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sexta-feira, 23 de agosto de 2013

O ESTRANGEIRO e a Ética do Absurdo

 



Lourenço Leite

 [1]
A
 Evocação da justiça a partir do rosto de outrem, anunciada anteriormente, pretendeu desmoronar a insensatez da indiferença humana, inclusive quando ela atinge o limiar extremo da aniquilação. A perspectiva que se abriu está em consonância com uma demonstração da ausência de outrem, não como sintoma de indiferença, mas, sobretudo, com a presença de algo irremovível do destino humano. Em decorrência disso, a “protagonização” [2] realizada por Camus, em O Estrangeiro, não pretende apenas apresentar uma tipificação do personagem central como sendo alguém que reflete uma atitude peculiar. O comportamento do protagonista reflete um tipo de atitude encontrado no homem de hoje, em que, mesmo sentindo “a terna indiferença do mundo”, que faz parte de sua característica individual, deseja, paradoxalmente, um tipo de reconhecimento, a despeito de vir acompanhado de “gritos de ódio”.
Um dos romances mais intrigantes e polêmicos da literatura do Séc. XX O Estrangeiro, de Camus é, sem embargo, a obra prima da Ética do Absurdo. Merecedor de crítica e interpretação, não permanecera indiferente ao olhar fulgurante e admirado de um dos maiores representantes do existencialismo, Jean-Paul Sartre, que torna público sua empolgada resenha, dando-nos, talvez, além de sua impressão, algumas chaves de entendimento dessa obra:
Mal saiu da tipografia, O Estrangeiro (L'Étranger), de Albert Camus, teve o maior sucesso. Dizia-se e repetia-se que era o melhor livro desde o armistício. Entre a produção literária da época, esse romance era ele próprio um estrangeiro. Chegava-nos do outro lado da linha, do outro lado do mar; falava-nos do Sol, nessa desabrida Primavera sem carvão, não como duma maravilha exótica, mas com a familiaridade cansada de quem o gozou bastante; não lhe interessava enterrar mais uma vez e com as próprias mãos o antigo regime, nem imbuir-nos a sensação da nossa indigni­dade; ao lê-lo, recordava-se que tinha havido outrora obras que pretendiam valer por si mesmas e que nada queriam provar. Mas, como contrapartida desse carácter gratuito, o romance era bastante ambíguo: como se poderia compreender essa personagem que, no dia seguinte ao da morte da mãe, “tomava banho, iniciava uma aventura amorosa irre­gular e ia rir diante dum filme cômico”, que matava um árabepor causa do Sol” e que, na véspera da sua execução, afirmando quetinha sido feliz e continuava a sê-lo”, desejava muitos espectadores à roda do cadafalso para “o receber com gritos de ódio”? Uns diziam: “é um tonto, um pobre diabo”; outros, mais inspirados: “é um inocente”. Mas fal­tava compreender o sentido dessa inocência (SARTRE, 196-, p. 01).
Prefigurado a partir de sua obra: A Morte Feliz (La Mort Heureuse), escrita em 1936/7 e publicada post mortem, em 1971, O Estrangeiro (L’Étranger, de 1942), além de ser um romance, constitui-se num ensaio metafórico sobre o Absurdo, um de seus temas filosóficos mais pungentes, que se podem encontrar, igualmente, nos escritos de O Mito de Sísifo (Le Mythe de Sisyphe, de 1942), Calígula (Caligula, de 1944) e O Equívoco (Le Malentendu, de 1944).
Em A Morte Feliz, Camus prefigura o protagonistaO Estrangeiro de forma bastante mítico-trágica. Pode-se, antever, o prenúncio do cenário, ou melhor, das circunstâncias que irão motivar Meursault a cometer o assassinato do árabe. A vítima se chama Zagreu, nome que se pode remeter ao primeiro nome da divindade mítica da Grécia, Dioniso, em que, como se sabe, foi despedaçado pelos Titãs a pedido de Hera. Esse diásparagmos[3] de Dioniso seria, em A Morte Feliz, a necessidade de despedaçamento do personagem central que, ao contrário, mata o outro como se fosse a si mesmo. Há uma culpa que precisa ser redimida, mas enquanto ela não ocorre, o outro se torna o bode-expiatório de julgamento.
Ao passo que, O Estrangeiro, é um romance, que não se categoriza como realista nem fantástico, mas que possui, entretanto, duas características literárias que marcaram o autor: o naturalismo e o surrealismo francês. Narra a vida de um funcionário público, Meursault, que é surpreendido em meio ao seu cotidiano com a notícia da morte de sua mãe. Após obter alguns dias de licença de seu chefe, dirige-se ao asilo onde ela residira nos seus últimos anos e, diante do velório e do enterro, não consegue chorar sua morte, causando perplexidade entre os demais. Homem Solitário e sem demonstrações de afeto, vive uma melancolia que é somente tolerada por sua namorada. Ao passear na praia com amigos, é abordado por um Árabe que o faz se sentir ameaçado. Dessa impressão vai surgir o ambiente propício para ele cometer um assassinato. Ao ser preso e julgado, revive sob os moldes de sua subjetividade o confronto entre si mesmo e o mundo, mas permanecendo fiel às suas verdades, o que causa um enorme constrangimento entre seu advogado/promotor e os jurados, além de escandalizar o capelão da prisão pela sua falta de fé na justiça divina. É condenado, pela ironia do destino, não por ter assassinado uma pessoa, mas por não ter chorado no enterro de sua mãe.
Camus dá o nome de Meursault, protagonistaO Estrangeiro, a partir de duas realidades marcantes da Argélia: O Mar (La Mer) e O Sol (Le Soleil), sublinhando, desse modo, a harmonia de seu personagem com os elementos da natureza. O primeiro será o bálsamo de M. e o segundo seu inferno[4]. Assim, descreve M. o Sol:À minha volta, era sempre a mesma paisagem luminosa, plena de Sol. O brilho do céu era insuportável [5] (CAMUS, 197-, p. 21).
O Sol para M. é a representação do fora, do mundo em que vivem as pessoas sem cor[6] e sem sentido[7], porque não buscam a verdade dentro de si mesma. Em contraposição, à noite, realidade prometéica[8] dos que meditam na Solidão da melancolia, mostra-se como a real possibilidade de se manter fiel às convicções mais profundas e lugar de abastecimento de seu ser. “A noite, nesta região, devia ser como uma “trégua melancólica” (grifos do autor). Hoje, o Sol escaldante que fazia estremecer a paisagem, tornava-a inumana e deprimente” [9] (CAMUS, 197-, p. 20).
Concernentemente a atualidade do mito de Prometeu, Camus revigora-o em uma das passagens de seu ensaio intitulado Prometeu nos Infernos que se encontra em Núpcias:
Que signifie Prométhée pour l’homme d’aujourd’hui? On pourrait dire sans doute que ce révolté dressé contre les dieux est le modèle de l’homme contemporain et que cette protestation élevée, il y a des milliers d’années, dans les déserts de la Scythie, s’achève aujourd’hui dans une convulsion historique qui n’a pas son égale. Mais, en même temps, quelque chose nous dit que ce persécuté continue de l’être parmi nous et que nous sommes encore sourds au grand cri de la révolte humaine dont il donne le signal Solitaire (CAMUS, 1998, p. 119).

