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domingo, 25 de agosto de 2013

Núpcias com o Humano

NÚPCIAS COM O HUMANO



 Lourenço Leite


         O Paradoxo da Ausência de Outrem, fundamentado na literatura do argelino Albert Camus (*1913 +1960), aborda o problema ético da indiferença do homem perante o outro, a partir das ruínas da sociedade moderna do Pós-Guerra.
O leitmotiv[1] do pensamento de Albert Camus é o “Absurdo” e o “Solcomo paroxismos da realidade existencial do homem no mundo. A interpretação e o entendimento do absurdo em suas obras são possíveis se for inserido o Sol do Mediterrâneo como fundamento ontológico[2]. Metonímia do Absurdo, o Sol penetra nas entranhas dos seus personagens e, ao invés de causar pathos[3] diante do real, estupora-os e deixa-os a mercê do acaso. Com efeito, “natureza” e “condição humana” se fundem em uma única realidade, imprimindo no homem uma identidade que sempre estivera almejada, mas que a racionalidade toupeira, como denomina Camus, em Núpcias, houvera estilhaçado.
A literatura camusiana não constrói altares de culto aos deuses nem aos heróis; não elabora discursos retóricos em prol da verdade; não cria Quimeras nem Esfinges que coloquem em risco a sobrevivência dos transeuntes da existência; não fortifica as ideologias totalitárias nem as ditas democráticas; não escreve tratados da existência como manuais de sobrevivência na selva da urbanidade moderna; não faz escatologia da existência humana para agradar ao Vaticano; não prega o Evangelho Segundo São Paulo; não promete a salvação eterna em troca de dízimos diários; não defende a construção do Novo Éden nos Jardins do Paraíso Terrestre; não antropomorfiza Deus; não categoriza o “realnos moldes da razão cartesiana nem da kantiana; não promete salvação para o homem como mérito da existência; não registra em cartório humano a felicidade como herança; não espera que a inocência seja justificada perante os crimes de lógica; não adere a nenhuma doutrina que mostre a causa da peste; não se filia a nenhum partido que prometa acabar com a miséria no mundo; não aceita as injustiças do mundo nem a justiça divina para garantir a justiça. Todavia, possui a mesma confiança de Prometeu[4] no homem.
Ao elaborar as prerrogativas do absurdo vividas em sua época, conduz a humanidade a refletir sobre a verdade que estava presa na ignorância. Não é por acaso que ele elege dois heróis gregos para poderem expressar sua indignação diante da redução do humano às divindades. Prometeu, filiado ao partido da existência humana e Sísifo, condenado eterno do cotidiano que, em meio à tarefa de repetição, supera seus algozes divinos. Juntamente com esses heróis Camus traz de volta a esperança perdida das “primaveras do mundoem que o homem era humano. Quiçá, seja o maior desafio de sua obra: ser a porta voz da humanidade sem voz, daquela que geme no silêncio de suas falas o mais profundo e fiel sentimento de revolta contra a usurpação da vida que pode ser recuperada graças à presença do Sol.
A real possibilidade para Albert Camus firmar matrimônio com o cotidiano é, estar em núpcias com o humano. Conseqüentemente, o presente transforma-o em prisioneiro e o torna consciente, paradoxalmente, sem esperar por uma libertação, tal como a retrata André Nicolas, um dos comentadores mais expressivos da obra camusiana. Visto desse modo, podem-se identificar as núpcias de Camus em sua obra Núpcias[5]:
[...] É em realizar sua condição de homem e poder exercer seu papel como tal; de poder desempenhar sua tarefa a termo quando as circunstâncias se apresentam; de poder atingir a felicidade. Então, as núpcias com o mundo dão: “uma alegria estranha, esta mesma alegria que nasce de uma consciência tranqüila
(NICOLAS: 1966).
A realização desse enlace com o mundo, portanto, faz de Camus, muito mais que um homem de seu tempo, um homem que transpõe as barreiras de sua atualidade quando retorna ao próprio mundo em que está inserido e revigora-o sob a égide da pura existência, isto é, sob o Sol. Como testemunha de uma época em que o homem está em profunda crise de identidade, Camus brota dos escombros de uma sociedade esvaziada de valores e impregnada de silogismos individualistas em que até a inocência é evocada a se justificar, como bem afirma em O Homem Revoltado.
Um dos interesses de Camus perante a crise de ética, dentre outras, constatada na tardia contemporaneidade moderna, é saber o que o homem contemporâneo anseia em meio à ausência da transcendentalidade histórica e existencial. Como agir sem a presença de algo ou de alguém que sustente os paradigmas da Ética? Tem-se a impressão que esse argelino encontra-se à deriva da existência, correndo riscos de ser capturado pelo destino trágico[6]. Todavia, jamais se esmerou na busca de uma transcendência escatológica. Contudo, a despeito de seu notório ateísmo e do traço fatídico de sua morte, Camus não deve ser incluído no panteão da incredulidade abSoluta nem num tipo de ceticismo exacerbado, nem tampouco preso às amarras da espontaneidade tecidas pelanatura[7]. Camus, em verdade, é revoltado pela absurdidade da vida. Ele procura, assim como todo homem do Século XX, uma moral que lhe permita suportar a vida. Devido a isso, soube, de maneira original e coerente, ser fiel em suas Núpcias com o Humano.
Ir, portanto, à procura de uma Ética da Existência sob os moldes camusianos, não poderia ser algo Solipsista, porém, uma atitude de profundo reconhecimento da alteridade. Mesmo porque, em meio à perda de valores, estar-se-ia atento a não se perderem as virtudes que engrandecem o homem de qualquer época e lugar. Em Núpcias, uma das suas primeiras obras mais pungentes sobre a vida, Camus, sob influência do pensamento nietzschiano[8], define essa situação da bancarrota dos valores em um extrato desta obra:
[...] où sont les vertus conquérantes de l’esprit? Le même Nietzsche les a énumérées comme les ennemis mortels de l’esprit de lourdeur. Pour lui, ce sont la force de caractère, le goût, le “monde”, le bonheur classique, la dure fierté, la froid frugalité du sage. Ces vertus, plus que jamais, sont nécessaires et chacun peut choisir celle qui lui convient. Devant l’énormité de la partie engagée, qu’on n’oublie pas en tout cas la force de caractère. Je ne parle pas de celle qui s’accompagne sur les estrades électorales de froncements de sourcils et de menaces. Mais de celle qui résiste à tous les vents de la mer par la vertu de la blancheur et de la sève. C’est elle qui, dans l’hiver du monde, préparera le fruit (CAMUS, 1998, p.114-115).

[...] onde estão as virtudes conquistadoras do espírito? O próprio Nietzsche enumerou-as como sendo as inimigas mortais daquele espírito lerdo. Para ele, tais virtudes são a força de caráter, o gosto, o “mundo”, a felicidade clássica, a dura nobreza da alma, a frugalidade fria do sábio. Essas virtudes, mais do que nunca, são necessárias; e cada qual pode escolher aquela que lhe convém. Diante da enormidade da parcela engajada, não esqueçamos em todo caso a força de caráter. Não me refiro àquela que se faz acompanhar, sobre as tribunas eleitorais, de sobrancelhas franzidas e de ameaças. Mas à que resiste a todos os ventos do mar pela virtude da brancura e da seiva. Porque esta é a que preparará o fruto no inverno do mundo. (CAMUS, 1979, p.  91)
Por conseguinte, muito embora, em obras como O Estrangeiro e A Queda, Camus expresse certa indiferença pelo outro, sua narrativa é, sobretudo paradoxal, assim como o próprio fato de existir sem se saber qual o verdadeiro sentido da existência. Ou, de outro modo, como se pode verificar na interpretação que ele dá da “morte de Deus”, através das idéias embutidas na literatura de Dostoievski[9], marcadamente na fala de Smierdiákov[10], Camus realça o problema: [...]se Deus não existe, não há virtude e ela é inútil” (DOSTOIEVSKI, 1971, p. 440).
Ora, se o mundo não tem sentido algum, se o real é algo tão absurdo que ultrapassa a compreensão humana, por que se deve buscar um sentido para o agir que justifique uma Ética? Assim como Nietzsche e Hegel[11], Camus quer iniciar uma compreensão da vida e uma demonstração da sobrevivência do homem a partir da “morte de Deus”. Vê-se, na transcrição abaixoO Homem Revoltado, a chancela desse ponto de partida:
Dieu mort, restent les hommes, c’est-à-dire l’histoire qu’il faut comprendre et bâtir. Le nihilisme, qui, au sein de la révolte, submerge alors la force de création, ajoute seulement qu’on peut la bâtir par tous les moyens. Aux cimes de l’irrationnel, l’homme, sur une terre qu’il sait désormais Solitaire, va joindre les crimes de la raison en marche vers l’empire des hommes. Au “je me révolte, donc nous sommes”, il ajoute, méditant de prodigieux desseins et la mort même de la révolte: “Et nous sommes seuls (CAMUS, 1998, p. 135).”

