NÚPCIAS
COM O HUMANO
Lourenço Leite
O Paradoxo da Ausência
de Outrem , fundamentado
na literatura do argelino Albert Camus (*1913
+1960), aborda o problema ético da indiferença do homem perante o
outro , a partir
das ruínas da sociedade
moderna do Pós-Guerra .
O leitmotiv [1]
do pensamento de Albert Camus é o “Absurdo ” e o “Sol” como paroxismos
da realidade existencial do homem
no mundo . A interpretação
e o entendimento do absurdo
em suas
obras só
são possíveis se for inserido o Sol do Mediterrâneo como
fundamento ontológico [2].
Metonímia do Absurdo ,
o Sol penetra
nas entranhas dos seus
personagens e, ao invés
de causar pathos[3]
diante do real ,
estupora-os e deixa-os a mercê do acaso . Com efeito , “natureza ”
e “condição humana ”
se fundem em uma única
realidade , imprimindo no homem
uma identidade que
sempre estivera almejada, mas que a racionalidade toupeira ,
como denomina Camus, em Núpcias , houvera estilhaçado.
A literatura camusiana não
constrói altares de culto
aos deuses nem
aos heróis ; não
elabora discursos retóricos
em prol
da verdade ; não
cria Quimeras
nem Esfinges
que coloquem em
risco a sobrevivência
dos transeuntes da existência ;
não fortifica as ideologias
totalitárias nem as ditas democráticas; não escreve tratados
da existência como
manuais de sobrevivência
na selva da urbanidade
moderna ; não
faz escatologia da existência
humana para agradar ao Vaticano ; não prega o Evangelho Segundo
São Paulo; não
promete a salvação eterna em troca de dízimos diários ;
não defende a construção
do Novo Éden nos Jardins do Paraíso Terrestre ; não antropomorfiza Deus ;
não categoriza o “real ”
nos moldes
da razão cartesiana nem
da kantiana; não promete salvação para o homem como mérito da existência ; não
registra em
cartório humano
a felicidade como
herança ; não
espera que a inocência seja justificada perante
os crimes de lógica ;
não adere a nenhuma doutrina
que mostre a causa
da peste ; não
se filia a nenhum partido
que prometa acabar
com a miséria
no mundo ; não
aceita as injustiças do mundo nem a justiça divina para garantir a justiça . Todavia ,
possui a mesma confiança
de Prometeu[4] no
homem .
Ao elaborar as prerrogativas
do absurdo vividas em
sua época ,
conduz a humanidade a refletir
sobre a verdade
que estava presa
na ignorância . Não
é por acaso
que ele
elege dois heróis
gregos para
poderem expressar sua
indignação diante
da redução do humano às divindades . Prometeu, filiado ao partido
da existência humana
e Sísifo, condenado eterno do cotidiano que , em meio à tarefa de repetição ,
supera seus algozes
divinos . Juntamente
com esses
heróis Camus traz de volta a esperança
perdida das “primaveras do mundo ” em que o homem era humano . Quiçá , seja o maior
desafio de sua
obra : ser a porta voz da humanidade sem voz , daquela que
geme no silêncio de suas
falas o mais
profundo e fiel
sentimento de revolta
contra a usurpação da vida que só pode ser recuperada graças à presença do Sol.
A real possibilidade para
Albert Camus firmar matrimônio
com o cotidiano
é, estar em núpcias com o humano . Conseqüentemente ,
o presente transforma-o em
prisioneiro e o torna
consciente , paradoxalmente ,
sem esperar por uma libertação ,
tal como
a retrata André Nicolas, um dos comentadores mais
expressivos da obra
camusiana. Visto desse modo , podem-se identificar
as núpcias de Camus em
sua obra
Núpcias [5]:
[...] É em realizar sua condição de
homem e poder
exercer seu
papel como tal ; de poder desempenhar sua tarefa a termo quando as circunstâncias
se apresentam; de poder atingir
a felicidade . Então ,
as núpcias com
o mundo dão: “uma alegria
estranha , esta mesma
alegria que
nasce de uma consciência tranqüila ”
(NICOLAS: 1966).
A realização desse enlace com o mundo, portanto, faz de Camus, muito mais
que um homem de seu tempo, um homem que transpõe as barreiras de sua atualidade
quando retorna ao próprio mundo em que está inserido e revigora-o sob a égide
da pura existência, isto é, sob o Sol. Como testemunha de uma época em que o
homem está em profunda crise de identidade, Camus brota dos escombros de uma
sociedade esvaziada de valores e impregnada de silogismos individualistas em
que até a inocência é evocada a se justificar, como bem afirma em O Homem Revoltado.
[...] où sont les vertus conquérantes de l’esprit? Le même Nietzsche les
a énumérées comme les ennemis mortels de l’esprit de lourdeur. Pour lui, ce
sont la force de caractère, le goût, le “monde”, le bonheur classique, la
dure fierté, la froid frugalité du sage. Ces vertus, plus que jamais, sont
nécessaires et chacun peut choisir celle qui lui convient. Devant l’énormité
de la partie engagée, qu’on n’oublie pas en tout cas la force de caractère.
Je ne parle pas de celle qui s’accompagne sur les estrades électorales de
froncements de sourcils et de menaces. Mais de celle qui résiste à tous les
vents de la mer par la vertu de la blancheur et de la sève. C’est elle qui,
dans l’hiver du monde, préparera le fruit (CAMUS, 1998, p.114-115).
|
[...]
onde estão as virtudes conquistadoras do espírito? O próprio Nietzsche
enumerou-as como sendo as inimigas mortais daquele espírito lerdo. Para ele,
tais virtudes são a força de caráter, o gosto, o “mundo”, a felicidade
clássica, a dura nobreza da alma, a frugalidade fria do sábio. Essas
virtudes, mais do que nunca, são necessárias; e cada qual pode escolher
aquela que lhe convém. Diante da enormidade da parcela engajada, não
esqueçamos em todo caso a força de caráter. Não me refiro àquela que se faz acompanhar,
sobre as tribunas eleitorais, de sobrancelhas franzidas e de ameaças. Mas à
que resiste a todos os ventos do mar pela virtude da brancura e da seiva.
