écrit dans cette fenêtre où le ciel déverse la plénitude à la rencontre de ma pitié. Je peux dire et je dirai tout à heure que ce qui compte c’est d’être humain et simple. Non, ce qui compte, c’est d’être vrai et alors tout s’y inscrit, l’humanité et la simplicité. Et quand donc suis-je plus vrai que lorsque je suis le monde? Je suis comblé avant d’avoir désiré. L’éternité est là et moi je l’espérais. Ce n’est plus d’être heureux que je souhaite maintenant, mais seulement d’être conscient (CAMUS, 1997, p. 117-118).

Se uma angústia ainda me oprime, é por sentir esse impalpável instante escorrer por entre meus dedos, como as partículas de mercúrio. Deixem, pois, aqueles que querem dar as costas ao mundo. Não me queixo porque me vejo nascer. Neste momento, todo o meu reino é desse mundo. Este sol e estas sombras, este calor, e este frio que vem do fundo do ar: devo perguntar-me se algo morre e se os homens sofrem, que tudo está escrito nesta janela na qual o céu derrama a plenitude ao encontro de minha piedade. Posso dizer, e vou dizê-lo daqui a pouco, que o que conta é ser humano e simples. Não, o que conta é ser verdadeiro, e, então, tudo se inscreve nisso, a humanidade e a simplicidade. E, então, quando sou mais verdadeiro do que quando sou o mundo ? Sou presenteado antes de ter desejado. A eternidade está ali, e eu esperava por ela. Agora, não desejo mais ser feliz, e sim apenas estar consciente (CAMUS, 1995, p. 107-108).
A plenitude da humanidade camusiana, se devidamente vivida, além de dar vertigens no espírito, causa calafrios na alma. Entretanto, torna o homem inserido no mundo de forma inigualável e sua felicidade, outrora almejada como utopia do devir, passa a se realizar em plenitude. Não é mais preciso desejar. Como a eudaimonia aristotélica, o homem temperante encontra-se saciado. Contrariamente, ao se deslocar para uma de suas extremidades, seja para a animalidade natural, seja para a suposta divindade, insere-se em estado de carência ou de transbordamento. Ser humano, portanto, para Camus, é estar consciente no reino da simplicidade.
No entanto, Martha não se pretende consciente em sua démarche egoísta. Ela não almeja se tornar mundo nem espera que o mundo a acolha. Seu mundo não é dali nem das praias do mediterrâneo. Em verdade, a experiência dela reflete apenas a limitação de um lugar sem pátria que se mostra apenas através de uma imaginação anuviada pela dor de uma espera interminável. Sua experiência não é de vida, mas de morte. Ela aprendeu a morrer a cada dia na espera. Resta-lhe apenas desejar a vida que nunca tivera.
Martha — [...] Si vous êtes fatiguée de votre vie, moi, je suis lasse à mourrir de cet horizon fermé, et je sens que je ne pourrai pas y vivre un mois de plus. Nous sommes toutes deux excédées de cette auberge, et vous, qui êtes vieille, voulez seulement fermer les yeux et oublier. Mais moi, qui me sens encore dans le coeur un peu des désires de mes vingt ans, je veux faire en sorte de les quitter pour toujours, même si, pour cela, il faut entrer un peu plus avant dans la vie que nous voulons déserter. Et il faut bien que vous m´y aidiez, vous qui m´avez mise au monde dans un pays de nuages et non sur une terre de soleil ! (CAMUS, 1998, p. 192).