Morto Deus, resta a humanidade, quer dizer, a história, que é preciso compreender e construir. O niilismo, que, no próprio seio da revolta, afoga então a força de criação, acrescenta apenas que se pode construí-la por todos os meios disponíveis. No auge do irracional, o homem, em uma terra que ele sabe ser de agora em diante Solitária, vai juntar-se aos crimes da razão a caminho do império dos homens. Ao “eu me revolto, logo existimos”, ele acrescenta, tendo em mente prodigiosos desígnios e a própria morte da revolta: “E estamos sós” (CAMUS, 1997, p. 128).
Seria realmente necessário repensar uma ética para o homem contemporâneo, já que Deus está morto e tudo é permitido? Evidentemente que a Ética de Princípios ainda perpassa as atitudes individuais, mas por conter pressupostos de conduta situacional, de mais a mais se torna inoportuna e moralista, principalmente quando o contexto histórico é profundamente marcado pelo liberalismo econômico oriundo do século XIX, tendo sido fortificado pela revolução industrial inglesa. Camus está inserido em um contexto moderno com profundas características individualistas. Nasce (1913) no prenúncio da I Grande Guerra Mundial (quando perde seu pai Lucien Camus), cresce e é educado num país ocupado pelo colonialismo francês e se torna adulto engajado no momento da II Grande Guerra Mundial, chegando a participar de grupos de resistência, como um “maqui” urbano, na época da ocupação de Paris pelos nazistas.
Entretanto, além de ser um conspirador da contra ocupação, Camus, quando da instauração e popularização do existencialismo, insere-se como uma luva na tarefa da conscientização social. É muito provável que esse atributo tenha contribuído para que a Rive Gauche francesa o considerasse como a inovação literário-filosófica do Pós-Guerra. Henri Lefebvre, ao categorizar e analisar as implicações da “onda” existencialista acaba contribuindo no entendimento do engajamento, seja do literato, seja do filósofo, em sua obra de 1946, L´Existencialisme (LEFEBVRE, 1946, p. 10):
A situação social do escritor: o escritor tende a uma certa consciência social. Ele “tende”, mas esta tendência se depara com inúmeros obstáculos. O escritor e o filósofo vivem entre as palavras, entre as formas do pensamento e do estilo que lhe são sempre transmitidos com a aparênciadesprezoem relação a suas condições. O escritor e o filósofo estão à procura de uma forma, de uma técnica, de um estilo e quando eles encontram, passa a serseuestilo, “suaforma, dos quais se sentem proprietários e pelos quais eles dão umvalorliterário e maior mercadoria. O conteúdo, a experiência social, os acontecimentos, o objeto da expressão passam a pertencer a todos; a forma, contudo, é individual; ela faz a originalidade de cada um.
O estilo de Camus nesse contexto transforma-o em um dos mais originais e respeitados escritores das letras francesas, como afirma Sartre em seu Réquiem para Camus:
Ele representava neste século, e contra a História, o herdeiro actual desta longa linha de moralistas cujas obras constituem o que há talvez de mais ori­ginal nas letras francesas. O seu humanismo insistente, estreito e puro, austero e sensual, travava um combate duvidoso contra os acontecimentos maciços e disfor­mes deste tempo. Mas, inversamente, pela firmeza da sua recusa; (sic.) ele reafirmava, no coração da nossa época, contra os adeptos do Maquiavel, contra o vitelo de ouro do realismo, a existência do facto moral (SARTRE, 1972, p. 110-113).
Diante do quadro histórico em que o homem é estilhaçado pelas bombas da estupidez humana e pela tirania do poder econômico, cabe, ainda que de modo extemporâneo, revoltar-se diante dessa absurdidade. Resta, para o homem, não mais uma Ética de Princípios legada pela filosofia platônico-aristotélica ou pelo imperativo categórico kantiano, mas uma ética que se forma na simultaneidade dos fatos. Camus, como filho das tensões mundiais, torna-se profeta da humanidade sem voz e desmascara a absurdidade de sua época. Haja vista a confirmação disso quando da proferição do discurso na Academia Sueca de Letras em 1957, pela entrega do prêmio Nobel de Literatura:
Pendant cent cinquante ans, les écrivains de la société marchande, à de rares exceptions près, ont cru pouvoir vivre dans une heureuse irresponsabilité. Ils ont vécu, en effet, et puis sont morts seuls, comme ils avaient vécu. Nous autres, écrivains du xx siècle, ne serons plus jamais seuls. Nous devons savoir au contraire que nous ne pouvons nous évader de la misère commune, et que notre seule justification, s’il en est une, est de parler, dans la mesure de nos moyens, pour ceux qui ne peuvent le faire (CAMUS, 1997, p. 56).

Durante cento e cinqüenta anos os escritores da sociedade mercadológica, com raras exceções, creram poder viver em uma irresponsabilidade tranqüila. Com efeito, eles viveram, porém, morreram sozinhos, assim como viveram. Quanto a nós, escritores do Século XX, nunca estaremos totalmente sós. Devemos saber, ao contrário, que não podemos nos evadir da miséria comum e que nossa única justificativa, se é que há, seria de falar, na medida do possível, por aqueles que não podem fazer (T. do A).
Além disso, vale ressaltar que a Filosofia da Existência do pós-guerra estava em seu apogeu e Camus, premido em meio ao mundo intelectual daquela época, brotara como um dos seus representantes. Todavia, vale assinalar, mesmo que através de um olhar pouco heterodoxo, o depoimento de Charles Moeller ao pretender cristianizar Camus (1958 p.23-24):
Ignoro como Albert Camus pôde embarcar na canoa do existencialismo. O desenrolar dos anos a partir de quarenta e cinco deve ter contribuído alguma coisa para isso. Nessa época bastava escrever as palavras "absurdo" e "disparate" para ser incluído no bando heteróclito conduzido pelo patriarca do café de Flora[12].
Agora o fato compreende-se melhor. O autor da A Peste recusou formalmente fazer parte da pretensa escola de Sartre. Este declarou por sua vez nada haver de comum entre o seu pensamento e o de Camus. Os leitores atentos poderiam ter notado, antes destes esclarecimentos, que o absurdo não é in­teiramente o ponto de partida do autor de Calígula. Uma obra que começa com Núpcias, não dá, que eu saiba, um som especialmente desesperado. A única alusão, e ainda assim im­plícita, que faz Camus à obra de Sartre, limita-se a uma frase do Mythe de Sisyphe[13] sobre "o fastio que se apodera do homem diante do absurdo da vida".
Quero acreditar que Sartre se interessa verdadeiramente pelo homem, e que, fazendo-nos atravessar vastas regiões "nauseabundas", nos leva enfim a um terreno firme. Mas es­crever que "o homem é uma paixão inútil", que "o inferno são os outros", que a dialética do amor se reduz a um eterno conflito entre "masoquismo e sadismo", situam um autor num universo espiritual diferente de Camus, que terminou o seu maior livro [A Peste] com estas linhas:
Em meio aos gritos que redobravam de intensidade e duração, repercutindo longamente até junto do terraço, à medida que as girândolas multicoloridas se erguiam mais numerosas no céu, o doutor Rieux reSolveu compor este relato que aqui termina, para não ser daqueles que se calam, para testemunhar em favor desses pestíferos, para deixar ao menos uma recordação da injustiça e da violência que lhes tinham sido feitas e para dizer sim­plesmente o que se aprende nos flagelos que “há nos ho­mens mais coisas a admirar do que a desdenhar [14].
O homem do pós-guerra europeu quer agir exclusivamente norteado por uma Ética de Ocasião[15], ou seja, com uma Ética que se encaixe em cada situação sem conter o teor das recorrências nem, sobretudo, das precedências. Ele não é mais responsável por repetir em cada situação semelhante um ato moral que pressuponha uma universalidade ética.
Com efeito, Camus (1981, p. 1427), apesar de não se considerar um filósofo, questiona e reflete sobre essa problemática com uma envergadura de um grande pensador filosófico, mesmo que não tenha sido. Seja através de seus romances, seja através de suas peças de teatro ou mesmo através de seus contos e ensaios.
Je ne suis pas un philosophe. Je ne crois pas assez à la raison pour croire à un systeme. Ce qui m’interesse, c’est de savoir comment il faut se conduire. Et plus précisement comment on peut se conduire quand on ne croit ni en Dieu ni en la raison (CAMUS, 1981, p. 1427).