Que significa Prometeu para o homem de nossos tempos? Poder-se-ia dizer, provavelmente, que esse revoltado contra os deuses é o modelo do homem contemporâneo e que o protesto lançado, há milhares de anos, nos desertos da Cita deságua hoje numa convulsão histórica sem igual. Contudo, ao mesmo tempo, algo nos faz pensar que aquele ser perseguido continua vivendo sua sina entre nós e que ainda estamos surdos ao tremendo grito da revolta humana cujo sinal Solitário ele nos dá (CAMUS, 1979, p. 92).
Mas, muito embora Prometeu ainda esteja no panteão dos heróis de nossa época, ele não se atualizou como um pungente paradigma da liberdade. Como asseverou Camus, a presença das vozes ensandecidas de nosso tempo continua a perseguir o filantropo da civilização:
L’homme d’aujourd’hui est en effet celui qui souffre par masses prodigieuses sur l’étroite surface de cette terre, l’homme privé de feu et de nourriture pour qui la liberté n’est qu’un luxe qui peut attendre; et il n’est encore question pour cet homme que de souffrir un peu plus, comme il ne peut être question pour la liberté et ses derniers témoins que de disparaître un peu plus. Prométhée, lui, est ce héros qui aima assez les hommes pour leur donner en même temps le feu et la liberté, les techniques et les arts. L’humanité, aujourd’hui, n’a besoin et ne se soucie que de techniques. Elle se révolte dans ses machines, elle tient l’art et ce qu’il suppose pour un obstacle et un signe de servitude. Ce qui caractérise Prométhee, au contraire, c’est qu’il ne peut séparer la machine de l’art. Il pense qu’on peut libérer en même temps les corps et les âmes. L’homme actuel croit qu’il faut d’abord libérer le corps, même si l’esprit doit mourir provisoirement. Mais l’esprit peut-il mourir provisoirement? En vérité, si Prométhée revenait, les hommes d’aujourd’hui feraient comme les dieux d’alors : ils le cloueraient au rocher, au nom même de cet humanisme dont il est le premier symbole. Les voix ennemies qui insulteraient alors le vaincu seraient les mêmes qui retentissent au seuil de la tragédie eschylienne : celles de la Force et de la Violence (CAMUS, 1998, p. 119-120).

[...] o homem atual é aquele que, em massas gigantescas, sofre sobre a estreita superfície da terra, o homem privado de fogo e de alimento, para quem a liberdade não passa de mero luxo que pode esperar; e para esse homem o problema não pode residir tão-somente em sofrer um pouco mais, assim como para a liberdade e suas derradeiras testemunhas a questão não pode ser apenas a de desaparecer um pouco mais. Prometeu, por sua vez, amou os homens o bastante para ser capaz de dar-lhes, a um tempo, o fogo e a liberdade, as técnicas e as artes. Hoje, a humanidade necessita das técnicas e a elasimportância. Revolta-se de dentro de suas máquinas, considerando a arte e tudo o que ela pressupõe como um obstáculo e um estigma de servidão. O que caracteriza Prometeu, ao contrário, é que ele não pode separar a máquina da arte. Julga possível libertar, concomitantemente, os corpos e as almas. O homem atual acredita na necessidade de libertar o corpo em primeiro lugar, ainda que o espírito deva morrer provisoriamente. Mas será que o espírito pode morrer provisoriamente? Na realidade, se Prometeu retornasse, os homens de hoje fariam como os deuses de outrora: cravariam-no ao rochedo, vítima do mesmo humanismo do qual é o símbolo primeiro. As vozes inimigas que insultaram o vencido no passado seriam as mesmas que repercutem no limiar da tragédia de Ésquilo: as da Força e da Violência  (CAMUS, 1997, p. 93).
Camus emprega o conceito aristotélico de Catarse presente nas palavras “força e violência” quando afirma: “as vozes inimigas que insultaram (tivessem insultado) o vencido no passado seriam as mesmas que repercutem no limiar da tragédia de Ésquilo: as da Força e da Violência”. A partir da Poética de Aristóteles, a Tragédia, por sua vez, caracteriza-se fundamentalmente pelo “Terror e Piedade (e) tem por efeito a purificação das emoções do caráter”, (ARISTOTELES, 1979, p.245) a Catarse, portanto.
Consoante essa análise caracterológica da interpretação dada por Camus ao mito de Prometeu, o protagonista de O Estrangeiro, de modo igualmente absurdo e paradoxal, hierofaniza um tipo de Prometeu às avessas, como um anti-herói. Ele se abriga das intempéries do cotidiano no aconchego de seu quarto e na comiseração de seus amigos. Não se vislumbra, portanto, a idéia de Solidariedade que é demonstrada n´O Homem Revoltado. A ajuda como “cuidado” se dá apenas no âmbito das relações interpessoais entre M. e seus amigos.
Poder-se-ia ressaltar que o impulso de Prometeu foi causado pela Hýbris, enquanto que o dos homens foi movido pela irreverência de Dioniso, como se pode identificar na Tragédia Grega. Contudo, o homem não é mais o mesmo após a expulsão do “paraíso”, isso denota que ele firma-se no mundo com altivez. Apesar de ter sido punido com o “trabalho árduo[10] e com a tarefa de se tornar livre dos deuses, de agora em diante vive com dignidade
Portanto, mesmo em meio a tantas adversidades, o homem continua querendo, assim como Prometeu, romper os grilhões que o escravizam. Com perspicácia, Camus retrata isso, por analogia ao Titã rebelde, em sua obra Núpcias:
Le héros enchaîné maintient dans la foudre et le tonnerre divins sa foi tranquille en l’homme. C’est ainsi qu’il est plus dur que son rocher et plus patient que son vautour. Mieux que la révolte contre les dieux, c’est cette longue obstination qui a du sens pour nous. Et cette admirable volonté de ne rien séparer ni exclure qui a toujours réconcilié et réconciliera encore le coeur douloureux des hommes et les printemps du monde (CAMUS, 1998, p. 124).