Marta — Dirigindo-se a mãe: […] Se a mãe se sente cansada de viver, eu por mim estou farta de morrer neste horizonte fechado, não poderei viver aqui nem mais um mês. Ambas desejamos ver-nos livres desta pousada, e a mãe, que está velha, não pensa senão em fechar os olhos e esquecer. Mas eu, que ainda sinto no coração um resto dos desejos dos meus vinte anos, vou fazer uma tentativa para deles me livrar e para sempre, ainda que para isso necessário seja ir um pouco mais avante na vida de que desejávamos fugir. E é preciso que a mãe me ajude, a mãe, que me deu à luz num país de nuvens e não numa terra de sol (CAMUS, 197-, p. 221).
Desse modo, sua consciência é implacável perante todo homem que revele algum tipo de inocência, como aquela do viajante. O outro, seu irmão/hóspede, deflagra uma revolta sem medidas, mas, a bem da verdade do estilo camusiano, denota muito mais um ressentimento individual. Contudo, como se trata de uma atitude paradoxal, esse mesmo ressentimento possui o sinete da revolta metafísica. Martha não admite ter vivido daquela maneira. Além de ser destituída de Sol, foi impedida de amar e ser desejada como mulher. Seu ventre não fora fertilizado por nenhum homem nem seu desejo materno fora incentivado. Tornou-se, a contra gosto, imaculada do desejo humano e não pode admitir a felicidade que seu irmão adquiriu. Ele tivera tudo e ela nada. Matá-lo, portanto, não implica num crime, muito menos em nenhum castigo:
Martha — Tout ce que la vie peut donner à un homme lui a été donné. Il a quitté ce pays. Il a connu d´autres espaces, la mer, des êtres libres. Moi, je suis restée ici. Je suis restée, petite et sombre, dans l´ennui, enfoncée au coeur du continent et j´ai grandi dans l´épaisseur des terres. Personne n´a embrassé ma bouche et même vous, n´avez vu mon corps sans vêtements. Mére, je vous le jure cela doit se payer. Et sous le vain prétexte qu´un homme est mort, vous ne pouvez vous dérober au moment où j´allais recevoir ce qui m´est dû. Comprenez donc que, pour un homme qui a vécu, la mort est une petite affaire, nous pouvons oublier mon frère et votre fils. Ce qui lui est arrivé est sans importance : il n´avait plus rien à connaître. Mais moi, vous me frustrez de tout et vous m´ôtez ce dont il a joui. Faut-il donc qu´il m´enlève encore l´amour de ma mère et qu´il vous emmène pour toujours dans sa rivière glacée ? (CAMUS, 1998, p. 229).

Martha — Tudo o que a vida pode dar a um homem lhe foi dado. Deixou este país, conheceu outros horizontes, o mar, seres livres. Eu fiquei aqui. Fiquei no tédio, pequena e sombria, mergulhada no coração do continente e cresci na estreiteza das terras. Nunca ninguém beijou a minha boca e nem mesmo a mãe viu o meu corpo nu. Juro-lhe, mãe, isso deve ser pago. E sob o vão pretexto de que um homem está morto não pode desembaraçar-se de mim no momento em que vou receber o que me é devido. Tem de compreender que, para um homem que viveu, a morte pouca importância tem. Podemos ambas esquecer o meu irmão e seu filho. O que lhe aconteceu não foi grande coisa: ele não tinha mais nada a conhecer. Mas a mim, a mãe impede-me de tudo, priva-me de tudo aquilo que ele gozou. Será preciso ainda que ele me roube o amor de minha mãe e a arraste na sua ribeira gelada? (CAMUS, 197-, p. 268-269).
A autonomia de Martha se iguala somente à liberdade divina. Ela se sente uma deusa. Seu sofrimento não pudera ter sido em vão. Seus crimes não significam nada diante da dor da solidão que tivera sentido ao longo de sua existência. Deus não tivera a devida misericórdia que Lhe fora atribuída. Estava com a sua sina ditada pela injustiça do mundo e a divina. Ora, se a felicidade pudera ter sido alcançada pelo seu irmão que não a merecera, ela, que sofrera a falta dessa necessidade, não poderia ser julgada nem impedida de completar sua última tentativa, que era a de caminhar numa praia ensolarada. Essa especulação de moralidade é fundamentada por Camus em O Homem Revoltado quando afirma o niilismo do homem frente à negação de Deus.
Dès l’instant où l’homme soumet Dieu au jugement moral, il le tue en lui-même. Mais quel est alors le fondement de la morale? On nie Dieu au nom de la justice, mais l’idée de justice se comprend-elle sans l’idée de Dieu? Ne sommes-nous pas alors dans l’absurdité? C’est l’absurdité que Nietzsche aborde de front. Pour mieux la dépasser, il la pousse à bout: la morale est le dernier visage de Dieu qu’il faut détruire, avant de reconstruire. Dieu alors n’est plus et ne garantit plus notre être; l’homme doit se déterminer à faire, pour être (CAMUS, 1998, p. 87).