Porque esta é a que preparará o fruto no inverno do mundo. (CAMUS, 1979, p. 91)
|
Por conseguinte, muito embora, em obras como O Estrangeiro e A Queda,
Camus expresse certa indiferença pelo outro, sua narrativa é, sobretudo
paradoxal, assim como o próprio fato de existir sem se saber qual o verdadeiro
sentido da existência. Ou, de outro modo, como se pode verificar na
interpretação que ele dá da “morte de Deus”, através das idéias embutidas na
literatura de Dostoievski[9],
marcadamente na fala de Smierdiákov[10], Camus
realça o problema: [...] “se Deus não existe, não há virtude e ela
é inútil” (DOSTOIEVSKI,
1971, p. 440).
Dieu mort, restent les hommes, c’est-à-dire l’histoire
qu’il faut comprendre et bâtir. Le nihilisme, qui, au sein de la révolte,
submerge alors la force de création, ajoute seulement qu’on peut la bâtir
|
Seria realmente necessário repensar uma ética para o homem contemporâneo,
já que Deus está morto e tudo é permitido? Evidentemente que a Ética de
Princípios ainda perpassa as atitudes individuais, mas por conter pressupostos
de conduta situacional, de mais a mais se torna inoportuna e moralista,
principalmente quando o contexto histórico é profundamente marcado pelo
liberalismo econômico oriundo do século XIX, tendo sido fortificado pela
revolução industrial inglesa. Camus está inserido em um contexto moderno com profundas
características individualistas. Nasce (1913) no prenúncio da I Grande Guerra
Mundial (quando perde seu pai Lucien Camus), cresce e é educado num país
ocupado pelo colonialismo francês e se torna adulto engajado no momento da II
Grande Guerra Mundial, chegando a participar de grupos de resistência, como um
“maqui” urbano, na época da ocupação de Paris pelos nazistas.
Entretanto, além de ser um conspirador da contra ocupação, Camus, quando
da instauração e popularização do existencialismo, insere-se como uma luva na
tarefa da conscientização social. É muito provável que esse atributo tenha
contribuído para que a Rive Gauche francesa o considerasse como a
inovação literário-filosófica do Pós-Guerra. Henri Lefebvre, ao categorizar e
analisar as implicações da “onda” existencialista acaba contribuindo no
entendimento do engajamento, seja do literato, seja do filósofo, em sua obra de
1946, L´Existencialisme (LEFEBVRE,
1946, p. 10):
A
situação social
do escritor : o escritor
tende a uma certa consciência
social . Ele
“tende”, mas esta tendência
se depara com inúmeros obstáculos . O escritor
e o filósofo vivem entre as palavras , entre
as formas do pensamento
e do estilo que
lhe são
sempre transmitidos com
a aparência “desprezo ”
em relação
a suas condições .
O escritor e o filósofo estão à procura de uma forma , de
uma técnica , de um
estilo e quando
eles encontram, passa
a ser “seu ” estilo , “sua ” forma , dos quais se
sentem proprietários e pelos quais eles dão um “valor ” literário
e maior mercadoria .
O conteúdo , a experiência
social , os acontecimentos ,
o objeto da expressão
passam a pertencer a todos ;
a forma , contudo ,
é individual ; ela
faz a originalidade de cada um.
O estilo de
Camus nesse contexto transforma-o em um dos mais originais e respeitados
escritores das letras francesas, como afirma Sartre em seu Réquiem para Camus:
Ele
representava neste século, e contra a História, o herdeiro actual desta longa
linha de moralistas cujas obras constituem o que há talvez de mais original
nas letras francesas. O seu humanismo insistente, estreito e puro, austero e
sensual, travava um combate duvidoso contra os acontecimentos maciços e disformes
deste tempo. Mas, inversamente, pela firmeza da sua recusa; (sic.) ele
reafirmava, no coração da nossa época, contra os adeptos do Maquiavel, contra o
vitelo de ouro do realismo, a existência do facto moral (SARTRE, 1972, p.
110-113).
Pendant cent cinquante ans, les écrivains de la société
marchande, à de rares exceptions près, ont cru pouvoir vivre dans une
heureuse irresponsabilité. Ils ont vécu, en effet, et puis sont morts seuls,
comme ils avaient vécu. Nous autres, écrivains du xx siècle, ne serons plus
jamais seuls. Nous devons savoir au contraire que nous ne pouvons nous évader
de la misère commune, et que notre seule justification, s’il en est une, est
de parler, dans la mesure de nos moyens, pour ceux qui ne peuvent le faire (CAMUS,
1997, p. 56).
|
Além disso,
vale ressaltar que a Filosofia da Existência do pós-guerra estava em seu apogeu
e Camus, premido em meio ao mundo intelectual daquela época, brotara como um
dos seus representantes. Todavia, vale assinalar, mesmo que através de um olhar
pouco heterodoxo, o depoimento de Charles Moeller ao pretender cristianizar
Camus (1958 p.23-24):
Ignoro como
Albert Camus pôde embarcar na canoa
do existencialismo . O desenrolar
dos anos a partir
de quarenta e cinco deve ter
contribuído alguma coisa para
isso . Nessa época
bastava escrever as palavras
"absurdo " e "disparate " para ser incluído no bando
heteróclito conduzido pelo
patriarca do café
de Flora [12].
Quero acreditar que Sartre se
interessa verdadeiramente pelo homem, e que, fazendo-nos atravessar vastas
regiões "nauseabundas", nos leva enfim a um terreno firme. Mas escrever
que "o homem é uma paixão inútil", que "o inferno são os
outros", que a dialética do amor se reduz a um eterno conflito entre
"masoquismo e sadismo", situam um autor num universo espiritual
diferente de Camus, que terminou o seu maior livro [A Peste] com estas linhas:
“Em meio aos gritos que
redobravam de intensidade e duração , repercutindo longamente
até junto
do terraço , à medida
que as girândolas
multicoloridas se erguiam mais numerosas
no céu , o doutor
Rieux reSolveu compor este relato que
aqui termina, para
não ser
daqueles que se calam, para
testemunhar em
favor desses pestíferos ,
para deixar ao menos uma recordação da injustiça
e da violência que
lhes tinham sido feitas
e para dizer sim plesmente o que
se aprende nos flagelos
que “há nos homens mais coisas a admirar do que a desdenhar ” [14].
O homem do pós-guerra europeu quer agir exclusivamente norteado por uma
Ética de Ocasião[15],
ou seja, com uma Ética que se encaixe em cada situação sem conter o teor das
recorrências nem, sobretudo, das precedências. Ele não é mais responsável por
repetir em cada situação semelhante um ato moral que pressuponha uma universalidade
ética.