O herói acorrentado, mesmo sob o raio e o trovão divinos, mantém inabalável sua fé no homem. Assim, ele é mais duro que sua rocha, mais paciente que seu abutre. Melhor do que a revolta contra os deuses é essa longa obstinação que faz sentido para nós; e essa admirável vontade de não separar nem excluir nada que sempre reconciliou e reconciliará o coração dolorido dos homens e as primaveras do mundo (CAMUS, 1979, p. 96).
Diferentemente de Sísifo, “o herói acorrentado” mantém inabalável sua no homem. O espírito de Prometeu é altruísta por excelência, daí o seu reconhecimento como o maior benfeitor da humanidade. Prometeu é a real e desconcertante possibilidade de se restaurar “as primaveras do mundoque são sufocadas pelo inverno terrível da escravidão absurda da ignorância. O Prometeu camusiano, não-somente propicia ao homem de hoje o conhecimento, mas, sobretudo, a reconciliação dos corações doloridos e magoados pela falta de sua própria emoção, enquanto que Sísifo resiste aos deuses para mostrar-se superior, mesmo que tenha de repetir, incessantemente, a tarefa de rolar a pedra. Em Sísifo, a pedra é algo que acaba por refleti-lo. Ele se iguala à pedra. Mas, ambos, são obstinadamente presos à repetição e se tornam inquebrantáveis no cumprimento de suas ações.
Meursault, esse anti-herói prometeico, encontra-se igualmente acorrentado pelas efígies do moralismo cristão. Paradoxalmente, continuamente, blasfemava ao negar a presença estonteante do Sol que o impedia de refletir sobre sua própria condição. Com efeito, pode-se verificar um dos traços mais marcantes da literatura camusiana: o destino trágico. O ímpeto de M. não é sem razão. A razão é o destino que se torna trágico, inevitavelmente sediado pelos elementos da natureza. O Sol[11], assim como se encontra na Tragédia Grega, é uma das causas inebriantes do descomedimento. Essa desmedida pode, facilmente, por analogia, ser identificada com a Hýbris dionisíaca[12] em oposição ao Métron[13] apolíneo.
Vê-se, em seguida, a entrega do personagem de O Estrangeiro a um mundo de subjetividade onde ele permanece ‘si mesmo’ (paradoxalmente movido pelo impulso da Hýbris) e onde as hipocrisias da sociedade não tinham força de transformação. O “Conhece-te a ti mesmo[14] apolíneo, sob influência nietzschiana, declina e cede lugar ao “Vem a ser o que tu és”, tal como se verifica na citação seguinteO Estrangeiro:
C’était le même éclatement rouge. Sur le sable, la mer haletait de toute la respiration rapide et étouffée de ses petites vagues. Je marchais lentement vers les rochers et je sentais mon front se gonfler sous le Soleil. Toute cette chaleur s’appuyait sur moi et s’opposait à mon avance. Et chaque fois que je serrais les dents, je fermais les poings dans les poches de mon pantalon, je me tendais tout entier pour triompher du Soleil et de cette ivresse opaque qu’il me déversait (CAMUS, 1999, p. 60).

Era o mesmo brilho vermelho. Na areia, o mar ofegava com toda a respiração rápida e sufocada de suas pequenas ondas. Eu caminhava lentamente em direção às pedras e sentia minha testa inchar, sob o Sol. Todo este calor me apertava, opondo-se a meus passos. E cada vez que sentia o seu grande sopro quente no meu rosto, trincava os dentes, fechava os punhos nos bolsos das calças, retesava-me todo para triunfar sobre o Sol e essa embriaguez opaca que ele esparramava sobre mim (CAMUS, 197-, p. 61).
M. tenta a toda prova triunfar sobre o Sol. Sua resistência empreende-se através de seu corpo diante desse desvario do Sol ao fazer estardalhaços como se quisesse lembrar ao anti-herói que ele não pode ser de outro modo. Nesse momento crucial se pode testemunhar o limiar do humano sob os auspícios do destino e a luta de superação de si mesmo pela presença da consciência de culpa. Natureza e Razão são mostradas em evidência, sem se saber qual delas será superada. O ato moral dessa narrativa se tornaria ético se a natureza fosse superada pela razão.
Esse mesmo Sol será a causa de perdição, devido às circunstâncias, para Meursault vir assassinar o Árabe sem Nome. Morte essa que quebrará, como ele mesmo anuncia a harmonia da praia, lugar onde havia sido feliz. Pode-se verificar, a seguir, essa descrição magistral de Camus do contexto do mundo e da subjetividade simultânea de Meursault, ao se deparar com o outro como ameaça de morte.
Dès qu’il m’a vu, il s’est soulevé un peu et a mis la main dans sa poche. Moi, naturellement, j’ai serré le revolver de Raymond dans mon veston. Alors de nouveau, il s’est laissé aller en arrière sans retirer la main de sa poche. J’étais assez loin de lui, à une dizaine de mètres. Je devinais son regard par instants, entre ses paupières mi-closes. Mais le plus souvent, son image dansait devant mes yeux, dans l’air enflammé. Le bruit des vagues était encore plus paresseux, plus étale qu’à midi. C’était le même Soleil, la même lumière sur le même sable qui se prolongeait ici. Il y avait déjà deux heures que la journée n’avançait plus, deux heures qu’elle avait jeté l’ancre dans un océan de métal bouillant. À l’horizont, un petit vapeur est passé et j’en ai deviné la tache noire au bord de mon regard, parce que je n’avais pas cessé de regarder l’Arabe (CAMUS, 1999, p. 61-62).