A partir do instante em que o homem submete Deus ao juízo moral, ele o mata dentro de si mesmo. Mas qual é então o fundamento da moral? Nega-se Deus em nome da justiça, mas a idéia de justiça pode ser compreendida sem a idéia de Deus? Não nos achamos desse modo no absurdo? É com o absurdo que Nietzsche se defronta. Para melhor superá-lo, ele o leva a extremos: a moral é a última face de Deus que deve ser destruída, antes que se comece a reconstrução. Deus não mais existe e não garante mais nossa existência; o homem deve ter a determinação de fazer para existir (CAMUS, 1997, p.  82).

Se o homem deve ter a determinação de fazer para existir, Martha o faz, mas não atinge a completude própria de sua necessidade, por não ter vivido à beira do mar nem ter sido queimada pelo Sol. Sua vida, não obstante tenha sido em vão, reflete uma experiência do absurdo em que Camus se aproveita para desabafar os últimos soluços de sua alma. A subjetividade de Martha é inimaginavelmente preenchida pelo objeto de seu desejo que não se realizou, mas deixou sua marca de presença. O absurdo fora traduzido em sua alma pequena, porém grande de sentimentos. Ela pudera auscultar o silêncio na mudez do Universo em sua volta; pudera esperar na calada da noite seu amante que nunca viera, mas que deixara sua presença desnudada em sua alcova imaculada. Aprendera os balbucios do absurdo cujas sonoridades ajudaram-na a decodificá-los nos instantes indeléveis de sua solidão. Fora cúmplice de seu amado sem ter tido o privilégio de tê-lo em seus braços. Mas ele dormira e ofegara em seu colo deixando-a inerte nas noites de sua visita. Somente desse modo se pode compreender porque Camus coloca na boca de Martha um dos maiores diálogos existênciais descritos na literatura do Século XX:
Martha — Non! Je n’avais pas à veiller sur mon frère, et pourtant me voilà exilée dans mon propre pays; ma mère elle-même m’a rejetée. Mais je n’avais pas à veiller sur mon frère, ceci est l’injustice qu’on fait à l’innocence. Le voilà qui a obtenu maintenant ce qu’il voulait, tandis que je reste solitaire, loin de la mer dont j’avais soif. Oh! Je le hais. Toute ma vie s’est passé dans l’attente de cette vague qui m’emporterait et je sais qu’elle ne viendra plus! Il me faut demeurer avec, à ma droite et à ma gauche, devant et derrière moi, une foule de peuples et de nations, de plaines et de montagnes, qui arrêtent le vent de la mer et dont les jacassements et les murmures étouffent son appel répété. (Plus bas.) D’autres ont plus de chance! Il est des lieux pourtant éloignés de la mer où le vent du soir , parfois, apporte une odeur d’algue. Il y parle de plages humides, toutes sonores du cri des mouettes, ou de grèves dorées dans des soirs sans limites. Mais le vent s’épuise bien avant d’arriver ici; plus jamais je n’aurai ce qui m’est dû. Quand même je collerais mon oreille contre terre, je n’entendrais pas le choc des vagues ou la respiration mesurée de la mer heureuse. Je suis trop loin de ce que j’aime et ma distance est sans remede. Je le hais, je le hais pour avoir obtenu ce qu’il voulait! Moi, j’ai pour patrie ce lieu clos et épais où le ciel est sans horizon, pour ma faim l’aigre prunier de ce pays et rien pour ma soif, sinon le sang que j’ai répandu. Voilà le prix qu’il faut payer pour la tendresse d’une mère! Qu’elle meure donc, puisque je ne suis pas aimée! Que les portes se referment autour de moi! Que les me laisse à ma juste colère! Car, avant de mourir, je ne lèverai pas les yeux pour implorer le Ciel. Là-bas, où l’on peut fuir, se délivrer, presser son corps contre un autre, rouler dans la vague, dans ce pays défendu par la mer, les dieux n’abordent pas. Mais ici, où le regard s’arrête de tous côtés, toute la terre est dessinée pour que le visage se lève et que le regard supplie. Oh! Je hais ce monde où nous en sommes réduits à Dieu. Mais moi, qui souffre d’injustice, on ne m’a pas fait droit, je ne m’agenouillerai pas. Et privée de ma place sur cette terre, rejetée par ma mère, seule au milieu de mes crimes, je quitterai ce monde sans être réconciliée (CAMUS, 1998, p. 231-233).