Com efeito, Camus (1981, p. 1427), apesar de não se considerar um
filósofo, questiona e reflete sobre essa problemática com uma envergadura de um
grande pensador filosófico, mesmo que não tenha sido. Seja através de seus
romances, seja através de suas peças de teatro ou mesmo através de seus contos
e ensaios.
Je ne suis pas
un philosophe. Je ne crois pas assez à la raison pour croire à un systeme. Ce
qui m’interesse, c’est de savoir comment il faut se conduire. Et plus
précisement comment on peut se conduire quand on ne croit ni en Dieu ni en la
raison (CAMUS, 1981, p. 1427).
|
Dilacerado pela guerra da Argélia, ele
experimentou o sabor da violência e da injustiça ,
da Solidão do exílio , mas também o prazer da vitória , mesmo que amargo .
Inserido em um
mundo dividido por
Árabes e Colonizadores, Camus não pretende apenas
encontrar uma saída
para o totalitarismo
pela via das ideologias de esquerda
de sua época .
Sua atitude e
seu engajamento serão
mais de revolta
contra tudo
que escraviza o homem .
Definindo-se a si próprio ,
Camus afirma: “Cresci no mar e a pobreza
me foi faustosa ;
depois , quando
perdi o mar , todos
os luxos passaram a ter
para mim aparência opaca
e a miséria tornou-se intolerável ”
[16]
(1997, p.132).
A Solidão vivida , portanto ,
por Camus, não
seria a Solidão que o homem contemporâneo experimenta
diante da existência ?
Desvelar essa ausência
e o absurdo da indiferença
diante de outrem
é tarefa , não
apenas especulativa
e hermenêutica , mas
necessária para
quem quer
transformar a Ética
do Absurdo numa Estética
da Existência . A exemplo
disso constata-se em uma passagem de Núpcias uma reflexão
de Camus por ele
mesmo :
Bien entendu,
un certain optimisme n’est pas mon fait. J’ai grandi, avec tous les hommes de
mon âge, aux tambours de la première guerre et notre histoire, depuis, n’a
pas cessé d’être meurtre, injustice
|
Indubitavelmente meu caso não é o
daqueles que possuem certa espécie de otimismo. Cresci, assim como todos os
meus contemporâneos, ao som dos tambores da Primeira Guerra; e em nossa
história, desde então, jamais deixaram de estar presentes o homicídio, a
injustiça ou a violência. Contudo, quando se encontra o verdadeiro
pessimismo, este consiste em levar ainda mais longe tanta crueldade e tanta
infâmia. No que me diz respeito, nunca deixei de lutar contra essa desonra e
jamais odiei senão os homens cruéis. Na fase mais negra de nosso niilismo,
sempre busquei tão-somente razões que nos levassem a ultrapassar esse
niilismo. Aliás, não apenas por virtude, tampouco por uma rara elevação da
alma, mas por fidelidade instintiva àquela luz onde nasci e onde, há milhares
de anos, os homens têm aprendido a saudar a vida, mesmo no sofrimento.
Ésquilo muitas vezes nos faz desesperar; no entanto, outras vezes, seu
resplendor nos reanima (CAMUS, 1997, p. 117).
|
Camus, além de demonstrar fidelidade ao seu
tempo é, igualmente ,
fiel às suas
origens , mesmo
que de forma instintiva . Aliás ,
somente instintivamente
poderia testemunhar
sua fonte de vida (O Sol).
Viveu e aprendeu a suportar a dor ,
junto com
seus compatriotas ,
sem deixar que ela se
tornasse um contínuo
sofrimento, porque a presença
estonteante do Sol era a própria presença da vida em sua espontaneidade . Mas
para isso era preciso aprender a falar sobre ela . Ao contrário de sua
herança familiar ,
Camus aprende a falar por
eles , tal
como testemunha
seu mestre
e amigo Jean Granier em um dos resumos da vida
desse argelino:
É
|
Vitimado
pela tuberculose [17],
muito jovem, Camus, em meio ao desabamento de seu universo familiar, depara-se
com a literatura algérienne française e começa a formar, em torno dos seus vinte anos, seu
estilo enquanto esteta e aprendiz da filosofia impregnada da idéologie
méditerranéenne [18].
Philippe Chailan, em referenciando a
biografia de Camus, resume uma de suas influências, quiçá, uma das mais
proeminentes:
A descoberta
de NIETZSCHE e de DOSTOÏEVSKI.
O contato com Grenier é prolongado do fato
que Camus, por
causa da tuberculose ,
deve estudar em
dobro no curso
de filosofia [19]. Além disso, naquele momento ,
Camus liderava um círculo
de amigos que
se reuniam nos cafés
de CasLah, o famoso bairro
popular de Alger. Nesta época ,
quando ele
lia os místicos como
a espanhola Stª Tereza d´Ávila (1515-1582), lia , igualmente , a Bhagavad, isto
é, um poema
filosófico indiano , escrito
em sânscrito ,
que é um
dos fundamentos da filosofia
hindu .
Em seu manual de filosofia ele
descobre Nietzsche; ele lia, igualmente, a Bíblia e o romancista russo
Dostoïevski, grande pintor das angústias e da culpabilidade humanas (2001).
Muito
embora tenha sofrido com a tuberculose, Camus não se deixa sucumbir pelo peso
da contingência humana. Embevecido pelo Sol de
sua terra se fortifica com os sais minerais da literatura universal e pode, com
isso, chegar a Paris.
Distanciado de sua terra originária e “originante”
(sempre presente), Camus, em Paris, quando do pós-guerra, elabora a síntese de
uma época moderna e consegue publicar esses retratos contemporâneos em que se
refletem protagonistas vivendo sob efeitos do anonimato de um tipo de sociedade
individualista.
A
ilustração disso poder-se-ia, ao se ler A
Queda, de Camus, deparar-se com uma situação que, por analogia, consegue-se
facilmente constatar na contemporaneidade (moderna). Desse modo,
enveredar-se-ia à procura do fundamento desse tipo de indiferença da sociedade
individualista como um problema filosófico. A despeito de sua configuração,
como se nota em A Queda, estar pautada na concepção bíblica do Pecado
Original, Camus, apesar de não fazer teologia dessa culpa original, reconhece-a
como marca indelével do humano. Por isso, o protagonista d´A Queda no
mundo hodierno é um homem, não mais à procura, mas construtor do novo Éden[20].