Logo que me viu, ergueu-se um pouco, e meteu a mão no bolso. Eu, naturalmente, agarrei o revólver de Raymond, dentro do paletó. Então, o árabe deixou-se cair outra vez para trás, mas sem tirar a mão do bolso. Eu estava bastante longe dele, a uns 10 metros de distância. Adivinhava-lhe por instantes o olhar, entre as pálpebras semicerradas. Mas, na maioria das vezes, a sua imagem dançava diante de meus olhos, no ar inflamado. O barulho das vagas era ainda mais preguiçoso mais estagnado do que ao meio-dia. Eram o mesmo Sol e a mesma luz, sobre a mesma areia, que se prolongavam até aqui. Havia duas horas que o dia não progredia, duas horas que lançara âncora num oceano de metal fervilhante. No horizonte, passou um pequeno vapor, distingui sua mancha negra com o canto do olho, pois não deixara de fitar o árabe (CAMUS, 197-, p. 62-63).
O protagonista está inteiramente circunscrito em um ambiente repleto de elementos naturais, notadamente os da praia, que o conduzem em tautocronia a agir sem razão por causa do Sol. Cada evento que se sucede é mais importante que a figura ameaçadora do árabe. De súbito, Meursault percebe a figura de alguém (Árabe) que poderia trazer-lhe o inesperado; verifica-se que a natureza, outrora eternamente cúmplice e fiel, se paralisasse diante do estranho[15], representado pela lâmina de metal: Havia duas horas que o dia não progredia duas horas que lançara âncora num oceano de metal fervilhante”. [16] (CAMUS, 197-, p. 62-63).
O vapor que passara no horizonte era, para M., como um bonde de sua existência que estaria perdendo. Há um desconforto em M. diante da realidade como se ela fosse responsável por interromper uma apreciação da vida, em estado de gozo, que ele não gostaria de perder nenhum acontecimento, por mais efêmero que fosse ou por mais sem importância para os demais a sua volta. Leia-se a continuação da narrativa de Camus para se verificar como isso se dá:
J’ai pensé que je n’avais qu’un demi-tour à faire et ce serait fini. Mais toute une plage vibrante de Soleil se pressait derrière moi. J’ai fait quelques pas vers la source. L’Arabe n’a pas bougé. Malgré tout, il était encore assez loin. Peut-être à cause des ombres sur son visage, il avait l’air de rire. J’ai attendu (CAMUS,  1999, p. 61-62).

Pensei que bastava dar meia-volta e tudo estaria acabado. Mas, atrás de mim, comprimia-se toda uma praia vibrante de Sol. Dei alguns passos em direção à nascente. O árabe não se mexeu. Apesar disso, estava ainda bastante longe. Parecia sorrir, talvez por causa das sombras sobre o seu rosto. Esperei (CAMUS, 197-, p. 62-63).
M. pensou que era suficiente dar meia-volta, como se faz perante situações que causam desconforto. Com isso, ele retomaria sua cotidianidade e estaria a salvo da interpelação do outro. A redução que Camus elabora nessa passagem é tão extraordinária, que causa, igualmente como a M., um estado de estupor diante do “outro”. O homem de hoje encarna, inevitavelmente essa atitude, quando se recusa a acolher o estranho. O absurdo da estranheza se configura. Porque de um lado, o cotidiano comprime como a M., “uma praia vibrante de Sol, mas de outro, expande “alguns passos em direção à nascente. Dá-se a impressão que M. quervoltar às origens” e que essa volta evitaria uma catástrofe. Há um instante fugaz naquela situação inevitável que insinua algo de impedimento para sua efetivação quando ele o Árabe sorrir. “Talvez, por causa das sombras sobre o seu rosto. A sombra em contraposição ao brilho do Sol relembra a “trégua melancólica” que M. retrata um pouco antes de tudo isso acontecer. Ou seja, sem a influência do Sol, talvez, a desgraça não teria lhe batido a porta.
La brulure du Soleil gagnait mes joues et j’ai senti des gouttes de sueur s’amasser dans mes sourcils. C’était le même Soleil que le jour où j’avais enterré maman et, comme alors, le front surtout me faisait mal et toutes ses veines battaient ensemble sous la peau. À cause de cette brûlure que je ne pouvais plus supporter, j’ai fait un mouvement en avant. Je savais que c’était stupide, que je ne me débarrasserais pas du Soleil en me déplaçant d’un pas (CAMUS,  1999, p. 61-62).

A ardência do Sol ganhava-me as faces e senti gotas de suor se acumular nas minhas sobrancelhas. Era o mesmo Sol do dia em que enterrara mamãe, e, como então, doía-me, sobretudo a testa, e todas as suas veias batiam juntas debaixo da pele. Por causa desta queimadura, que não conseguia suportar, fiz um movimento para frente. Sabia que era estupidez, que não me livraria do Sol se desse um passo (CAMUS, 197-, p. 62-63).
A presença do Sol não está apenas na praia escaldante. Ela deita-se sobre o corpo de M. e o faz transpirar como em estado de medo e de profunda angústia. Medo da perda que faz doer-lhe a testa como ocorrera no enterro de sua mãe, contudo, coragem de enfrentar a realidade pura dos fatos. O Sol, apesar de desnorteá-lo perante outrem e a sociedade, paradoxalmente norteia-o na condução de seus atos, fazendo de M. alguém sem história, isto é, sem passado e sem futuro. Está-se diante de um fenômeno que se passa au jour[17], à luz do dia e não poderia ser de outro modo. Se assim o fosse, estar-se-ia ao abrigo de todo e qualquer julgamento ético que proviesse de um ato praticado de noite.
Mais j’ai fait un pas, un seul pas en avant. Et cette fois, sans se soulever, l’Arabe a tiré son couteau qu’il m’a présenté dans le Soleil. La lumière a giclé sur l’acier et c’était comme une longue lame étincelante qui m’atteignait au front. Au même instant, la sueur amassée dans mes sourcils a coulé d’un coup sur les paupières et les a recouverts d’un voile tiède et épais (CAMUS,  1999, p. 61-62).

Mas dei um passo, um só passo à frente. E, desta vez, sem se levantar, o árabe tirou a faca, que ele me exibiu ao Sol. A luz brilhou no aço e era como se uma longa lâmina fulgurante me atingisse na testa. No mesmo momento, o suor acumulado nas sobrancelhas correu de repente pelas pálpebras, recobrindo-as com um véu morno e espesso (CAMUS, 197-, p. 62-63).
Os gestos de M. e do árabe associam-se e se fundem como numa dança flamenca em que as emoções foram traídas e a honra precisa ser restaurada. Não é mais uma cena de praia, de luta e morte, onde se podem observar os gestos ameaçadores de faca em punho e de defesa com os movimentos possíveis do corpo. O lugar do corpo em destaque, que deve ser protegido, não é o calcanhar, como o de Aquiles, mas a testa, a fronte, os olhos. Isto é, seu rosto reflete o si mesmo que se torna vulnerável quando o outro se aproxima. O resultado desse confronto é o aparecimento em sua testa do suor que escorre até suas pálpebras como se quisessem cegar seus olhos. Se o Sol, reinando abSoluto sobre a praia não era suficiente para mostrar-lhe sua força, traduze-se em forma de suor numa simbiose da natureza entre água e sal. O suor sintetiza a presença fulminante do Sol em seu corpo. Ele não pode escapar dessa presença. Quisera poder sacudir o suor e o Sol.
Mes yeux étaient aveuglés derrière ce rideau de larmes et de sel. Je ne sentais plus que les cymbales du Soleil sur mon front et, indistinctement, le glaive éclatant jailli du couteau toujours en face de moi. Cette épée brûlante rongeait mes cils et fouillait mes yeux douloureux. C’est alors que tout a vacillé. La mer a charrié un souffle épais et ardent. Il m’a semblé que le ciel s’ouvrait sur toute son étendue pour laisser pleuvoir du feu (CAMUS,  1999, p. 61-62).