Martha : Não ! Não me competia velar pelo meu irmão e, no entanto, eis-me exilada no meu próprio país ; nãolugar para o meu sono, pois até a minha mãe me repudiou. Mas não me competia velar pelo meu irmão, e é que está a injustiça feita à inocência. Ele acaba de conseguir o que desejava, ao passo que eu fico sozinha, longe do mar por que ansiava. Odeio-o ! Passei toda a minha vida à espera desta onda que me levaria e agora sei que ela nunca mais voltará ! Sou obrigada a ficar, à direita e à esquerda, diante e atrás de mim, com uma multidão de povos e nações, de planícies e montanhas, que detêm o vento do mar e cujos gritos e murmúrios abafam o seu repetido apelo. (Mais baixo) Outros têm mais sorte ! Há lugares que, apesar de afastados do mar, têm às vezes durante a noite um perfume de algas trazidas pelo vento. Um vento que fala de praias úmidas, plenas do grito das gaivotas e das areias doiradas das noites infindáveis. Mas antes de chegar aqui o vento cansa-se muito, jamais terei aquilo a que tenho direito. Ainda mesmo que encoste o ouvido à terra, não ouvirei o embate das ondas geladas ou a respiração cadenciada do mar feliz. Estou demasiado longe do que amo e esta minha distância não tem remédio. Odeio-o ! Odeio-o por ter alcançado o que eu desejava. Eu, eu tenho por pátria este lugar fechado e estreito onde o céu não tem horizontes e onde me dão para matar a fome uma ameixa azeda da Morávia e para sede, nada, nada, a não ser o sangue que derramei. É este o preço dado em troca da ternura de uma mãe ! Que ele morra, pois, visto que não sou amada! Que as portas se fecham em volta de mim! Que me deixem entregue à minha cólera justa! Porque, antes de morrer, não levantarei os olhos a implorar aos céus. Nesse país onde se pode fugir, ser-se livre, apertar o corpo contra um outro corpo, rolar sobre as ondas — nesse país defendido pelo mar, os deuses não tem entrada. Mas aqui, onde o olhar esbarra por todos os lados, a terra inteira está desenhada para que o rosto se levante e o olhar mendigue... Oh! Como odeio este mundo em que estamos reduzidos a Deus! (grifos do autor) Mas eu, eu que sofro de injustiça, eu que não tive aquilo a que tinha direitonão me ajoelharei! Privada do meu lugar sobre a Terra, repudiada por minha mãe, sozinha no meio dos meus crimes, deixarei este mundo sem me ter reconciliado (CAMUS, 197-, p. 272-273).
A revolta de Martha ultrapassa os umbrais de sua pousada e a insere no plano da universalidade excluída em que somente o justo olhar encontra explicação. De tal sorte, sua expressão: “odeio este mundo em que estamos reduzidos a Deus!” Encontra abrigo no pensamento helênico de Epicuro quando constata queonde o humano é humano, os deuses não têm entrada”. Martha empreende o desafio de sobreviver radicalmente sem deuses. O mesmo tom trágico e irredutível de Antígona[9]. Inclusive sua sede não fora saciada a não ser pelo sangue que houvera derramado. Dera-se conta que a vingança da natureza houvera iniciado e não pudera mais retornar aos seus sonhos de Mar e Sol. As gotículas impregnadas de cheiro de algas trazidas pelo vento não viriam mais lhe fazer companhia. Se antes o vento se cansara no caminho, agora ele não fará nem mais tilintar os pêndulos das horas.
Martha jaz em vida e sua Mãe vive seu inferno. Tanto uma como outra são punidas pela fatídica injustiça. Não necessitam da morte para expurgarem suas dores nem seus crimes. Não lhes fora dado à possibilidade de reconciliação. E estavam sós. Camus demonstra que, efetivamente, nãojustiça no mundo. Se ela existe, deverá habitar em terras estrangeiras. Jamais no além mar da escatologia do mundo onde moram os deuses.
As prisões construídas por Camus nessa peça possuem limítrofes intransponíveis. A segurança é máxima, não se pode escapar. Tudo deve ser resolvido dentro de seus muros. Se Camus não aponta nenhuma saída escatológica, não confirma também nenhuma entrada na esfera da metafísica do absurdo. O que se pode perceber nesse âmbito é a revolta metafísica, como se demonstrou anteriormente. Tudo, portanto, é reduzido ao nada, desde quando não se tenha o Sol como presença. O outro, que como presença inviabiliza a realização de Martha e da Mãe, é morto antes de se instalar, isto é, antes de se revelar como outrem. A diferença, por ser diferença da identidade das duas, serve apenas de trampolim para a realização de seu desejo. No entanto, desde que se desvele a trama dessa conspiração, a identidade perde força e se esvai em sua própria existência. Não é à toa que Maria, pronuncia a fatídica expressão para Martha quando toma conhecimento do desaparecimento de seu marido: “Não se morre assim quando se espera alguém (CAMUS, 197-, p. 277). Mas Martha nãotrégua aos seus últimos momentos de rejeição e de solidão e se faz presente de novo em sua revolta causticante.
Martha, avec violence. — Taisez-vous ! Je ne veux plus entendre parler de lui, je le déteste. Il ne vous est plus rien. Il est entré dans la maison amère où l´on est exilé pour toujours. L´imbécile ! il a ce qu´il voulait, il a retrouvé celle qu´il cherchait. Nous voilà tous dans l´ordre. Comprenez que ni pour lui ni pour nous, ni dans la vie ni dans la mort, il n´est de patrie ni de paix. (Avec un rire méprisant.) Car on ne peut appeler patrie, n´est-ce pas, cette terre épaisse, privée de luimière, où l´on s´en va nourrir des animaux aveugles (CAMUS, 1998, p. 242-243).