Camus, desse ponto
de vista , além
de narrar a Solidão
gerada pela falta
de valores primordiais ,
empenha-se num trabalho de interpretação
da absurdidade verificada no mundo . Por conseguinte ,
demarca a crise , genialmente
em suas
obras , como
se fosse o “porta voz ”
da humanidade exilada no mundo paralelo
à existência . Em
vista disso, poder-se-ia valer
de um dos testemunhos
sobre Camus, mesmo
que provindo de um
encontro efêmero
entre ele
e Eugène Ionesco.
A
autenticidade de Camus, além de deixar marcas em seus encontros casuais,
engendrara um testemunho de compromisso com a vida humana. Em Camus não havia e
não há negação de outrem, contrariamente ao ocorrido com o homem edênico dos
dias atuais.
Com
Epicuro, o grande momento ético da filosofia grega, a Ética é revisitada, não
para se retornar aos fundamentos míticos nem aos fundamentos socráticos,
aqueles da tradição dos conceitos universais que não mais atendia aos anseios
profundos do homem grego, assim como descreve Camus, em O Homem Revoltado:
Les Grecs n’ont jamais fait de la pensée, et ceci nous
dégrade par rapport à eux, un camp retranché. La révolte, après tout, ne
s’imagine que contre quelqu’un. La notion du dieu personnel, créateur et donc
responsable de toutes choses, donne seule son sens à la protestation humaine.
On peut dire ainsi, et sans paradoxe, que l’histoire de la révolte est, dans
le monde occidental, inséparable de celle du christianisme. Il faut attendre
en effet les derniers moments de la pensée antique pourvoir la révolte
commencer à trouver son langage, chez des penseurs de transition, et chez
personne plus profondément que chez Epicure et Lucrèce (CAMUS, 1998, p. 47-48).
|
Os gregos jamais fizeram do pensamento, e
isso nos degrada em relação a eles, uma praça forte. Afinal, a revolta só se
imagina contra alguém. A noção do deus pessoal, criador e, portanto,
responsável por todas as coisas dá por si só um sentido ao protesto humano.
Pode-se dessa forma, e sem paradoxo, dizer que a história da revolta, no mundo
ocidental, é inseparável da história do cristianismo. É preciso esperar, na
verdade, os últimos momentos do pensamento antigo para ver a revolta começar
a encontrar a sua linguagem, entre os pensadores de transição, e em ninguém
de maneira mais profunda do que nas obras de Epicuro e Lucrécio (CAMUS, 1997,
p. 45-46).
|
A
propósito de Epicuro, Camus pretende demonstrar através de sua doutrina que o
homem é capaz de viver sem as divindades propugnadoras do destino[23].
Contudo, faz-se necessário que ele, o homem, como indivíduo livre, possa
desviar-se[24]
da determinação do Cosmo.
Analogamente, por contraposição, à
concepção epicurista, o homem contemporâneo se encontra diante de uma realidade
existencial que se esvaziou de sentidos, muito embora ele vivencie um conglomerado
simbólico que se apresenta repleto deles. Porém, de sentidos que são
interpretados pela sua “lógica do mesmo”, em oposição à “lógica da alteridade”.
Lógica esta que fora igualmente criticada por André Breton, já em seu Manifesto do Surrealismo de 1924 e que
imprimira em Camus elementos preponderantes:
Diante
desse quadro da realidade que se impõe, a “Crise de Ética” coloca o homem em
constante estado de julgamento. Tem-se que tomar decisões que remetem à Ética,
mas, por se estar desprovido de pressupostos que auxiliem nos julgamentos, é-se
levado a sempre se tomar uma parte do todo, ou seja, julga-se de acordo com a
situação que se apresenta.
Tendo em
vista a problemática da conduta humana a partir do pós-guerra e de como a ética
de princípios tornou-se desatualizada, pretende-se interpretar, sob a óptica da
representação literária contemporânea, como as obras de Camus refletem um
pensamento filosófico ético.
Partindo-se
dessa perspectiva , desejar-se-á demonstrar como essa
ética, configurada como do Absurdo , está presente nos meandros
das obras de Albert Camus como reveladoras do “paradoxo
da ausência de outrem ”;
tais como
são encontrados nas obras
O Estrangeiro [26],
A Queda [27],
O Mito de Sísifo[28],
A Peste [29],
O Exílio
e o Reino (O Hóspede ), O Equívoco [30],
Calígula[31]
e O Homem
Revoltado[32].
L‘absurde naît
de cette confrontation
|
O
|
Desse
modo, Camus abre a questão do ‘absurdo’ e do ‘suicídio’, não como temas da
filosofia absurda, como ele próprio afirma no prefácio dessa obra, mas como uma
preocupação metafísica em mostrar le mal
de l’esprit vivido pelo homem contemporâneo. O Mito de Sísifo talvez contenha uma de suas mais ousadas
tentativas especulativas sobre a busca de sentido do homem e do mundo. Em uma
de suas narrativas ele faz uma digressão sobre o desespero humano como prova da
ausência de sentido. Efetua algumas comparações, principalmente quando, à
esteira de Kierkegaard, ele afirma: “O absurdo, que é o estado metafísico do homem
consciente, não o conduz a Deus. O absurdo é o pecado sem Deus” [36] (1989, p.58).
É o
absurdo configurado fora do Éden, mas não no Mundo proscrito. É o absurdo em outro
Éden, um novo Éden criado pelo Homem onde Deus não mais o espreita nem a árvore
do conhecimento está plantada como símbolo de tentação e queda. No novo Éden, o
conhecimento está em toda parte, por isso o absurdo não se manifesta em um
único lugar nem contém o pecado original. O absurdo está na origem originária
(sempre a se fazer gênese) de todas as coisas (entes).
Na
espreita e na garimpagem do absurdo estar-se-á atento, de mãos dadas com a
literatura camusiana, para que ele seja desvendado. Contudo, as fronteiras a
serem atingidas não ultrapassam a própria existência do homem. Somente desse
modo, poder-se-á concluir algum paradigma ético a fim de colocá-lo na Soleira da casa do homem contemporâneo.
Não olvidando, contudo, que o pensamento de Camus não é uma mera atualização da
filosofia grega.