Eu não sou um filósofo. Não creio suficientemente na razão para crer em um sistema. O que me interessa, é saber como devemos nos comportar. E, mais precisamente, como devemos nos comportar quando não se acredita nem em Deus nem na razão. (T. do A.)
Dilacerado pela guerra da Argélia, ele experimentou o sabor da violência e da injustiça, da Solidão do exílio, mas também o prazer da vitória, mesmo que amargo. Inserido em um mundo dividido por Árabes e Colonizadores, Camus não pretende apenas encontrar uma saída para o totalitarismo pela via das ideologias de esquerda de sua época. Sua atitude e seu engajamento serão mais de revolta contra tudo que escraviza o homem. Definindo-se a si próprio, Camus afirma: “Cresci no mar e a pobreza me foi faustosa; depois, quando perdi o mar, todos os luxos passaram a ter para mim aparência opaca e a miséria tornou-se intolerável [16] (1997, p.132).
A Solidão vivida, portanto, por Camus, não seria a Solidão que o homem contemporâneo experimenta diante da existência? Desvelar essa ausência e o absurdo da indiferença diante de outrem é tarefa, não apenas especulativa e hermenêutica, mas necessária para quem quer transformar a Ética do Absurdo numa Estética da Existência. A exemplo disso constata-se em uma passagem de Núpcias uma reflexão de Camus por ele mesmo:
Bien entendu, un certain optimisme n’est pas mon fait. J’ai grandi, avec tous les hommes de mon âge, aux tambours de la première guerre et notre histoire, depuis, n’a pas cessé d’être meurtre, injustice ou violence. Mais le vrai pessimisme, qui se rencontre, consiste à renchérir sur tant de cruauté et d’infamie. Je n’ai jamais cessé, pour ma part, de lutter contre ce déshonneur et je ne hais que les cruels. Au plus noir de notre nihilisme, j’ai cherché seulement des raisons de dépasser ce nihilisme. Et non point d’ailleurs par vertu, ni par une rare élévation  de l’âme, mais par fidelité instinctive à une lumière où je suis né et où, depuis des millénaires, les hommes ont appris à saluer la vie jusque dans la souffrance. Eschyle est souvent désespérant; pourtant, il rayonne et réchauffe (CAMUS, 1998, p. 148-149).

Indubitavelmente meu caso não é o daqueles que possuem certa espécie de otimismo. Cresci, assim como todos os meus contemporâneos, ao som dos tambores da Primeira Guerra; e em nossa história, desde então, jamais deixaram de estar presentes o homicídio, a injustiça ou a violência. Contudo, quando se encontra o verdadeiro pessimismo, este consiste em levar ainda mais longe tanta crueldade e tanta infâmia. No que me diz respeito, nunca deixei de lutar contra essa desonra e jamais odiei senão os homens cruéis. Na fase mais negra de nosso niilismo, sempre busquei tão-somente razões que nos levassem a ultrapassar esse niilismo. Aliás, não apenas por virtude, tampouco por uma rara elevação da alma, mas por fidelidade instintiva àquela luz onde nasci e onde, há milhares de anos, os homens têm aprendido a saudar a vida, mesmo no sofrimento. Ésquilo muitas vezes nos faz desesperar; no entanto, outras vezes, seu resplendor nos reanima (CAMUS, 1997, p. 117).
Camus, além de demonstrar fidelidade ao seu tempo é, igualmente, fiel às suas origens, mesmo que de forma instintiva. Aliás, somente instintivamente poderia testemunhar sua fonte de vida (O Sol). Viveu e aprendeu a suportar a dor, junto com seus compatriotas, sem deixar que ela se tornasse um contínuo sofrimento, porque a presença estonteante do Sol era a própria presença da vida em sua espontaneidade. Mas para isso era preciso aprender a falar sobre ela. Ao contrário de sua herança familiar, Camus aprende a falar por eles, tal como testemunha seu mestre e amigo Jean Granier em um dos resumos da vida desse argelino:


É importante conhecer sua infância. A linguagem fora para ele uma conquista: seu tio era quase mudo; sua mãe quase não falava; sua avó se utilizava apenas da linguagem corrente... Albert Camus quis falar por eles. As leituras, os estudos foram para ele uma revolução: ele teve pela linguagem o respeito e o amor que é dedicado ao sagrado (T. do A.).
Vitimado pela tuberculose [17], muito jovem, Camus, em meio ao desabamento de seu universo familiar, depara-se com a literatura algérienne française e começa a formar, em torno dos seus vinte anos, seu estilo enquanto esteta e aprendiz da filosofia impregnada da idéologie méditerranéenne [18].
Philippe Chailan, em referenciando a biografia de Camus, resume uma de suas influências, quiçá, uma das mais proeminentes:
A descoberta de NIETZSCHE e de DOSTOÏEVSKI.
O contato com Grenier é prolongado do fato que Camus, por causa da tuberculose, deve estudar em dobro no curso de filosofia[19]. Além disso, naquele momento, Camus liderava um círculo de amigos que se reuniam nos cafés de CasLah, o famoso bairro popular de Alger. Nesta época, quando ele lia os místicos como a espanhola Stª Tereza d´Ávila (1515-1582), lia, igualmente, a Bhagavad, isto é, um poema filosófico indiano, escrito em sânscrito, que é um dos fundamentos da filosofia hindu.
Em seu manual de filosofia ele descobre Nietzsche; ele lia, igualmente, a Bíblia e o romancista russo Dostoïevski, grande pintor das angústias e da culpabilidade humanas (2001).
Muito embora tenha sofrido com a tuberculose, Camus não se deixa sucumbir pelo peso da contingência humana. Embevecido pelo Sol de sua terra se fortifica com os sais minerais da literatura universal e pode, com isso, chegar a Paris.
 Distanciado de sua terra originária e “originante” (sempre presente), Camus, em Paris, quando do pós-guerra, elabora a síntese de uma época moderna e consegue publicar esses retratos contemporâneos em que se refletem protagonistas vivendo sob efeitos do anonimato de um tipo de sociedade individualista.
A ilustração disso poder-se-ia, ao se ler A Queda, de Camus, deparar-se com uma situação que, por analogia, consegue-se facilmente constatar na contemporaneidade (moderna). Desse modo, enveredar-se-ia à procura do fundamento desse tipo de indiferença da sociedade individualista como um problema filosófico. A despeito de sua configuração, como se nota em A Queda, estar pautada na concepção bíblica do Pecado Original, Camus, apesar de não fazer teologia dessa culpa original, reconhece-a como marca indelével do humano. Por isso, o protagonista d´A Queda no mundo hodierno é um homem, não mais à procura, mas construtor do novo Éden[20].
Camus, desse ponto de vista, além de narrar a Solidão gerada pela falta de valores primordiais, empenha-se num trabalho de interpretação da absurdidade verificada no mundo. Por conseguinte, demarca a crise, genialmente em suas obras, como se fosse o “porta voz” da humanidade exilada no mundo paralelo à existência. Em vista disso, poder-se-ia valer de um dos testemunhos sobre Camus, mesmo que provindo de um encontro efêmero entre ele e Eugène Ionesco.
Eu penso em Camus : tive somente pouco conhecimento de Camus. Falei-lhe apenas uma, duas vezes, no máximo. No entanto, sua morte deixa em mim um vazio enorme. Precisamos tanto desse tipo de justo. Ele era naturalmente imbuído da verdade. Ele não se deixava levar pela corrente; ele não era um cata-vento; ele poderia ser um ponto de referência (IONESCO, 1962) [21].
A autenticidade de Camus, além de deixar marcas em seus encontros casuais, engendrara um testemunho de compromisso com a vida humana. Em Camus não havia e não há negação de outrem, contrariamente ao ocorrido com o homem edênico dos dias atuais.
Com efeito, vive-se, uma ausência do outro enquanto outro, uma cegueira de princípios éticos, uma idolatria do indivíduo, uma supervalorização da razão cartesiana[22], uma “perda” de responsabilidades, uma liberdade sem ética; uma estética às avessas em que o primado do narcisismo não evoca mais o mistério, e, para não pretender elencar tudo, uma felicidade erroneamente hedonista, assim como foi interpretada a de Epicuro. Além de Camus retomar a estrutura paradigmática da Tragédia Grega em suas obras, retoma um filão do pensamento helênico que ainda não fora suficientemente explorado: o hedonismo epicurista.
Com Epicuro, o grande momento ético da filosofia grega, a Ética é revisitada, não para se retornar aos fundamentos míticos nem aos fundamentos socráticos, aqueles da tradição dos conceitos universais que não mais atendia aos anseios profundos do homem grego, assim como descreve Camus, em O Homem Revoltado:
Les Grecs n’ont jamais fait de la pensée, et ceci nous dégrade par rapport à eux, un camp retranché. La révolte, après tout, ne s’imagine que contre quelqu’un. La notion du dieu personnel, créateur et donc responsable de toutes choses, donne seule son sens à la protestation humaine. On peut dire ainsi, et sans paradoxe, que l’histoire de la révolte est, dans le monde occidental, inséparable de celle du christianisme. Il faut attendre en effet les derniers moments de la pensée antique pourvoir la révolte commencer à trouver son langage, chez des penseurs de transition, et chez personne plus profondément que chez Epicure et Lucrèce (CAMUS, 1998, p. 47-48).

Os gregos jamais fizeram do pensamento, e isso nos degrada em relação a eles, uma praça forte. Afinal, a revolta só se imagina contra alguém. A noção do deus pessoal, criador e, portanto, responsável por todas as coisas dá por si só um sentido ao protesto humano. Pode-se dessa forma, e sem paradoxo, dizer que a história da revolta, no mundo ocidental, é inseparável da história do cristianismo. É preciso esperar, na verdade, os últimos momentos do pensamento antigo para ver a revolta começar a encontrar a sua linguagem, entre os pensadores de transição, e em ninguém de maneira mais profunda do que nas obras de Epicuro e Lucrécio (CAMUS, 1997, p. 45-46).
A propósito de Epicuro, Camus pretende demonstrar através de sua doutrina que o homem é capaz de viver sem as divindades propugnadoras do destino[23]. Contudo, faz-se necessário que ele, o homem, como indivíduo livre, possa desviar-se[24] da determinação do Cosmo.
Analogamente, por contraposição, à concepção epicurista, o homem contemporâneo se encontra diante de uma realidade existencial que se esvaziou de sentidos, muito embora ele vivencie um conglomerado simbólico que se apresenta repleto deles. Porém, de sentidos que são interpretados pela sua “lógica do mesmo”, em oposição à “lógica da alteridade”. Lógica esta que fora igualmente criticada por André Breton, já em seu Manifesto do Surrealismo de 1924 e que imprimira em Camus elementos preponderantes:
Ainda vivemos sob o império da lógica, eis , bem entendido, onde eu queria chegar. Mas os procedimentos lógicos, em nossos dias, se aplicam à reSolução de problemas secundários. O racionalismo abSoluto que continua em moda não permite considerar senão fatos dependendo estreitamente de nossa experiência. Os fins lógicos, ao contrário, nos escapam. Inútil acrescentar que à própria experiência foram impostos limites. Ela circula num gradeado de onde é cada vez mais difícil fazê-la sair. Ela se apóia, também ela, na utilidade imediata, e é guardada pelo bom senso. A pretexto de civilização e de progresso conseguiu-se banir do espírito tudo que se pode tachar, com ou sem razão, de superstição, de quimera; a proscrever todo modo de busca da verdade, não conforme ao uso comum. Ao que parece, foi um puro acaso que recentemente trouxe à luz uma parte do mundo intelectual, a meu ver, a mais importante, e da qual se afetava não querer saber. Agradeça-se a isso às descobertas de Freud. Com a nestas descobertas desenha-se afinal uma corrente de opinião, graças à qual o explorador humano poderá levar mais longe suas investigações, pois que autorizado a não ter em conta as realidades sumárias. Talvez esteja a imaginação a ponto de retomar seus direitos. Se as profundezas de nosso espírito escondem estranhas forças capazes de aumentar as da superfície, ou contra elas lutar vitoriosamente, há todo interesse em captá-las, captá-las primeiro, para submetê-las depois, se for o caso, ao controle de nossa razão. Os próprios analistas têm a ganhar com isso. Mas é importante observar que nenhum meio está a priori designado para conduzir este empreendimento, que até segunda ordem pode ser também considerado como sendo da alçada dos poetas, tanto como dos sábios, e o seu sucesso não depende das vias mais ou menos caprichosas a serem seguidas (BRETON, 2002).
Diante desse quadro da realidade que se impõe, a “Crise de Ética” coloca o homem em constante estado de julgamento. Tem-se que tomar decisões que remetem à Ética, mas, por se estar desprovido de pressupostos que auxiliem nos julgamentos, é-se levado a sempre se tomar uma parte do todo, ou seja, julga-se de acordo com a situação que se apresenta.
Além dessa situação de crise de juízos éticos[25], a contemporaneidade moderna aprendeu a excluir o outro como elemento de confronto com seueu”. Desse modo, o reconhecimento da ausência do outro no campo da consciência, serve como um dos pontos de partida para a investigação da ética de situação (ocasião) na representação literária contemporânea.
Tendo em vista a problemática da conduta humana a partir do pós-guerra e de como a ética de princípios tornou-se desatualizada, pretende-se interpretar, sob a óptica da representação literária contemporânea, como as obras de Camus refletem um pensamento filosófico ético.

Partindo-se dessa perspectiva, desejar-se-á demonstrar como essa ética, configurada como do Absurdo, está presente nos meandros das obras de Albert Camus como reveladoras do “paradoxo da ausência de outrem”; tais como são encontrados nas obras O Estrangeiro[26], A Queda[27], O Mito de Sísifo[28], A Peste[29], O Exílio e o Reino (O Hóspede), O Equívoco[30], Calígula[31] e O Homem Revoltado[32].
Entretanto, um dos recortes desse estudo é mostrar que, mesmo em meio a um ato moral destituído de alteridade, a ética permanece possível de ser alcançada. Portanto, articular-se-á o problema da “Absurdidade da Indiferençacomo um dos fatores instauradores da Ética do Absurdo na tentativa de evidenciar que a aparente indiferença é algo de paradoxal como sinônimo do conceito de absurdo em Camus, devidamente registrado em seu ensaio filosófico O Mito de Sísifo.
L‘absurde naît de cette confrontation entre l’appel humain et le silence déraisonnable du monde. C’est cela qu’il ne faut pas oublier. C’est à cela qu’il faut se cramponner parce que toute la conséquence d’une vie peut en naître. L’irrationnel, la nostalgie humaine et l’absurde qui surgit de leur tête-à-tête, voilà les trois personnages du drame qui doit nécessairement finir avec toute la logique dont une existence est capable (CAMUS, 1998, p. 46-47).