Marta, com violência — Cale-se! Não quero ouvir falar mais dele, porque o detesto. Ele não lhe é nada; entrou nessa casa sombria onde se fica exilado para sempre. O imbecil! Tem o que desejava, encontrou o que procurava. Eis-nos todos dentro da ordem. Saiba que, nem para ele nem para nós, nem na vida nem na morte, existe pátria ou paz. (Com um riso escarninho.) Porque não se pode chamar pátria a esta terra estreita, privada de luz, onde damos de comer a animais cegos  (CAMUS, 197-, p. 284).
O que realmente Martha esperava não eram seu irmão nem nenhum hóspede. Ela esperava pela chegada do seu desejo. O marido de Maria, por ironia do destino, houvera se interposto entre elas e o Mar. O equívoco, portanto, de João foi achar que pudera penetrar num labirinto sombrio em que nãosaída. Nele, fica-se exilado para sempre. O retorno do filho pródigo revive a alegoria platônica do homem que vivera numa caverna e decidira partilhar com os seus semelhantes, o que vira na exterioridade do mundo de outrora. Depois da tortura efetuada pelos seus, a conseqüência é a inevitável morte. Entretanto, para Martha, apesar de ter sempre estado naquele fundo sinistro da caverna, pôde sentir de de dentro os raios do Sol que proviam de fora. Sem poder utilizar-se da razão platônica para impregnar-se do real, lança mão de sua imaginação e se perde nas alturas incomensuráveis de seu desejo. O vazio de sua existência não pudera lhe remeter ao Mundo em que vivem as esperanças e a felicidade. Contudo, admite que Maria crie em um Deus que poderia transmutá-la e fazê-la resignar-se de uma morte irremediável. Quanto a ela, Martha, sua punição fora eterna. Daí sua prerrogativa em poder se revoltar plenamente contra a vida que houvera vivido; contra Deus que demonstrara predileção pelos seus filhos; contra a Mãe que a rejeitara ao longo de toda a sua jornada. Em estado de desvario, conclama todos esses algozes para vir em socorro de Maria, a esposa desesperada, depois de saber do assassinato de seu amado:
Martha — [...] Priez votre Dieu qu´il vous fasse semblable à la pierre. C´est le bonheur qu´il prend pour lui, c´est le seul vrai bonheur. Faites comme lui, rendez-vous sourde à tous les cris, rejoignez la pierre pendant qu´il en est temps. Mais si vous vous sentez trop lâche pour entrer dans cette paix muette, alors venez nous rejoindre dans notre maison commune. Adieu, ma soeur ! Tout est facile, vous le voyez. Vous avez à choisir entre le bonheur stupide des cailloux et le lit gluant où nous vous attendons (CAMUS, 1998, p. 243).