Consoante tal prerrogativa, ao se
verificar Camus em alguns de seus personagens, poder-se-á notar que existem
traços marcantes de seu estilo de vida, contudo, elevando-se ao plano de uma
existência engajada e revoltada com o próprio absurdo que se instaura entre o
homem e o mundo. Maurice Blanchot (1943) ao se referir ao Estrangeiro de
Camus, compara-o da seguinte forma:
A evocação
camusiana não é apenas a da denominação de “todos os nomes do absurdo”, [42]
mas a responsabilidade das tarefas humanas que encontram no outro uma
referência de limite. Desse modo, a percepção desse limiar se nos dá a partir
da desmedida praticada pelo próprio homem. Diferentemente do que se pensa,
Camus em nenhum momento pretende reduzir esse mesmo homem à história como
fizera o hegelianismo e o existencialismo. De início, a ordem individual se
torna coletiva por meio de seu próprio élan e sob a pressão da história. Camus
não recusa esta última, porém, recusa de torná-la sacra e não crê mais em seu
valor abSoluto igual aquele de um Deus ou da
Razão. A história, segundo ele, não pode dar um sentido à vida, pois ela o tem
nela mesmo. Camus encarna, então, o que Sartre devia saudar como: “a admirável conjunção de uma pessoa, de uma
ação e de uma obra”. Sem equívoco, poder-se-ia verificar a
constelação Sartre-Camus reinando sobre a juventude e a intelligentsia de sua época. Apesar de que, a bem
da verdade, Camus recusara todo tipo de etiqueta que o considerasse
“existencialista” e se recusara em ser, igualmente, um maître à penser.
Devido a sua
coerência em pensar e ser; seu engajamento e sua atenção constantes com as
mazelas do mundo em sua época fizeram de Camus um homem de revolta que
profetizava, inclusive, a esperança. Desse modo, a miséria encontrada nas
populações muçulmanas de Kabylia (Argélia), em 1939, era, para Camus, não
apenas o espectro da fome, mas, paradoxalmente, o espectro da esperança de um
mundo em que os homens não tivessem que disputar com os cachorros os restos de
comida. A devastação e o extermínio de milhares de vidas humanas provocados
pelas bombas atômicas lançadas em Hiroshima e Nagasaki eram, para Camus, não
apenas uma demonstração de poder bélico em uma guerra absurda, mas, sobretudo,
uma disseminação do absurdo da prepotência humana que adquiria uma magnitude
sem precedentes; todavia, balbuciava e chorava em suas vítimas o apelo da
compaixão que poderia se tornar Solidariedade
mundial.
Tendo ainda
o sentimento de luto
do “homem revoltado”, segue-se, a título de Réquiem ,
o Artigo de Jean-Paul Sartre (1972, p.
110-113) publicado depois da morte de Camus, no France-Observateur:
Albert Camus:
Há seis meses, ontem mesmo,
perguntávamos: “Que irá ele jazer?” Provisoriamente dilacerado por contradições
que devemos respeitar, tinha escolhido o silêncio. Mas ele era um desses
homens invulgares pelos quais temos a certeza de poder esperar porque escolhem
lentamente e permanecem fiéis à sua escolha. Um dia, havia de falar. Não
ousaríamos sequer arriscar uma conjectura sobre o que ele diria. Mas pensávamos
que ele mudava com o mundo, como todos nós: isso bastava para que a sua
presença continuasse viva.
Tínhamo-nos zangado, ele e eu: uma
zanga nada significa — mesmo que nunca mais nos voltássemos a ver —, é
simplesmente uma outra maneira de vivermos juntos e sem nos perdermos de
vista no mundo pequeno e estreito que nos é dado para nele vivermos. Isso não
me impedia de pensar nele, de sentir o seu olhar na página do livro, no jornal
que ele lia e de dizer para comigo: “Que dirá ele disto? Que dirá ele disto neste
momento?”
O seu silêncio, que, conforme os
acontecimentos e o meu humor, eu considerava por vezes demasiado prudente e por
vezes doloroso, era uma qualidade de cada dia, como o calor ou a luz; mas humana.
Vivia-se com ou contra o seu pensamento, tal como no-lo revelava os seus
livros — principalmente La Chute, o mais belo e talvez o menos
compreendido —, mas sempre através dele. Era uma aventura única na sua cultura,
um movimento cujas fases tentávamos adivinhar, assim como o termo final.
[...] Ele
era , por
assim dizer ,
essa inabalável afirmação. Por pouco que se lesse ou
se reflectisse Camus, esbarrava-se com
os valores humanos
que ele
guardava nas suas mãos
fechadas: ele punha
o acto político em
questão . Era necessário ou transformar a sua opinião ou
combatê-lo: indispensável , em resumo , a essa tensão que faz
a vida do espírito .
Mesmo o seu
silêncio , nestes últimos
anos , tinha
um aspecto positivo : este
cartesiano do absurdo recusava-se a abandonar o terreno seguro da moralidade
e a comprometer-se nos caminhos incertos da prática .
Adivinhamo-lo e adivinhávamos também os conflitos que ela calava; porque
a moral , se a consideramos sozinha , exige ao mesmo
tempo a revolta
e condena-a.
Esperávamos,
era preciso esperar, era preciso saber: fosse o que fosse que Camus tivesse
podido fazer ou decidir no futuro, ele nunca deixaria de ser uma das forças
principais do nosso campo cultural, nem de representar, à sua maneira, a
história da França e deste século. Mas nós tê-lo-íamos talvez sabido e
compreendido o seu itinerário. Ele tinha feito tudo — uma obra toda — e, como
sempre, estava tudo fazer
(sic.). Ele dizia-o: “A minha obra está diante de mim.” Acabou. O
escândalo particular desta morte é a abolição da ordem dos homens pelo inumano.
A ordem humana é, por enquanto,
apenas uma desordem, é injusta, precária, permite que se mate, que se morra de
fome: mas pelo menos é fundada, mantida e combatida por homens. Nessa ordem,
Camus devia viver: esse homem em contínuo devir fazia-nos duvidar de nós
próprios, era ele mesmo uma interrogação que procurava a sua resposta; vivia
no meio de uma longa vida; para nós, para ele, para os homens que fazem reinar
a ordem e para os que a recusam, era importante que ele saísse do silêncio, que
decidisse, que concluísse. Outros morrem de velhos, outros, sempre
preocupados, podem morrer em qualquer momento, sem que o sentido da sua vida,
seja por isso modificado. Mas para nós, indecisos, sem norte, era necessário
que os nossas melhores homens chegassem ao fundo do túnel. Poucas vezes as
características de uma obra e as condições do momento histórico exigiram tão
claramente que um autor permanecesse vivo.