O absurdo nasce desse confron­to entre o apelo humano e o silêncio despropositado do mundo. É isso que não se deve esquecer. É a isso que é preciso se agarrar, pois toda a conseqüência de uma vida pode nascer daí. O irracional, a nostalgia hu­mana, o absurdo que surge do diálogo entre eles: eis os três personagens do drama que deve, necessariamen­te, acabar com toda a lógica de que uma existência é capaz (CAMUS, 1989, p.46).
Todavia, o problema da absurdidade da indiferença não se encontra apenas como um paradoxo ético, porém, mescla-se com o problema humano de insatisfação de sua própria existência numa forma de Hýbris[33], ou seja, numa atitude de desmedida diante do Cosmo. Atitude essa, interpretada como inveja do abSoluto, que é genialmente mostrada em sua grande obra dramática de teatro, Calígula, de 1944. O protagonista, baseado na figura histórica de um dos imperadores romanos, crê que pode tudo, mas angustia-se quando se dá conta que não pode possuir a lua.
Além dessa atitude de descontentamento e rejeição verificada na existência de Calígula, Camus destaca o problema da felicidade humana: Os homens morrem e eles não são felizes.[34] (CALIGULA : 24). Viver não é garantia de se ser feliz. A felicidade, quando não é devidamente alcançada, ou seja, quando não é fruto da própria medida humana, gera o desvario da razão que vem a cometer todo tipo de desmedida: incesto e morte, como no caso de Calígula, roubo e assassinato, como se verifica na peça de teatro de Camus, O Equívoco, em que a mãe e filha queriam apenas ser feliz em uma casa de praia sob o brilho do Sol.
Contudo, em seu ensaio, O Mito de Sísifo, de 1942, Camus circunscreve o paradoxo da existência como um problema filosófico da mais alta relevância: “o homem diante do absurdo do suicídio”. Poder-se-ia resumir esse ensaio em apenas uma expressão: “somente um problema filosófico verdadeiramente sério: é o suicídio. Julgar que a vida vale ou não a pena ser vivida é responder à questão fundamental da filosofia[35] (CAMUS, 1989, p. 22).  
Desse modo, Camus abre a questão do ‘absurdo’ e do ‘suicídio’, não como temas da filosofia absurda, como ele próprio afirma no prefácio dessa obra, mas como uma preocupação metafísica em mostrar le mal de l’esprit vivido pelo homem contemporâneo. O Mito de Sísifo talvez contenha uma de suas mais ousadas tentativas especulativas sobre a busca de sentido do homem e do mundo. Em uma de suas narrativas ele faz uma digressão sobre o desespero humano como prova da ausência de sentido. Efetua algumas comparações, principalmente quando, à esteira de Kierkegaard, ele afirma: “O absurdo, que é o estado metafísico do homem consciente, não o conduz a Deus. O absurdo é o pecado sem Deus” [36] (1989, p.58).
É o absurdo configurado fora do Éden, mas não no Mundo proscrito. É o absurdo em outro Éden, um novo Éden criado pelo Homem onde Deus não mais o espreita nem a árvore do conhecimento está plantada como símbolo de tentação e queda. No novo Éden, o conhecimento está em toda parte, por isso o absurdo não se manifesta em um único lugar nem contém o pecado original. O absurdo está na origem originária (sempre a se fazer gênese) de todas as coisas (entes).
Na espreita e na garimpagem do absurdo estar-se-á atento, de mãos dadas com a literatura camusiana, para que ele seja desvendado. Contudo, as fronteiras a serem atingidas não ultrapassam a própria existência do homem. Somente desse modo, poder-se-á concluir algum paradigma ético a fim de colocá-lo na Soleira da casa do homem contemporâneo. Não olvidando, contudo, que o pensamento de Camus não é uma mera atualização da filosofia grega.
Com efeito, se de um lado, como destacado acima, um dos fundamentos de seu pensamento filosófico parte da natureza humana, de outro, projeta-se em uma metafísica incomparavelmente inovadora. Em Camus, a Physis[37], representada pelo Sol da Argélia, além de se deslocar para o Ethos[38], remete-o a sua origem e às origens de toda a humanidade. Ele sempre está demonstrando em suas obras um desejo de se ir às fontes que guardam a memória do tempo primordial e onde se é naturalmente humano. Seus personagens não têm necessariamente memória de seus atos (Meursault, em O Estrangeiro, Clamence, em A Queda, a Mãe e a Filha, em O Equívoco). Há uma tensão entre o esquecimento e a memória que faz do pensamento camusiano um arauto da recusa da razão ideológica. Razão esta que se prende a memória do pensamento racional. Era como se Camus quisesse cair no esquecimento do Lógos[39], no sentido grego, para poder atingir um ponto de partida. Ponto de origem esse que expressa o absurdo da existência como algo inigualável na história do pensamento ocidental. Não se confundir, contudo, com a tradição filosófica helênica em que a verdade escondida nos oráculos de Apolo havia se tornado evidente à razão grega pelo desvelamento do pensar. Com Camus, a verdade não é apenas a Alethéia[40] filosófica, a verdade é o próprio absurdo encarnado na existência, isto é, se mostra através de fenômenos. A depender de suas causas, seus efeitos poderão ser devastadores para a humanidade, podendo, inclusive, atingir a niilização da criação e do criador[41].
Consoante tal prerrogativa, ao se verificar Camus em alguns de seus personagens, poder-se-á notar que existem traços marcantes de seu estilo de vida, contudo, elevando-se ao plano de uma existência engajada e revoltada com o próprio absurdo que se instaura entre o homem e o mundo. Maurice Blanchot (1943) ao se referir ao Estrangeiro de Camus, compara-o da seguinte forma:
Este Estrangeiro é, em relação a Camus, como se um outro o visse e falasse dele... Ele é efetivamente deslocado. Ele é ainda, mesmo que se pareça alguém que pense pouco ou que sinta pouco, seria, desse modo, pouco íntimo consigo próprio. A imagem da realidade humana desde que se possa destituir de todas as convenções psicológicas, quando se pretende compreendê-la por uma descrição feita unicamente de fora, privada de todas as falsas explicações subjetivas (T. do A.).
A evocação camusiana não é apenas a da denominação de “todos os nomes do absurdo”, [42] mas a responsabilidade das tarefas humanas que encontram no outro uma referência de limite. Desse modo, a percepção desse limiar se nos dá a partir da desmedida praticada pelo próprio homem. Diferentemente do que se pensa, Camus em nenhum momento pretende reduzir esse mesmo homem à história como fizera o hegelianismo e o existencialismo. De início, a ordem individual se torna coletiva por meio de seu próprio élan e sob a pressão da história. Camus não recusa esta última, porém, recusa de torná-la sacra e não crê mais em seu valor abSoluto igual aquele de um Deus ou da Razão. A história, segundo ele, não pode dar um sentido à vida, pois ela o tem nela mesmo. Camus encarna, então, o que Sartre devia saudar como: a admirável conjunção de uma pessoa, de uma ação e de uma obra”. Sem equívoco, poder-se-ia verificar a constelação Sartre-Camus reinando sobre a juventude e a intelligentsia de sua época. Apesar de que, a bem da verdade, Camus recusara todo tipo de etiqueta que o considerasse “existencialista” e se recusara em ser, igualmente, um maître à penser.
Devido a sua coerência em pensar e ser; seu engajamento e sua atenção constantes com as mazelas do mundo em sua época fizeram de Camus um homem de revolta que profetizava, inclusive, a esperança. Desse modo, a miséria encontrada nas populações muçulmanas de Kabylia (Argélia), em 1939, era, para Camus, não apenas o espectro da fome, mas, paradoxalmente, o espectro da esperança de um mundo em que os homens não tivessem que disputar com os cachorros os restos de comida. A devastação e o extermínio de milhares de vidas humanas provocados pelas bombas atômicas lançadas em Hiroshima e Nagasaki eram, para Camus, não apenas uma demonstração de poder bélico em uma guerra absurda, mas, sobretudo, uma disseminação do absurdo da prepotência humana que adquiria uma magnitude sem precedentes; todavia, balbuciava e chorava em suas vítimas o apelo da compaixão que poderia se tornar Solidariedade mundial.
Defender os homens e tudo o que lhes é caro contra a fascinação dos hábitos inescrupulosos e contra todo o niilismo[43], não fora tarefa apenas de Prometeu como defensor da humanidade, mas soberanamente de Camus. No dia 04 de janeiro de 1960 a humanidade perdeu seu advogado “pied-noir”[44] e ficou órfã do pai da revolta.
Tendo ainda o sentimento de luto do “homem revoltado”, segue-se, a título de Réquiem, o Artigo de Jean-Paul Sartre (1972, p. 110-113) publicado depois da morte de Camus, no France-Observateur:
Albert Camus:
Há seis meses, ontem mesmo, perguntávamos: “Que irá ele jazer?” Provisoriamente dilacerado por con­tradições que devemos respeitar, tinha escolhido o si­lêncio. Mas ele era um desses homens invulgares pelos quais temos a certeza de poder esperar porque escolhem lentamente e permanecem fiéis à sua escolha. Um dia, havia de falar. Não ousaríamos sequer arriscar uma conjectura sobre o que ele diria. Mas pensávamos que ele mudava com o mundo, como todos nós: isso bastava para que a sua presença continuasse viva.