Marta — […] Peça ao seu Deus que a faça semelhante à pedra. É a felicidade que ele toma para si, a única felicidade verdadeira. Faça como Ele, torne-se surda a todos os gritos, regresse à pedra enquanto é tempo. Mas se se sente demasiado covarde para entrar nessa paz obscura, então venha juntar-se a nós na nossa casa comum. Adeus, minha irmã! Tudo é fácil, como vê. Terá de escolher entre a estúpida felicidade das pedras e o leito escorregadio em que a esperamos (CAMUS. 197-, p. 285).

A implacabilidade de Martha frente à dor de Maria era para mostrar o seu absoluto descontentamento com a injustiça do mundo em que se é reduzida a Deus. Se Maria realmente houvera experimentado o prazer do amor, agora em diante, deveria, obrigatoriamente, experimentar a dor de sua ausência. Quem tivera podido ter em vida essa felicidade não poderia sequer lamentar uma perda, mesmo que ela fosse de seu amor. E, diante dos últimos instantes de desespero, Camus, através de Martha, pretende dar algum sentido a existência fora da ordem conduzindo-a ao suicídio. Consoante ainda Camus, a única justificativa do suicídio seria o testemunho da vida que se vivera. Ao contrário, o suicídio encontraria justificativa além da morte. Em O Homem Revoltado essa problemática adquire uma prerrogativa de cunho filosófico:

D’une certaine manière, l’homme qui se tue  dans la solitude préserve encore une valeur puisque, apparemment, il ne se reconnaît pas de droits sur la vie des autres. La preuve en est qu’il n’utilize jamais, pour dominer autrui, la terrible force et la liberté que lui donne sa décision de mourir; tout suicide solitaire, lorsqu’il n’est pas de ressentiment, est, en quelque endroit, généreux ou méprisant. Mais on méprise au nom de quelque chose. Si le monde est indifférent au suicidé, c’est que celui-ci a une idée de ce qui ne lui est pas ou pourrait ne pas lui être indifférent. On croit tout détruire et tout emporter avec soi, mais de cette mort même renaît une valeur qui, peut-être, aurait mérité qu’on vécut (CAMUS, 1998, p. 19).