Chamo um escândalo ao acidente que matou Camus porque
faz surgir no coração do mundo humano o absurdo das nossas exigências mais
profundas. Camus, com 20 anos, bruscamente atacado por um mal que perturbava a
sua vida, descobriu o absurdo — imbecil negação do homem. Habituou-se a isso,
pensou a sua insuportável condição, reSolveu a sua situação. E, no entanto,
ser-se-ia levado a crer que só as suas primeiras obras dizem a verdade da sua
vida, pois este doente curado é esmagada por uma morte imprevisível e vinda de
outro lado. O absurdo seria essa pergunta que já ninguém lhe faz, que ele não
faz já a ninguém, esse silêncio que nem já silêncio é, que já não é abSolutamente
nada.
Não o creio. A partir do momento em que ele se manifesta,
o inumano torna-se parte do humano. Toda a vida ceifada — mesmo se é a vida de
um homem tão novo — é ao mesmo tempo um disco que se parte e uma vida completa.
Para todos os que o amaram existe nesta morte um insuportável absurdo. Mas será
necessário aprender a ver esta obra mutilada como uma obra total. Mesmo na
medida em que o humanismo de Camus contém uma atitude humana em relação à morte
que deveria surpreendê-lo, na medida em que a sua procura orgulhosa da
felicidade implicava e reclamava a necessidade inumana de morrer,
reconheceremos nesta obra e na vida que dela não é separável a tentativa pura e
vitoriosa de um homem para reconquistar a sua morte futura cada instante da sua
existência.
[1] Leitmotiv – idéia , fórmula que reaparece de modo
constante em
obra literária ,
discurso publicitário
ou político ,
com valor
simbólico e para expressar
uma preocupação dominante .
[2] Fundamento ontológico
— SOL — base metafísica
de todo pensamento
camusiano; realidade material
que , além
de representar a natureza ,
transmuta-se em realidade
primordial do destino
humano ; princípio
(arché) movedor do desejo humano sem culpa ; personificação da tragicidade grega na contemporaneidade de Camus; enquanto termo
utilizado por Camus encontra-se, a propósito , nas obras :
Núpcias , O Verão e O Estrangeiro
(é citado 60 vezes ). Nas demais obras , tais como : A
Peste , O Mito
de Sísifo, ele praticamente não se inscreve.
[4] Prometeu — filho do Titã Jápeto e da Oceânida Climene, rouba o fogo sagrado do Olimpo
para entregar aos homens , tornando-se o primeiro
benfeitor da humanidade .
O mito de Prometeu foi narrado pelos poetas
Hesíodo e Homero (cerca de 700 a. C.) e por Ésquilo (cerca
de 470 a. C.) na obra Prometeu
Acorrentado. Fora condenado por Zeus a ser acorrentado
numa coluna no alto
das montanhas do Cáucaso e durante o dia
uma águia descia do Olimpo
para corroer seu fígado , mas a noite ele se regenerava.
[5] As citações que
se seguem neste estudo referentes às obras
de Albert Camus estarão apresentadas de forma bilíngüe para auxiliar o leitor a perceber algumas passagens
intraduzíveis , mesmo
porque , as traduções
em língua
portuguesa ainda carecem de um aprimoramento .
As demais citações
de obras de outros
autores serão
apresentadas, exclusivamente em língua
portuguesa.
[6] Não se
pode evadir totalmente
da tragicidade quando se verifica a vida de Camus. Sabe-se que
no acidente de carro
que provocou sua
morte , fora
encontrado um bilhete
de trem com
o mesmo trajeto
sem uso .
[7] Desde logo , quando se
usa o termo
natura em
se referindo a vida ou
a alguma concepção do pensamento camusiano, denota-se que
a questão da natureza
humana , no sentido
helênico , está posta .
Contrariamente, o termo
“condição humana ”
ao ser aqui tratado , será subentendido como
uma metáfora da “natureza
humana ”. Isto é, a condição
humana em
Camus tem como fundamento
metafísico a própria
natureza humana ,
presa , evidentemente ,
a tudo aquilo
que serve de elemento
motivador e provocador das ações
humanas, tais como :
o Sol, o mar , o vento ,
a areia da praia .
Só se pode entender as ações
morais (conduta
humana ) em
Camus a partir destes pressupostos in natura . Portanto ,
a ´condição humana ´,
ao ser abordada, deve sempre
ser entendida
como algo
dependente da natureza
humana .
[9] Vale assinalar
que a influência
da literatura de Dostoievski no pensamento
de Camus é grandiosa . Além de ele tratar do problema da recusa do homem
da salvação celeste em
sua obra
O Homem Revoltado, Camus escreve
uma adaptação para
o teatro da peça
Os Possessos de D.
[10] O servo que mata o pai de Ivan
Karamázov, personagem da obra Os Irmãos
Karamázovi.
[11] O pensamento filosófico hegeliano tem como
ponto de partida a morte de Jesus Cristo na cruz — uma teologia da sexta-feira
santa — Ele inicia sua demonstração da instauração do que se evidenciará como
Espírito AbSoluto a partir do momento em que, segundo Hegel,
tenha a coragem de viver como homem-deus. Ora, se Deus
morreu em uma cruz numa sexta-feira, cabe, agora ao homem, iniciar a construção
de um novo reino, porque Deus está definitivamente no Homem e não mais
transcendentalmente fora dele.
[12] Bar-Café situado no bairro
Saint-Germain des Pres de Paris, normalmente
freqüentado por intelectuais
na época de Camus e Sartre (N. do A.).
[13] Referência ao ensaio
filosófico de Camus, intitulado O Mito de Sísifo, traduzido pela
editora Guanabara no Brasil.
[15] ÉTICA DE OCASIÃO — ou Ética de Situação, como
assim também é identificada, privilegia o valor normativo da situação, isto é,
do conjunto de circunstâncias externas e internas (sobretudo as relações
pessoais) em que o sujeito moral se encontra no momento de agir. Tendo surgido na Europa Central por volta dos anos 30, em resultado de
diversos fatores históricos e doutrinais, estenderam-se a outros países,
sobretudo depois da II Guerra Mundial. Toda a forma de Ética de Situação que
exclua qualquer norma moral universal, ou que admita que ela possa ser
contraditada e invalidada pela exigência ou norma da situação é inadmissível. Baseia-se, entre outros, no falso suposto de
que o indivíduo humano é abSolutamente único, esquecendo que, devido à sua
materialidade e criaturalidade, ele não pode ser tal. O
problema da Ética de Situação em contraposição à Ética de Princípios é que
aquela coloca o homem em estado de constante julgamento porque ele está
desprovido de juízos ‘a priori’ éticos que o auxiliem na tomada de decisão. A
ética de ocasião, obriga o homem à, em situações particulares, tomar uma
decisão. Mesmo porque a última norma de moralidade é a própria consciência do
indivíduo, como asseverou Tomás de Aquino. No entanto, essa decisão é tomada a
partir somente de uma parte do problema que se lhe impõe, mas não o
responsabiliza na decisão do todo da situação. Ele escolhe apenas uma parte
para se sair daquela situação. Sua decisão é isenta de toda e qualquer
responsabilidade com a problemática da existência, do mundo e de todos os
Outrem. Seu julgamento encerra-se
na realidade imediata que lhe garantirá sua sobrevivência. (No.do A.).