Tínhamo-nos zangado, ele e eu: uma zanga nada significa — mesmo que nunca mais nos voltássemos a ver —, é simplesmente uma outra maneira de vivermos juntos e sem nos perdermos de vista no mundo pequeno e estreito que nos é dado para nele vivermos. Isso não me impedia de pensar nele, de sentir o seu olhar na página do livro, no jornal que ele lia e de dizer para comigo: “Que dirá ele disto? Que dirá ele disto neste momento?”

O seu silêncio, que, conforme os acontecimentos e o meu humor, eu considerava por vezes demasiado prudente e por vezes doloroso, era uma qualidade de cada dia, como o calor ou a luz; mas humana. Vivia-se com ou contra o seu pensamento, tal como no-lo reve­lava os seus livros — principalmente La Chute, o mais belo e talvez o menos compreendido —, mas sempre através dele. Era uma aventura única na sua cultura, um movimento cujas fases tentávamos adi­vinhar, assim como o termo final.

[...] Ele era, por assim dizer, essa inabalável afirmação. Por pouco que se lesse ou se reflectisse Camus, esbar­rava-se com os valores humanos que ele guardava nas suas mãos fechadas: ele punha o acto político em questão. Era necessário ou transformar a sua opinião ou combatê-lo: indispensável, em resumo, a essa tensão que faz a vida do espírito. Mesmo o seu silêncio, nestes últimos anos, tinha um aspecto positivo: este cartesiano do absurdo recusava-se a abandonar o terreno seguro da moralidade e a comprometer-se nos caminhos incer­tos da prática. Adivinhamo-lo e adivinhávamos também os conflitos que ela calava; porque a moral, se a con­sideramos sozinha, exige ao mesmo tempo a revolta e condena-a.

Esperávamos, era preciso esperar, era preciso saber: fosse o que fosse que Camus tivesse podido fazer ou decidir no futuro, ele nunca deixaria de ser uma das forças principais do nosso campo cultural, nem de representar, à sua maneira, a história da França e deste século. Mas nós tê-lo-íamos talvez sabido e compreendido o seu itinerário. Ele tinha feito tudo — uma obra toda — e, como sempre, estava tudo fazer (sic.). Ele dizia-o: “A minha obra está diante de mim.” Acabou. O escândalo particular desta morte é a abolição da ordem dos homens pelo inumano.

A ordem humana é, por enquanto, apenas uma desordem, é injusta, precária, permite que se mate, que se morra de fome: mas pelo menos é fundada, mantida e combatida por homens. Nessa ordem, Camus devia viver: esse homem em contínuo devir fazia-nos duvidar de nós próprios, era ele mesmo uma interro­gação que procurava a sua resposta; vivia no meio de uma longa vida; para nós, para ele, para os homens que fazem reinar a ordem e para os que a recusam, era importante que ele saísse do silêncio, que decidisse, que concluísse. Outros morrem de velhos, outros, sem­pre preocupados, podem morrer em qualquer momento, sem que o sentido da sua vida, seja por isso modificado. Mas para nós, indecisos, sem norte, era necessário que os nossas melhores homens chegassem ao fundo do túnel. Poucas vezes as características de uma obra e as condições do momento histórico exi­giram tão claramente que um autor permanecesse vivo.

Chamo um escândalo ao acidente que matou Camus porque faz surgir no coração do mundo humano o absurdo das nossas exigências mais profundas. Camus, com 20 anos, bruscamente atacado por um mal que perturbava a sua vida, descobriu o absurdo — imbecil negação do homem. Habituou-se a isso, pensou a sua insuportável condição, reSolveu a sua situação. E, no entanto, ser-se-ia levado a crer que só as suas primeiras obras dizem a verdade da sua vida, pois este doente curado é esmagada por uma morte imprevisível e vinda de outro lado. O absurdo seria essa pergunta que já ninguém lhe faz, que ele não faz já a ninguém, esse silêncio que nem já silêncio é, que já não é abSolutamente nada.

Não o creio. A partir do momento em que ele se manifesta, o inumano torna-se parte do humano. Toda a vida ceifada — mesmo se é a vida de um homem tão novo — é ao mesmo tempo um disco que se parte e uma vida completa. Para todos os que o amaram existe nesta morte um insuportável absurdo. Mas será necessário aprender a ver esta obra mutilada como uma obra total. Mesmo na medida em que o humanismo de Camus contém uma atitude humana em relação à morte que deveria surpreendê-lo, na medida em que a sua procura orgulhosa da felicidade implicava e reclamava a necessidade inumana de mor­rer, reconheceremos nesta obra e na vida que dela não é separável a tentativa pura e vitoriosa de um homem para reconquistar a sua morte futura cada instante da sua existência.
Velar sobre esse corpo inerte é não admitir o absurdo da morte perante a vida. Somente a ela que se deve prestar culto.