Meus olhos ficaram cegos, por trás desta cortina de lágrimas e de sal. Sentia apenas os címbalos do Sol na testa e, de modo difuso, a lâmina brilhante da faca sempre diante de mim. Esta espada incandescente corroía as pestanas e penetrava meus olhos doloridos. Foi, então, que tudo vacilou. O mar trouxe um sopro espesso e ardente. Pareceu-me que o céu se abria em toda a sua extensão, deixando chover fogo (CAMUS, 197-, p. 62-63).
Em instantes fugazes o Sol atinge seu novo intento: cegar, mesmo que temporariamente, sua indefesa criatura. A percepção clara requerida naquele instante é fatidicamente anuviada pelas lágrimas e pelo suor que chegam até os olhos de M. É preciso que ele não veja para que o seu destino se faça. A inquietação e o agonizante temor de M. é a marca da convivência com sua temeridade.
O mesmo Sol que o fazia agir daquele modo, paradoxalmente, fazia-o sentir o remorso antecipado de algo que ainda não havia ocorrido, porém, estava preste a acontecer e se antecipava em lágrimas e em sal. O Sol não apenas retine a pino em sua fronte, ele o atinge como címbalos de metal fervilhante. M. “lava a almaantes de cometer o assassinato como se o autojulgasse e o impedisse que toda e qualquer forma de julgamento exterior (moral ou jurídica) pudesse se dar. Somente na real possibilidade do “outro de si”, como afirma Lévinas: no encontro do face a face, é que o outro se revela. O outro aqui é visto como grande ameaça; de modo que a única saída é exterminá-lo.
Tout mon être s’est tendu et j’ai crispé ma mainsur le revolver. La gâchette a cédé, j’ai touché le ventre poli de la crosse et c’est là, dans le bruit à la fois sec et assourdissant que tout a commencé. J’ai secoué la sueur et le Soleil (CAMUS, 1999, p. 61-62).

Todo o meu ser se retesou e crispei a mão sobre o revólver. O gatilho cedeu, toquei o ventre polido da coronha e foi aí, no barulho, ao mesmo tempo seco e ensurdecedor, que tudo começou. Sacudi o suor e o Sol (CAMUS, 197-, p. 62-63).
Paralisado pela força causticante do Sol Meursault cede ao infortúnio e cumpre o abominável ato do assassínio. A inevitabilidade do assassinato estava se realizando. Tudo começou como diz M. Ele sacode o suor e o Sol. Como se fosse possívelsacudir” o Sol de cima dele. Mas era a maneira de se sentir aliviado e poder se libertar daquela chama ardente que consumia seu ser e o levara a praticar o pior e o mais grave de todos os atos éticos: matar o semelhante. A ambigüidade de seu ato continha, ao mesmo tempo, amor e ódio, acolhimento e rejeição. Nele se digladiavam a natureza e a razão. Era como se M. quisesse impedir que tudo aquilo retrocedesse no tempo. “Felizmente era tarde, tarde demais”, como a mesma expressão de Clamence que se verifica em A Queda. Compreendi que destruíra o equilíbrio do dia, o silêncio excepcional de uma praia onde havia sido feliz [18] (CAMUS, 197-, p. 62-63).
Somente agora é que M. compreende. Ele toma consciência de seu ato. Torna-se humano porque pode refletir sobre seus próprios atos e perceber a responsabilidade implicada neles. Mas a sua tragicidade ainda não houvera acabado. Sua autopunição requerera que ele evocasse as Mênades[19] para que a desgraça se realizasse por completo e ele pudesse ser punido. Sem isso, seu ato não possuiria nenhuma justificação de ser. Então, atirei quatro vezes ainda num corpo inerte, em que as balas se enterravam sem que se desse por isso” [20] (CAMUS, 197-, p. 62-63).
Atirar de modo premeditado em alguém que está combalido, talvez morto fosse uma atitude, diante da ética do humano, de demonstração da mais pura crueldade. Mas a atitude aqui precede toda ética que envolve uma compaixão frente ao outro. O efeito aqui não é de aniquilar totalmente o outro, mas de mostrar que a inevitabilidade do ato requeria um apelo de comiseração com o próprio assassino. Aqui se verifica sua mais profunda e mais perfeita descrição de abandono e de vulnerabilidade diante de uma ameaça que o outro provocou. Ambigüidade que se encontra perfeitamente na contenda do homem de hoje. Vazio de si, não permite também ser preenchido por nenhuma alteridade que abale a sua tranqüilidade medíocre e indolente.
Os últimos estalidos de Sol naquela praia fazem de M. um homem exaurido de sorte que não pode mais impedir que a desgraça se instaure. “E era como se desse quatro batidas secas na porta da desgraça” [21] (CAMUS, 197-, 62-63).
Quatro batidas secas na porta da desgraça além de evocarem as vingadoras de crime de sangue, anunciam, de forma apocalíptica, que o caos havia se reinstalado no mundo e a sua reparação só poderia ocorrer em outra realidade. Naquele mundo da praia onde antes estivera em harmonia, o sortilégio do destino estava a destilar suas últimas gotas de encantamento.
No interior e no instante do ato do crime está presente o julgamento. M. comete um assassinato acompanhado de julgamento. O próximo instante para ele advirá livre e isento, como se viu acima, de todo tipo de julgamento. A liberdade que o acompanhava antes do crime deve estar presente depois. Ninguém, nem nenhuma instituição humana teriam condições de julgar seu ato. Ele era senhor de sua existência porque seu ato fora causado por algo exterior: o Sol era o responsável. No tribunal, quando M. é interrogado, pode-se, literalmente, ouvir de Camus a demonstração de que era o Sol a causa do crime:
Quand le procureur s´est rassis, il y a eu un moment de silence assez long. Moi, j´étais étourdi de chaleur et d´étonnement. Le président a toussé un peu et sur un ton très bas, il m´a demandé si je n´avais rien à ajouter. Je me suis levé et comme j´avais envie de parler, j´ai dit, un peu au hasard d´ailleurs, que je n´avais pas eu l´intention de tuer l´Arabe. Le président a répondu que c´était une affirmation, que jusqu´ici il saisissait mal mon système de défense et qu´il serait heureux, avant d´entendre mon avocat, de me faire préciser les motifs qui avaient inspiré mon acte. J´ai dit rapidement, en mêlant un peu les mots et en me rendant compte de mon ridicule, que c´était à cause du Soleil (CAMUS, 1999, p. 103).