[16] J’ai grandi dans la mer et la
pauvreté m’a été fastueuse, puis j’ai perdu la mer, tous les luxes alors m’ont
paru gris, la misère intolérable (CAMUS, 1998, p. 169).
[17] Ao se constatar que Albert havia vomitado sangue ,
descobre-se que ele
tinha o pulmão
direito atingido pela
tuberculose . Ele tivera completado dezessete anos e com ele seu universo familiar
houvera desabado: o futebol , a natação , as grandes
gandaias na cidade .
Mais tarde ,
em seu
primeiro romance
não publicado em
vida , A Morte
Feliz , Camus coloca em
cena um
personagem que
morre de pleurisia ao final da história ,
e que , desde
o primeiro capítulo ,
sinal precursor ,
espirra e sente calafrios
e febre . Em
1930, não existia nenhum
remédio milagroso
para curar a tuberculose que o
atingira ainda jovem .
Sabendo de sua
ausência na escola ,
Jean Grenier vai procurá-lo em sua casa que o recebe ainda
sem nenhum
ânimo . (CHAILAN, 2001, p.01).
[18] A “Ideologia Mediterrânea” tem Tipasa como
símbolo : Poder-se-ia falar, a propósito d´ideologia mediterrânea: ele faz
a apologia da África do Norte, servindo-se, quase sempre, de imagens forjadas
por escritores efetivamente estrangeiros à África, mas que, tendo-as
descoberto, foram seduzidos por ela. A idéia é que essas margens abençoadas de Sol produziram homens que conhecem seus limites e a justa medida das
coisas. É evidente que, aos olhos dos Europeus do Norte, o
Mediterrâneo aparece, quase sempre, como um se volúvel e inflamado; mas os
jovens Mediterrâneos letrados são persuadidos que eles são, na medida do
possível, os herdeiros dos clássicos gregos. O símbolo desta herança logo se
torna, para Camus, o sítio arqueológico de Tipasa onde as ruínas romanas
contrastam com a vegetação luxuriante próximas do mar. “Na primavera, escreverá Camus, Tipasa é
habitada pelos deuses e os deuses falam ao Sol e ao
odor dos absintos” (CHAILAN, 2001).
[19]
Ao mesmo tempo, Camus inicia seu terceiro e
último ano na Universidade d´Alger ao longo do qual ele deve preparar seu
diploma de estudos superiores. A dissertação tratará das relações entre o
início do cristianismo e a filosofia grega: como um pensamento vindo do
Oriente-Próximo pode encontrar o pensamento grego para vir a ser o que chamamos
de cristianismo? Camus confronta o pensamento grego, em que o homem é a medida
de todas as coisas, com o pensamento cristão. Obtêm seu diploma de estudos
superiores abrindo-lhe às portas do ensino superior, mas o Estado, então, não
pode recrutar um candidato tuberculoso (CHAILAN, 2001).
[20] O Novo Éden — parafraseando o homem descrito
no Livro do Gênesis da Bíblia, Camus, contudo, não revigora o Éden como lugar
acabado, perfeito e em que a presença do outro tem espaço garantido. O Novo
Éden, segundo Camus, apesar de parecer um Paraíso Perdido que precisa ser
restaurado, é, contrariamente, um Paraíso sem outrem em que o homem da
urbanidade moderna engendra sua morada, iSolada de todos os outros homens. A vida no Novo
Éden é, portanto, a garantia de sobrevivência num caos social em que o
individualismo se pretende imune à presença de outrem.
[21] Je pense à Camus : j'ai à peine connu Camus. Je lui ai
parlé une fois, deux fois. Pourtant, sa mort laisse en moi un vide énorme. Nous avions tellement besoin de ce juste.
Il était, tout naturellement, dans la vérité. Il ne se laissait pas prendre par le courant; il n'était pas une girouette; il
pouvait être un point de repère
(T. do A.).
[22] Entenda-se, por essa supervalorização,
‘excesso de objetivação do mundo’.
[23] Zeus, Apolo, Afrodite, Hera, As Moîras, Plutão
(Hades) etc...
[24] Desviar-se, isto é, Clinamen em grego e definido por Lucrécio pelo
seguinte: quando os corpos são levados em
linha reta através do vazio e de cima para baixo pelo próprio peso, afastam-se
um pouco de sua trajetória, em altura incerta e em incerto lugar, e tão-somente
o necessário para que se possa dizer que se mudou o movimento. Se não
pudessem desviar-se, todos eles ,como gotas de chuva, cairiam pelo profundo
espaço sempre de cima para baixo e não haveria para os elementos nenhuma
possibilidade de colisão ou de choque; se assim fosse, jamais a natureza teria
criado coisa alguma (PESSANHA,
1994, p. 71).
[25] Ou seja, da falta de “juízos a priori” no
sentido kantiano do termo.
[26] O ESTRANGEIRO (L´Étranger) - Um dos romances
mais intrigantes
e polêmicos da literatura do século
XX, O Estrangeiro , de
Camus, retrata a vida
de um homem
(Meursault) comum que
mata um árabe , sem motivo aparente ,
e é condenado pela corte
francesa da Argélia ocupada , não por ter assassinado alguém ,
mas por
não ter
chorado no enterro de sua mãe . Obra de pungente ousadia e coragem , trata da aparente
indiferença humana
como o absurdo
encarnado em
nossa consciência
ocidental .
[27] A QUEDA (La Chute ) - Retrato do homem
contemporâneo , A Queda
reflete o mal
estar de uma civilização
moderna , urbana
e Solitária, que , em
detrimento da Solidariedade, prefere permanecer indiferente , mesmo
que , tenha de pagar
o quinhão da culpa
sem redenção .Clamance,
o protagonista , vive em seu próprio mundo como se tivesse um
interlocutor , dialogando, portanto , consigo
mesmo . Por ter
se deparado com um
apelo de um
corpo que
cai no rio , tenta ,
a toda prova ,
passar ao largo .