De uma certa maneira, o homem que se mata na solidão preserva ainda um valor, que aparentemente ele não reivindica para si nenhum direito sobre a vida dos outros. Prova é que ele nunca utiliza, para dominar o outro, a terrível força e a liberdade que a sua decisão de morrer lhe dá; todo suicídio solitário, quando não há ressentimento, é generoso ou desdenhoso. Mas desdenha-se em nome de alguma coisa. Se o mundo é indiferente ao suicida, é porque este tem uma idéia daquilo que não lhe é ou poderia não lhe ser indiferente. Acredita-se tudo destruir e levar tudo consigo, mas dessa própria morte renasce um valor que talvez tivesse justificado a vida (CAMUS, 1997, p. 17).

Finalmente, após reduzir todos os personagens à existência pura, Camus torna público o apelo desesperado de Maria ao Deus que sempre estivera presente, contudo mudo.
Maria, dans um cri — Oh! mon Dieu! Je ne puis vivre dans ce désert ! C´est à vous que je parlerai et je saurai trouver mes mots. (Elle tombe à genoux.) Oui, c´est à vous que je m´en remets. Ayez pitié de moi, tournez-vous vers moi ! Entendez-moi, donnez-moi votre main ! Ayez pitié, Seigneur, de ceux qui s´aiment et qui sont séparés ! La porte s´ouvre et le vieux domestique paraît. LE VIEUX, d´une voix nette et ferme. Vous m´avez appelé ? Maria, se tournant vers lui. — Oh ! je ne sais pas ! Mais aidez-moi, car j´ai besoin qu´on m´aide. Ayez pitié et consentez à m´aider ! LE VIEUX, de la mêmem voix. — Non ! (CAMUS, 1998, p. 244-245).

Maria, num gritoOh, meu Deus, não posso viver neste deserto! É a Vós que eu falarei, e saberei encontrar as minhas palavras. (Cai de joelhos.) É a Vós que eu me entrego. Tende piedade de mim. Velai por mim. Escutai-me, Senhor, dai-me a Vossa mão. Tende piedade dos que se amam e estão separados. (A porta abre-se e o velho aparece.) O velho, numa voz nítida e firme — Chamou-me? Maria, voltando-se para eleOh, não sei! Mas ajude-me, preciso de alguém que me ajude. Tenha piedade, dê-me a sua ajuda. O Velho[10], no mesmo tomNão! (CAMUS, 197-, p. 286).
A inumanidade deste Deus perante o desespero da amada abandonada nos apresenta um Camus de extrema imparcialidade. A noite fria e úmida houvera instalado naquele dia a atrocidade de Deus. E todos estavam sós. A piedade requerida por Maria não encontra nenhum eco, mesmo se se tratasse de um pequeno e efêmero gesto do velho criado. No rastro de sua lógica dos sentidos, não se poderia ouvir da boca do Velho, mesmo que em sussurros, qualquer forma de aquiescência frente ao desespero humano refletido em Maria. Todas as manifestações do Velho ao longo dos atos de O Equívoco apontam, justamente, para uma presença muda e surda que não pudera, em nenhum instante, acenar para uma interlocução. Esse Deus poderia ser Um deus sem recompensa nem castigo, um deus surdo é a única imaginação religiosa dos revoltados” [11] (CAMUS, 1997, p. 47).
O Velho é a autêntica forma camusiana de pressupor a Deus, sem, contudo, integrá-Lo no mundo nem responsabilizá-Lo dos atos humanos. Se Ele dita ou concebe princípios éticos como fizera com os eleitos hebreus, no deserto em rumo à terra prometida, ali, naquela estalagem do mundo da Moravia, todos os personagens são Filhos de Caim. Com eles não há, necessariamente, a preocupação com a garantia da imortalidade. “Ela é fútil”, como afirma André Nicolas (1966, p. 24).  Em face dessa realidade, a pressuposta ajuda divina, esperada em o final de O Equívoco, contrariaria, a grosso modo, todo tipo de soerguimento humano que não proviesse de sua própria humanidade. Desse modo, Nicolas contesta em juízo o apelo de Maria: “o que poderia significar a oração, senão a traição das únicas certezas que temos em favor da suprema injustiça?” (1966, p. 22).
Mesmo porque, nem “a injustiça divina poderia atenuar a injustiça humana”. Não se trata, como se viu anteriormente, de uma saída crítica. O absurdo camusiano possui uma conotação psicológica e, conseqüentemente, ontológica. O fato de sua dessacralização perpassar sua revolta, não implica, contrariamente, que ele se renda em algum momento a uma ajuda divina. O absurdo em sua obra é somente absurdo, porque resiste a toda prova de racionalidade que reduz o mundo e o homem a uma ordem de justiça plena.