[1] Leitmotiv –  idéia, fórmula que reaparece de modo constante em obra literária, discurso publicitário ou político, com valor simbólico e para expressar uma preocupação dominante.
[2] Fundamento ontológico SOLbase metafísica de todo pensamento camusiano; realidade material que, além de representar a natureza, transmuta-se em realidade primordial do destino humano; princípio (arché) movedor do desejo humano sem culpa; personificação da tragicidade grega na contemporaneidade de Camus; enquanto termo utilizado por Camus encontra-se, a propósito, nas obras: Núpcias, O Verão e O Estrangeiro (é citado 60 vezes). Nas demais obras, tais como: A Peste, O Mito de Sísifo, ele praticamente não se inscreve.
[3] Expressão filosófica derivada do grego clássico que designa: espanto, escantamento, admiração.
[4] Prometeu — filho do Titã Jápeto e da Oceânida Climene, rouba o fogo sagrado do Olimpo para entregar aos homens, tornando-se o primeiro benfeitor da humanidade. O mito de Prometeu foi narrado pelos poetas Hesíodo e Homero (cerca de 700 a. C.) e por Ésquilo (cerca de 470 a. C.) na obra Prometeu Acorrentado. Fora condenado por Zeus a ser acorrentado numa coluna no alto das montanhas do Cáucaso e durante o dia uma águia descia do Olimpo para corroer seu fígado, mas a noite ele se regenerava.
[5] As citações que se seguem neste estudo referentes às obras de Albert Camus estarão apresentadas de forma bilíngüe para auxiliar o leitor a perceber algumas passagens intraduzíveis, mesmo porque, as traduções em língua portuguesa ainda carecem de um aprimoramento. As demais citações de obras de outros autores serão apresentadas, exclusivamente em língua portuguesa.
[6] Não se pode evadir totalmente da tragicidade quando se verifica a vida de Camus. Sabe-se que no acidente de carro que provocou sua morte, fora encontrado um bilhete de trem com o mesmo trajeto sem uso.
[7] Desde logo, quando se usa o termo natura em se referindo a vida ou a alguma concepção do pensamento camusiano, denota-se que a questão da natureza humana, no sentido helênico, está posta. Contrariamente, o termocondição humana” ao ser aqui tratado, será subentendido como uma metáfora da “natureza humana”. Isto é, a condição humana em Camus tem como fundamento metafísico a própria natureza humana, presa, evidentemente, a tudo aquilo que serve de elemento motivador e provocador das ações humanas, tais como: o Sol, o mar, o vento, a areia da praia. se pode entender as ações morais (conduta humana) em Camus a partir destes pressupostos in natura. Portanto, a ´condição humana´, ao ser abordada, deve sempre ser entendida como algo dependente da natureza humana.
[8] Notoriamente representado pela obra Assim falou Zaratrusta.
[9] Vale assinalar que a influência da literatura de Dostoievski no pensamento de Camus é grandiosa. Além de ele tratar do problema da recusa do homem da salvação celeste em sua obra O Homem Revoltado, Camus escreve uma adaptação para o teatro da peça Os Possessos de D.
[10] O servo que mata o pai de Ivan Karamázov, personagem da obra Os Irmãos Karamázovi.
[11] O pensamento filosófico hegeliano tem como ponto de partida a morte de Jesus Cristo na cruz — uma teologia da sexta-feira santa — Ele inicia sua demonstração da instauração do que se evidenciará como Espírito AbSoluto a partir do momento em que, segundo Hegel, tenha a coragem de viver como homem-deus. Ora, se Deus morreu em uma cruz numa sexta-feira, cabe, agora ao homem, iniciar a construção de um novo reino, porque Deus está definitivamente no Homem e não mais transcendentalmente fora dele.
[12] Bar-Café situado no bairro Saint-Germain des Pres de Paris, normalmente freqüentado por intelectuais na época de Camus e Sartre (N. do A.).
[13] Referência ao ensaio filosófico de Camus, intitulado O Mito de Sísifo, traduzido pela editora Guanabara no Brasil.
[14] Grifos do Autor.
[15] ÉTICA DE OCASIÃO — ou Ética de Situação, como assim também é identificada, privilegia o valor normativo da situação, isto é, do conjunto de circunstâncias externas e internas (sobretudo as relações pessoais) em que o sujeito moral se encontra no momento de agir. Tendo surgido na Europa Central por volta dos anos 30, em resultado de diversos fatores históricos e doutrinais, estenderam-se a outros países, sobretudo depois da II Guerra Mundial. Toda a forma de Ética de Situação que exclua qualquer norma moral universal, ou que admita que ela possa ser contraditada e invalidada pela exigência ou norma da situação é inadmissível. Baseia-se, entre outros, no falso suposto de que o indivíduo humano é abSolutamente único, esquecendo que, devido à sua materialidade e criaturalidade, ele não pode ser tal. O problema da Ética de Situação em contraposição à Ética de Princípios é que aquela coloca o homem em estado de constante julgamento porque ele está desprovido de juízos ‘a priori’ éticos que o auxiliem na tomada de decisão. A ética de ocasião, obriga o homem à, em situações particulares, tomar uma decisão. Mesmo porque a última norma de moralidade é a própria consciência do indivíduo, como asseverou Tomás de Aquino. No entanto, essa decisão é tomada a partir somente de uma parte do problema que se lhe impõe, mas não o responsabiliza na decisão do todo da situação. Ele escolhe apenas uma parte para se sair daquela situação. Sua decisão é isenta de toda e qualquer responsabilidade com a problemática da existência, do mundo e de todos os Outrem. Seu julgamento encerra-se na realidade imediata que lhe garantirá sua sobrevivência. (No.do A.).
[16] J’ai grandi dans la mer et la pauvreté m’a été fastueuse, puis j’ai perdu la mer, tous les luxes alors m’ont paru gris, la misère intolérable (CAMUS, 1998, p. 169).
[17] Ao se constatar que Albert havia vomitado sangue, descobre-se que ele tinha o pulmão direito atingido pela tuberculose. Ele tivera completado dezessete anos e com ele seu universo familiar houvera desabado: o futebol, a natação, as grandes gandaias na cidade. Mais tarde, em seu primeiro romance não publicado em vida, A Morte Feliz, Camus coloca em cena um personagem que morre de pleurisia ao final da história, e que, desde o primeiro capítulo, sinal precursor, espirra e sente calafrios e febre. Em 1930, não existia nenhum remédio milagroso para curar a tuberculose que o atingira ainda jovem. Sabendo de sua ausência na escola, Jean Grenier vai procurá-lo em sua casa que o recebe ainda sem nenhum ânimo. (CHAILAN, 2001, p.01).
[18] A “Ideologia Mediterrânea” tem Tipasa como símbolo : Poder-se-ia falar, a propósito d´ideologia mediterrânea: ele faz a apologia da África do Norte, servindo-se, quase sempre, de imagens forjadas por escritores efetivamente estrangeiros à África, mas que, tendo-as descoberto, foram seduzidos por ela. A idéia é que essas margens abençoadas de Sol produziram homens que conhecem seus limites e a justa medida das coisas. É evidente que, aos olhos dos Europeus do Norte, o Mediterrâneo aparece, quase sempre, como um se volúvel e inflamado; mas os jovens Mediterrâneos letrados são persuadidos que eles são, na medida do possível, os herdeiros dos clássicos gregos. O símbolo desta herança logo se torna, para Camus, o sítio arqueológico de Tipasa onde as ruínas romanas contrastam com a vegetação luxuriante próximas do mar. “Na primavera, escreverá Camus, Tipasa é habitada pelos deuses e os deuses falam ao Sol e ao odor dos absintos” (CHAILAN, 2001).
[19] Ao mesmo tempo, Camus inicia seu terceiro e último ano na Universidade d´Alger ao longo do qual ele deve preparar seu diploma de estudos superiores. A dissertação tratará das relações entre o início do cristianismo e a filosofia grega: como um pensamento vindo do Oriente-Próximo pode encontrar o pensamento grego para vir a ser o que chamamos de cristianismo? Camus confronta o pensamento grego, em que o homem é a medida de todas as coisas, com o pensamento cristão. Obtêm seu diploma de estudos superiores abrindo-lhe às portas do ensino superior, mas o Estado, então, não pode recrutar um candidato tuberculoso (CHAILAN, 2001).
[20] O Novo Éden — parafraseando o homem descrito no Livro do Gênesis da Bíblia, Camus, contudo, não revigora o Éden como lugar acabado, perfeito e em que a presença do outro tem espaço garantido. O Novo Éden, segundo Camus, apesar de parecer um Paraíso Perdido que precisa ser restaurado, é, contrariamente, um Paraíso sem outrem em que o homem da urbanidade moderna engendra sua morada, iSolada de todos os outros homens. A vida no Novo Éden é, portanto, a garantia de sobrevivência num caos social em que o individualismo se pretende imune à presença de outrem.