Quando o promotor se sentou, houve um momento de silêncio bastante longo. Quanto a mim, estava atordoado pelo calor e pela perplexidade. O presidente tossiu um pouco e, em tom muito baixo, perguntou se eu tinha algo a acrescentar. Levantei-me e, como estava com vontade de falar, disse, aliás, um pouco ao acaso, que não tinha tido intenção de matar o árabe. O presidente respondeu que isto era uma afirmação; que até então não percebera muito bem o meu sistema de defesa e que gostaria, antes de ouvir o meu advogado, que eu especificasse os motivos que inspiraram o meu ato. Disse rapidamente, misturando um pouco as palavras e consciente do meu ridículo, que fora por causa do Sol. Houve risos na sala (CAMUS, 197-, p. 104).
Ora, se M. não tinha a intenção de matar o Árabe ele se considera totalmente isento de qualquer responsabilidade. Há uma consciência da exterioridade da causa que o torna temerário diante do tribunal. Não há, portanto, devaneios de dissimulação nem de hipocrisia. Sua palavra, apesar de espontânea, contém a verdade do fato. O Sol, como realidade metafísica, põe-se como afirmação, e, analogamente, opõe-se ao poder se por como negação.
O Sol como realidade metafísica se insere, igualmente, na noção de ser que pode afirmar, havendo, nesse âmbito, uma impossibilidade de negação. O ser somente pode afirmar, logo, ele sempre põe o ente, este, não possui a real possibilidade de poder se por como ser. Vale lembrar a expressão heraclitiana, “todo ente é no ser”. No ser, tudo é afirmação. Vale salientar que esse entendimento tem sentido se o Sol for visto como realidade metafísica. Ao contrário, ele não passa de uma estrela de quinta grandeza do sistema Solar que permite a fotossíntese no planeta terra. Sua força penetrante e desnorteadora, em Meursault, se dão como dupla realidade: material e imaterial. Pelas mãos de Camus é que se pode interpretar esta última realidade. Ele, Camus, faz-nos ir além do brilho do Sol que cegam os olhos e a alma. Ele traz a presença dionisíaca do Sol como divindade (metafísica) que, além de transformar os fatos, extasia a alma e a faz agir em prol da natureza (physis, como evolução da natureza, no sentido helênico arcaico). Concluir-se-ia, sem embargo, que a natureza é também assassina. Mas, se porventura, ela age desse modo, é porque o homem está sem o abrigo da sombra, isto é, como afirmara o filósofo cego franco-esloveno, Bavcar, sem a concepção do passado. A presença de Dioniso, não seria, portanto, a evocação da ancestralidade para lembrar ao homem o seu esquecimento? Assim, Meursault passa a ser o representante do homem contemporâneo. Aquele que age sem culpa, porque nega o passado.
Com efeito, a metáfora da morte do outro, encarnada no assassinato do “Árabe sem Nome”, faz do romance O Estrangeiro uma narrativa simbólica em que o assassínio se mostra como uma mítica do absurdo. Ao se retomar a resenha de Sartre sobre O Estrangeiro, publicada em Situações IV, pode-se perceber uma das implicações a que o estado de absurdo camusiano provocou com essa obra:
O absurdo [...] mani­festa antes de tudo um divórcio: o divórcio entre as aspirações do homem para a unidade e o dualismo insuperável do espírito e da natureza, entre o impulso do homem para o eterno e o carácter finito da sua existência, entre a “preo­cupação” que é a sua própria essência e a inutilidade dos seus esforços. A morte, o pluralismo irredutível das verdades e dos seres, a ininteligibilidade do real, o acaso, eis os pólos do absurdo! (SARTRE, 196-, p. 02).
 Contudo, vale lembrar que Matar não pode ser suplantado pelo Morrer. Não há um jogo dialético entre morte e vida. A superação da transgressão não contém a possibilidade de se deixar morrer por um motivo que venha ser testemunho de redenção de outrem. A redenção aqui se refere ao próprio transgressor. Seu crime se justifica por um fator interno a si mesmo de sobrevivência que evidencia a preservação de sua natureza. Não há, por conseguinte, um crime de lógica como se verifica em O Homem Revoltado. Se se pudesse categorizá-lo, seria enquadrado em um tipo de crime de paixão consigo mesmo. O anuviamento[22] da consciência de M. é provocado pela sua pura e ingênua paixão pela vida. Não há, no sentido freudiano, um Super-Ego que lhe relembre o interdito.
 Meursault é um personagem vazio que brota de dentro para fora. O Árabe, como ameaça de morte, é a ameaça da morte de um tipo de “eu”, quase Solipcista, que põe em risco a permanência de uma interioridade plena e abSoluta. O Sol escaldante e estonteante, como representação do mundo sem sentido, anuvia a alma de Meursault e o faz reagir para preservar sua dignidade de homem abSolutamente ético, impossibilidade paradoxal do agir humano. O paradoxo da impossibilidade ética no agir de Meursault se dá pelo fato de não se poder vislumbrar, na conduta humana, uma moral aliada a uma ética abSoluta. se poderia pensar uma ética abSoluta no âmbito do divino. Com efeito, essa impossibilidade, sob o olhar de Sartre, confirma-se com esse intento: É certo que o absurdo não está no homem nem no mundo, se os tomarmos separada­mente; mas como a característica essencial do homem é “estar-no-mundo”, o absurdo acaba por identificar-se com­pletamente com a condição humana (SARTRE, 196-, p. 03).
A morte do Árabe é a morte do outro sem interlocução que fere a subjetividade de Meursault. Matar aquele Árabe era, igualmente, matar qualquer um que se interpusesse em seu caminho. Não se trata de uma xenofobia às avessas nem de uma atitude imperialista que aniquila o outro cultural. Camus nunca pretendeu defender uma forma de ideologização cultural dominante sob forma sub-reptícia em suas obras. O que está em jogo é a condição humana vista em sua pureza e em sua integridade que devem ser preservadas, isto é, a Natureza Humana. O mundo, para Camus, é destituído de sentido e, a única forma de restituí-lo, é ir ao encontro do absurdo da existência. Mas, assim como M., o homem de hoje precisa formar uma consciência, mesmo em meio ao absurdo. Somente ela poderá mostrar que a absurdidade do cotidiano, enquanto repetição deve ser abolida. Exceção se faz, apenas, quando a repetição adquirir um sentido sisifiano, isto é, encontrar sentido na própria repetição. Desse modo, estar-se-ia superando as determinações fatídicas da existência e o homem seria elevado a mais nobre categoria ontológica: a de Ser, além de um Ente que pode ser.
A abolição do absurdo do dia a dia quer dizer, em Camus, que o homem quando estiver alienado em seus próprios hábitos, tal como Meursault antes da condenação à morte ou os habitantes de Oran antes de sobrevir à peste, deve tomar algum tipo de consciência. Somente ela pode levar à comparação de realidades distintas que se superpõem, tornam-se equivalentes, mas devem ser diferenciadas. Resta, desse modo, um desafio a ser transposto. O absurdo que começa a se instalar no mundo tem como ambiente propício de sua propagação a indolência dos hábitos que se repetem no cotidiano. A repetição toma uma forma sisifiana em que a punição dos deuses sobrepõe-se a toda e qualquer possibilidade de revolta e de indignação, consoante Camus em O Mito de Sísifo:
L’absurde est sa tension la plus extrême, celle qu’il maintient constamment d’un effort Solitaire, car il sait que dans cette conscience et dans cette révolte au jour le jour, il témoigne de sa seule vérité qui est le défi (CAMUS, M. S. 1998: 80).