Mas o grito
da culpa o persegue sem
trégua ...
[28] O MITO DE SÍSIFO (Le Mythe de
Sisyphe) - Ensaio de grande envergadura
filosófica, O Mito de Sísifo, além de ser uma interpretação da punição
do herói grego
imposta pelos
deuses , é uma reflexão ,
sem precedentes, da condição
de homens que
vivem submetidos à repetição no cotidiano da existência .
Camus mostra a rebeldia
de Sísifo, não como
uma atitude plena
de ressentimentos, mas como uma atitude de coragem em querer lutar incessantemente pela
novidade embutida
na pedra da repetição .
Esse ensaio
é a carta de alforria
do revoltado das malhas do destino , contudo ,
procurando entender o absurdo
circunscrito no mundo
da existência , até
que ele
se revele à razão humana .
[29] A PESTE (La Peste )
— Numa cidade portuária surge inexplicavelmente uma epidemia
de peste bubônica que
avassala a quase todos
os seus moradores. Um
médico , (Dr. Rieux) guardião
da saúde pública ,
é o único que
consegue diagnosticar a doença ,
mas não
consegue eliminá-la. Pouco a pouco , os ratos
vão se alastrando e proliferando em todos os becos e meandros
da cidade . De um
lado , permanecem os crédulos
da punição celeste ,
de outro , os incrédulos
do apocalipse que
buscam conhecer as causas
através dos sintomas
da peste . Alegoria
da ocupação nazista
em Paris, Camus metaforiza o inconformismo e as conseqüências
da alienação de um
povo .
[30] O EQUÍVOCO (Le Malentendu) — A fim de melhorar
de vida um
jovem deixa
a família e só
retorna vinte anos
depois , próspero ,
casado e com
um filho .
No intuito de fazer
surpresa a sua
mãe e a sua
irmã, ele se hospeda sozinho na pensão
que pertenciam às duas. Habituadas a assassinar os hóspedes
para usufruírem seus
bens e poderem comprar
uma casa de praia ,
sem saberem que
aquele se tratava do filho pródigo ,
decidem matá-lo, como os demais , mas são descobertas
pela esposa
da vítima que
reivindica o seu desaparecimento .
Obra de estonteante surrealismo
trata da condição
humana em
seus meandros
individuais e da Solidão que desencadeia o desespero com o
único intuito
de se ser feliz . Paradoxo entre a liberdade
e a infelicidade , Camus subentende um Deus sem fala e homens revoltados com
o peso de sua
existência .
[31] CALÍGULA (Caligula) — Aclamada vigorosamente
pela crítica
e pelo público ,
a peça Calígula de Camus intenta revelar o adultério da criatura
contra o criador ,
personificado na figura histórica de um
dos césares mais cruéis do Império Romano que , sem medida , mas pleno de desvario ,
pretende levar a termo
o niilismo do homem ,
sustentado por um
poder irrestrito ,
porém , inalcançável quando
se deseja o Cosmo .
O absurdo aqui
é tratado pela
via da relação
incestuosa entre
Calígula e sua irmã. Amor proibido pelos deuses , somente é permitido
aos mortais que
detêm poder divino , como o próprio César, o deus encarnado ,
que se pretende homem .
[32] O HOMEM REVOLTADO (L´ Homme
Révolté) — Contrariamente ao que a esquerda intelectual
esperava, Camus lança mísseis para todos os lados ao tratar da questão esperada por todos diante de
uma realidade de pós-guerra ,
bombardeando as esferas cultas de uma época que havia se
acostumado a lidar com
a condição da revolta
pelo prisma
da ideologia . O Homem
Revoltado não é apenas
uma reflexão de filosofia
política sob
os moldes da tradição
moderna , mas ,
sobretudo , uma análise
rigorosa e contundente
de todo homem
que aprendeu a se revoltar
diante das injustiças
sem se deixar
contaminar pelas mágoas
individuais . Apresentando, desse modo ,
uma forma de conduta
que conduz o revoltado a desenvolver
uma atitude de Solidariedade humana
inigualável .
[35] Il n’y
a qu’un problème philosophique vraiment sérieux: c’est le suicide. Juger que la
vie vaut ou ne vaut pas la peine d’être vécue, c’est répondre à la question
fondamentale de la philosophie (CAMUS,
1998, p. 17).
[36] L’absurde, Qui est l’état
métaphysique de l’homme conscient, ne mène pas à Dieu. (...) L’absurde c’est le
péché sans Dieu (CAMUS, 1998, p. 62).
[38] Ethos — provém
do radical grego ethos
= hábito , costume ,
estilo de vida e ação ; estada permanente
e habitual , abrigo
protetor , espaço
humano ; o modo
de agir do indivíduo
articula o ethos como caráter e o
ethos como hábito ;
Ética seria o saber
racional do éthos, segundo
Henrique de Lima Vaz.
[40] Alethéia – termo
do grego clássico
que designa o conceito
de verdade como
desvelamento do ser ,
atestado na filosofia
helência.
[41] A niilização em
Camus adquire status de negação abSoluta em sua obra O Homem
Revoltado quando interpreta o niilismo do Marques de Sade.
[42] Vide texto publicado na Revista Ethica da
Universidade Gama Filho, 2003, intitulado: Todos
os Nomes do Absurdo (de Camus a Saramago) e que se encontra no apêndice
desta obra.
[43] O suicído, por exemplo , em
Camus, enquadra-se numa das formas de
niilização, principalmente quando se pretender demonstrar que as causas
dos suicídios não
são simplesmente
impostas pela condição
humana , porém ,
engendram-se a partir de um
mal estar da civilização que
se esvaziou da noção de “outro ”, em que a diferença
está sempre reduzida à noção do “mesmo ”;
a morte do outro
não é apenas
uma decorrência da morte
de Deus . Há inúmeros suicídios no Século
XX que , possivelmente, foram provocados
e desencadeados por um
mal d´esprit aparentemente inexplicável .
Se Camus afirma, em O Mito de Sísifo que
no suicídio o absurdo
não se reSolve; ele o carrega junto
para a morte deixando-nos
a mercê do inefável ,
deve-se, portanto , tentar
compreender as suas
causas para que o homem do porvir não
tenha que pagar
o quinhão da culpa
sem possibilidades de se redimir ,
como se verifica em
sua obra ,
A Queda .
[44] Pied-Noir, do fr., pés-preto, sexpressão
utilizada no Magrebe (países do norte da África de cultura
árabe ) para designar os descendentes
dos franceses nascidos na Argélia.
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