[21] Je pense à Camus : j'ai à peine connu Camus. Je lui ai parlé une fois, deux fois. Pourtant, sa mort laisse en moi un vide énorme. Nous avions tellement besoin de ce juste. Il était, tout naturellement, dans la vérité. Il ne se laissait pas prendre par le courant; il n'était pas une girouette; il pouvait être un point de repère  (T. do A.).
[22] Entenda-se, por essa supervalorização, ‘excesso de objetivação do mundo’.
[23] Zeus, Apolo, Afrodite, Hera, As Moîras, Plutão (Hades) etc...
[24] Desviar-se, isto é, Clinamen em grego e definido por Lucrécio pelo seguinte: quando os corpos são levados em linha reta através do vazio e de cima para baixo pelo próprio peso, afastam-se um pouco de sua trajetória, em altura incerta e em incerto lugar, e tão-somente o necessário para que se possa dizer que se mudou o movimento. Se não pudessem desviar-se, todos eles ,como gotas de chuva, cairiam pelo profundo espaço sempre de cima para baixo e não haveria para os elementos nenhuma possibilidade de colisão ou de choque; se assim fosse, jamais a natureza teria criado coisa alguma (PESSANHA, 1994, p. 71).
[25] Ou seja, da falta de “juízos a priori” no sentido kantiano do termo.
[26] O ESTRANGEIRO (L´Étranger) - Um dos romances mais intrigantes e polêmicos da literatura do século XX, O Estrangeiro, de Camus, retrata a vida de um homem (Meursault) comum que mata um árabe, sem motivo aparente, e é condenado pela corte francesa da Argélia ocupada, não por ter assassinado alguém, mas por não ter chorado no enterro de sua mãe. Obra de pungente ousadia e coragem, trata da aparente indiferença humana como o absurdo encarnado em nossa consciência ocidental.
[27] A QUEDA (La Chute) - Retrato do homem contemporâneo, A Queda reflete  o mal estar de uma civilização moderna, urbana e Solitária, que, em detrimento da Solidariedade, prefere permanecer indiferente, mesmo que, tenha de pagar o quinhão da culpa sem redenção.Clamance, o protagonista, vive em seu próprio mundo como se tivesse um interlocutor, dialogando, portanto, consigo mesmo. Por ter se deparado com um apelo de um corpo que cai no rio, tenta, a toda prova, passar ao largo. Mas o grito da culpa o persegue sem trégua...
[28] O MITO DE SÍSIFO (Le Mythe de Sisyphe) - Ensaio de grande envergadura filosófica, O Mito de Sísifo, além de ser uma interpretação da punição do herói grego imposta pelos deuses, é uma reflexão, sem precedentes, da condição de homens que vivem submetidos à repetição no cotidiano da existência. Camus mostra a rebeldia de Sísifo, não como uma atitude plena de ressentimentos, mas como uma atitude de coragem em querer lutar incessantemente pela novidade embutida na pedra da repetição. Esse ensaio é a carta de alforria do revoltado das malhas do destino, contudo, procurando entender o absurdo circunscrito no mundo da existência, até que ele se revele à razão humana.
[29] A PESTE (La Peste) — Numa cidade portuária surge inexplicavelmente uma epidemia de peste bubônica que avassala a quase todos os seus moradores. Um médico, (Dr. Rieux) guardião da saúde pública, é o único que consegue diagnosticar a doença, mas não consegue eliminá-la. Pouco a pouco, os ratos vão se alastrando e proliferando em todos os becos e meandros da cidade. De um lado, permanecem os crédulos da punição celeste, de outro, os incrédulos do apocalipse que buscam conhecer as causas através dos sintomas da peste. Alegoria da ocupação nazista em Paris, Camus metaforiza o inconformismo e as conseqüências da alienação de um povo.
[30] O EQUÍVOCO (Le Malentendu) — A fim de melhorar de vida um jovem deixa a família e retorna vinte anos depois, próspero, casado e com um filho. No intuito de fazer surpresa a sua mãe e a sua irmã, ele se hospeda sozinho na pensão que pertenciam às duas. Habituadas a assassinar os hóspedes para usufruírem seus bens e poderem comprar uma casa de praia, sem saberem que aquele se tratava do filho pródigo, decidem matá-lo, como os demais, mas são descobertas pela esposa da vítima que reivindica o seu desaparecimento. Obra de estonteante surrealismo trata da condição humana em seus meandros individuais e da Solidão que desencadeia o desespero com o único intuito de se ser feliz. Paradoxo entre a liberdade e a infelicidade, Camus subentende um Deus sem fala e homens revoltados com o peso de sua existência.
[31] CALÍGULA (Caligula) — Aclamada vigorosamente pela crítica e pelo público, a peça Calígula de Camus intenta revelar o adultério da criatura contra o criador, personificado na figura histórica de um dos césares mais cruéis do Império Romano que, sem medida, mas pleno de desvario, pretende levar a termo o niilismo do homem, sustentado por um poder irrestrito, porém, inalcançável quando se deseja o Cosmo. O absurdo aqui é tratado pela via da relação incestuosa entre Calígula e sua irmã. Amor proibido pelos deuses, somente é permitido aos mortais que detêm poder divino, como o próprio César, o deus encarnado, que se pretende homem.
[32] O HOMEM REVOLTADO (L´ Homme Révolté) — Contrariamente ao que a esquerda intelectual esperava, Camus lança mísseis para todos os lados ao tratar da questão esperada por todos diante de uma realidade de pós-guerra, bombardeando as esferas cultas de uma época que havia se acostumado a lidar com a condição da revolta pelo prisma da ideologia. O Homem Revoltado não é apenas uma reflexão de filosofia política sob os moldes da tradição moderna, mas, sobretudo, uma análise rigorosa e contundente de todo homem que aprendeu a se revoltar diante das injustiças sem se deixar contaminar pelas mágoas individuais. Apresentando, desse modo, uma forma de conduta que conduz o revoltado a desenvolver uma atitude de Solidariedade humana inigualável.
[33] Hýbris — termo grego, significa : excesso, descomedimento, desmedida.
[34] Les hommes meurent et ils ne sont pas heureux (CAMUS, 1998, p. 27).
[35] Il n’y a qu’un problème philosophique vraiment sérieux: c’est le suicide. Juger que la vie vaut ou ne vaut pas la peine d’être vécue, c’est répondre à la question fondamentale de la philosophie (CAMUS, 1998, p. 17).
[36] L’absurde, Qui est l’état métaphysique de l’homme conscient, ne mène pas à Dieu. (...) L’absurde c’est le péché sans Dieu (CAMUS, 1998, p. 62).
[37] Physis — termo mítico-filosófico, em grego significa Cosmo, i. é., natureza em totalidade.
[38] Ethos —  provém do radical  grego ethos = hábito, costume, estilo de vida  e ação; estada permanente e habitual, abrigo protetor, espaço humano; o modo de agir do indivíduo articula o ethos como caráter  e o ethos como hábito; Ética seria o saber racional do éthos, segundo Henrique de Lima Vaz.
[39] Logos — o verbo da Razão grega representado por Zeus no momento mítico.
[40] Alethéia – termo do grego clássico que designa o conceito de verdade como desvelamento do ser, atestado na filosofia helência.
[41] A niilização em Camus adquire status de negação abSoluta em sua obra O Homem Revoltado quando interpreta o niilismo do Marques de Sade.
[42] Vide texto publicado na Revista Ethica da Universidade Gama Filho, 2003, intitulado: Todos os Nomes do Absurdo (de Camus a Saramago) e que se encontra no apêndice desta obra.
[43] O suicído, por exemplo, em Camus, enquadra-se numa das formas de niilização, principalmente quando se pretender demonstrar que as causas dos suicídios não são simplesmente impostas pela condição humana, porém, engendram-se a partir de um mal estar da civilização que se esvaziou da noção de “outro”, em que a diferença está sempre reduzida à noção do “mesmo”; a morte do outro não é apenas uma decorrência da morte de Deus. Há inúmeros suicídios no Século XX que, possivelmente, foram provocados e desencadeados por um mal d´esprit aparentemente inexplicável. Se Camus afirma, em O Mito de Sísifo que no suicídio o absurdo não se reSolve; ele o carrega junto para a morte deixando-nos a mercê do inefável, deve-se, portanto, tentar compreender as suas causas para que o homem do porvir não tenha que pagar o quinhão da culpa sem possibilidades de se redimir, como se verifica em sua obra, A Queda.
[44] Pied-Noir, do fr., pés-preto, sexpressão utilizada no Magrebe (países do norte da África de cultura árabe) para designar os descendentes dos franceses nascidos na Argélia. 

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