O absurdo é sua tensão extrema, a que ele mantém constantemente com o esforço Solitário, porque sabe que nessa consciência e nessa revolta de cada dia ele testemunha sua única verdade, que é o desafio (CAMUS, 1989, p. 72).
Com efeito, Camus, ao retratar a ambivalência de Meursault, não pretende categorizá-lo como um ser político nem histórico, nem tampouco fruto de uma cultura estereotipada. Apesar de ele ser mostrado como alguém que possui uma profundidade e uma maturidade que servem de apoio ao seu vizinho Salamano e ao seu amigo Raymond, de outro modo é descrito como alguém infantil que designa sua mãe pelo termomamãe”. M., em verdade, representa o homem indiferente; preso a seus hábitos cotidianos que invalidam todo tipo de revolta.
O sentimento de culpa, esperado por todos, não se faz presente em Meursault após ter matado o Árabe. Ao ser levado à prisão e a julgamento, o personagem de Camus intriga a todos ao pronunciar seu verdadeiro sentimento diante da morte. Seja da sua mãe, seja do árabe, em referência ao O Estrangeiro.
Le juge s’est alors levé, comme s’il me signifiait que l’interrogatoire était terminé. Il m’a seulement demandé du même air un peu las si je regrettais mon acte. J’ai réfléchi et j’ai dit que, plutôt que du regret véritable, j’éprouvais un certain ennui (CAMUS, 1999, p. 71).

O juiz levantou-se, então, como se quisesse me indicar que o interrogatório acabara. Perguntou-me, apenas, com o mesmo ar um pouco cansado, se estava arrependido do meu ato. Meditei, e disse que, mais do que verdadeiro arrependimento, sentia um certo tédio  (CAMUS, 197-, p.74).
O estado de tédio de M., além de contrariar as expectativas do juiz e do promotor, mostra o quanto ele reassumiu sua vida medíocre como se estivesse ainda no seu quarto ou a passear pela praia. O novo contexto para M. não lhe indica ainda nada. Tudo lhe é indiferente, enfadonho, tedioso, ausente. Quisera poder se livrar daquela situação imediatamente. Sua noção de tempo está acima de toda e qualquer duração que venha a lhe permitir pensar sobre o ocorrido. Aquele contexto não passava para ele de pura encenação teatral. Não havia vítima a ser redimida nem algoz a ser julgado. Ali ele era realmente o verdadeiro Estrangeiro que, talvez, Camus, tenha conseguido traçar ao longo de todo o romance. Estrangeirice[23] essa que é momentânea, apesar de se esperar que ela se perpetue até o fim da narrativa.
A estrangeiridade como chancela de Meursault configura um caráter despatriado que se confronta todo o tempo com a equivalência dos entes. Ele não se identifica nem tem afinidade por ninguém. Sua individualidade é integral e se funda numa fissura hereditária como se pode ver, por analogia, na interpretação de Deleuze sobre A Besta Humana de Émile Zola. A despeito da fissura de seu caráter seus atos não se repetem como sintomas psicológicos. O que há como descreve Deleuze é um encontro do instinto e do objeto, como se verifica adiante:
O encontro do instinto e do objeto forma uma idéia fixa, não um sentimento. Se Zola romancista intervém nos seus romances, é primeiro para dizer aos leitores: atenção, não acreditem que se trate de sentimentos. Célebre é a insistência com a qual Zola, tanto em A Besta Humana, como em Thérèse Raquin, explica que os criminosos não têm remorsos. E os amantes não têm igualmente amorsalvo quando o instinto soube verdadeiramente “colar de novo” tornar-se evolutivo. Não se trata de amor, não se trata de remorso etc., mas de torções, de estalidos ou, ao contrário, de acalmias, de apaziguamentos, nas relações entre temperamentos sempre estendidos por cima da fissura. (DELEUZE, 1998, p. 333).
A sociedade em que o drama está inserido não espera de Meursault a verdade nua e crua de um homem sem passado e sem futuro. Ela se prende a ele para garantir a sua continuidade. Contudo, muito embora ele esteja sendo julgado por um assassinato, sua vida pregressa o condena, muito mais que o ato moral de matar a um semelhante. Vê-se a singular caricatura de uma sociedade moralista que aguarda, a qualquer instante, julgar e condenar aqueles que, entre ela, cavam um fosso abissal. Camus, por meio de Meursault, em O Estrangeiro, descreve assim esse incômodo social dos guardiães da honra:
J’ai essuyé la sueur qui couvrait mon visage et je n’ai repris un peu conscience du lieu et de moi-même que lorsque j’ai entendu appeler le directeur de l’asile. On lui a demandé si maman se plaignait de moi et il a dit que oui mais que c’etait un peu la manie de ses pensionnaires de se plaindre de leurs proches. Le président lui a fait préciser si elle me reprochait de l’avoir mise à l’asile et le dirccteur a dit encore oui. Mais cette fois, il n’a rien ajouté. À une autre question, il a répondu qu’il avait été surpris de mon calme le jour de l’enterrement. On lui a demandé ce qu’il entendait par calme. Le directeur a regardé alors le bout de ses souliers et il a dit que je n’avais pas voulu voir maman, je n’avais pas pleuré une seule fois et j’étais parti aussitôt après l’enterrement sans me recueillir sur sa tombe (CAMUS, 1999, p. 89).