REFERÊNCIAS

  1. CAMUS, Albert. Caligula suivi de le malentendu. Paris : Gallimard, 1998.
  2. CAMUS, Albert. Calígula / O Equívoco. Tradução de Ersílio Cardoso. Lisboa : Edições Livros do Brasil, 197-.
  3. BÍBLIA DE JERUSALÉM. São Paulo: Paulus, 1985.
  4. CAMUS, Albert. O avesso e o direito. Tradução de Valerie Rumjanek. Rio de Janeiro: Record, 1995.
  5. CAMUS, Albert. L’envers et l’endroit. Paris : Gallimard, 1997.
  6. CAMUS, Albert. O homem revoltado. Tradução de Valerie Rumjanek. Rio de Janeiro: Record, 1997.
  7. CAMUS, Albert. L’homme Révolté, essai. Paris : Gallimard, 1998.
  8. CAMUS, Albert. Le mythe de Sisyphe. Paris : Gallimard, 1998.
  9. CAMUS, Albert. O mito de sísifo: ensaio sobre o absurdo. Rio de Janeiro: Record, 2004.
  10. NICOLAS, André. Albert camus ou le vrai prométhée. France : Éditions Seghers, 1966.




[1] O Equívoco foi representado pela primeira vez em 1944, no “Théatre des Mathurins”, com encenação de Marcel Herrand, no papel de João e Maria Casares, no de Marta.
[2] Entre la certitude que j’ai de mon existence et le contenu que j’essaie de donner à cette assurance, le fossé ne sera jamais comblé. Pour toujours, je serai étranger à moi-même (CAMUS, 1998, p. 36).
[3] Reifica — qualquer processo em que uma realidade social ou subjetiva de natureza dinâmica e criativa passa a apresentar determinadas características - fixidez, automatismo, passividade - de um objeto inorgânico, perdendo sua autonomia e autoconsciência.
[4] Nota do autor.
[5] Depois da revolta do Homem contra Deus vem a luta do Homem contra o Homem, a que se oporá o duplo mandamento que resume a Lei, o amor a Deus e ao próximo — Mt 22, 40 (BÍBLIA DE JERUSALÉM, 1995, p. 36-37).
[6] La Mère — Je dis ce qui me vient à la bouche, rien de plus. Ah! j’ai perdu ma liberté, c’est l’enfer qui a commencé! (CAMUS, 1998, p. 227).
[7] Jan — (...) on ne peut pás être heureux dans l´exil ou dans l´oubli. On ne peut pas toujours rester un étranger (CAMUS, 1998, p. 173).
[8] Esta última frase não se encontra no texto original.
[9] Antiantígona — é uma expressão conferida à Martha pela orientadora de tese de doutorado, Profª Antonia Herrera, em um dos encontros com o autor.
[10] Velhoalusão à Deus (N. do A.).
[11] Un dieu sans récompense ni châtiment, un dieu sourd est la seule imagination religieuse des révoltés. (CAMUS, 1998, p. 49).

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