Enxuguei o suor que me cobria o rosto, e tomei consciência do lugar e de mim mesmo, quando ouvi chamar o diretor do asilo. Perguntaram-lhe se mamãe se queixava de mim e ele respondeu que sim, mas todos os pensionistas tinham um pouco a maneira de se queixar da família. O presidente disse-lhe para especificar se ela me censurava por tê-la colocado no asilo e o diretor respondeu novamente que sim. Mas, desta vez, nada acrescentou. A uma outra pergunta, respondeu que a minha calma no dia do enterro o surpreendera. Perguntaram-lhe o que entendia porcalma”. O diretor olhou, então, para as pontas do sapato e disse que eu não quisera ver mamãe, que não chorara uma única vez e que partira logo depois do enterro, sem me recolher junto ao túmulo (CAMUS, 197-, p. 91).
A atitude de M. contraria uma moral sedimentada e conSolidada em um tipo de sociedade que se protege da diferença. Por analogia, pode-se notar que M. ao ser julgado possibilita que os representantes mores daquela sociedade pudessem reafirmar sua decente moralidade. A exemplo do risco que ela corria, acrescenta Camus, nos argumentos seguintes, à fala do promotor, a indignação e a surpreendente falta de arrependimento de Meursault:
“Sans doute, ajoutait-il, nous ne saurions le lui reprocher. Ce qu’il ne saurait acquérir, nous ne pouvons nous plaindre qu’il en manque. Mais quand il s’agit de cette cour, la vertu toute négative de la tolérance doit se muer en celle, moins facile, mais plus élevée, de la justice. Surtout lorsque le vide du coeur tel qu’on le décrouve chez cet homme devient un gouffre où la société peut succomber (CAMUS, 1999, p. 102).

Não poderíamos, sem dúvida, acrescenta ele, censurar-lhe uma coisa destas. O que ele não poderia adquirir, não podemos queixar-nos de que lhe falte. Mas, no que se refere a este tribunal, a verdade negativa da tolerância deve transformar-se na virtude menos fácil, mas mais elevada da justiça. Sobretudo, quando um vazio de um coração, assim como o que descobrimos neste homem, se torna um abismo onde a sociedade pode sucumbir (CAMUS, 197-, p. 103).
O perigo que Meursault poderia causar naquele tipo de sociedade seria mais devastador que a dominação colonialista francesa; mais aniquilador que o nazismo da guerra mundial que adviria. “Em nossa sociedade qualquer homem que não chora no funeral da mãe corre o risco de ser condenado à morte”, resume Camus, desse modo, O Estrangeiro, no seu Prefácio da primeira edição americana. Ora, Camus, como bem afirma em seu resumo, mostra um herói que não joga o jogo, por isso é condenado. Meursault é um eterno exilado em uma sociedade sem pátria ética. Ele vive à margem, na periferia da moral estabelecida, onde os códigos e as normas não têm força. Daí a insistência do promotor em desviar completamente o objeto do julgamento de Meursault para outro foco que iria repercutir visceralmente nos jurados. “[...] um homem que matava moralmente a mãe devia ser afastado da sociedade dos homens, exatamente como o que levantava a mão criminosa contra o autor de seus dias[24] (CAMUS, 197-, p. 103).
Meursault, quando na prisão, depara-se com sua própria verdade e se mostra como alguém indiferente a tudo e a todos. Mas, pouco a pouco, sua lembrança materna vai dando vida a um tênue sentimento de felicidade, mesmo atrás das grades. Sua existência começa a ter sentido, paradoxalmente, nos dias que antecedem sua execução.
J’ai souvent pensé alors que si l’on m’avait fait vivre dans un tronc d’arbre sec, sans autre occupation que de regarder la fleur du ciel au-dessus de ma tête, je m’y serais peu à peu habitué (CAMUS, 1999, p. 77).

Nessa época, pensei muitas vezes que, se me obrigassem a viver dentro de um tronco seco de árvore, sem outra ocupação além de olhar a flor do céu acima da minha cabeça, ter-me-ia habituado aos poucos (CAMUS, 197-, p. 80).
Com uma sutil ingenuidade, Meursault consegue evocar, em uma de suas divagações, o trajeto da vida de um homem em meio a qualquer situação, adaptando-se a ela:
Maman disait souvent qu’on n’est jamais tout à fait malheureux. Je l’approuvais dans ma prison, quand le ciel se colorait et qu’un nouveau jour glissait dans ma cellule. Parce que aussi bien, j’aurais pu entendre des pas et mon coeur aurait pu éclater (CAMUS, 1999, p. 113).

Mamãe costumava dizer que nunca se é completamente infeliz. Mesmo na prisão, concordava com ela, quando o céu se coloria e um novo dia se insinuava na minha cela. Porque poderia ter ouvido passos, e meu coração poderia ter explodido (CAMUS, 197-, p. 113).
Pouco a pouco Camus vai dando ao protagonista feições humanas e sensíveis e sutilmente desmoronando a rigidez da indiferença. Sua mãe faz-lhe lembrar de uma humanidade perdida e esquecida que somente é despertada pela presença do “outro”: “ [...] poderia ter ouvido passos e meu coração poderia ter explodido”.  Há de certo modo um conSolo ético que restaura a imagem cruel do assassino e o torna de carne e osso. Mas essa fisionomia não é mostrada por Meursault no tribunal. Camus presenteia apenas ao leitor a subjetividade de M.
Esse homem sem preocupação com o futuro e a viver com migalhas do passado não se pretende ser metafísico ou realista. Meursault é a hierofania da condição humana dos nossos tempos que se mostra sem culpa e sem arrependimento. Seu desconforto diante dos atos morais não passa de um estado de espírito em que ele permanece entediado. Mas é aí que reside o perigo para um tipo de sociedade que se alimenta da mentira. Meursault é a própria ameaça encarnada que poderá desencadear a desestruturação dessa mesma sociedade fincada em moralismos. Sem qualquer ato heróico, como igualmente afirma Camus no Prefácio[25] de O Estrangeiro, Meursault concorda em morrer pela verdade. No entanto, jamais pretendera se suicidar, como bem sinalizara Sartre (SITUAÇÕES IV) em seu comentário sobre M.:
O ho­mem absurdo não se suicidará: quer viver, sem renunciar a nenhuma das suas certezas, sem porvir, sem esperança, sem ilusão, e também sem resignação. O homem absurdo afirma-se na revolta. Fixa a morte com uma atenção apaixo­nada e esta fascinação liberta-o: conhece a “divina irres­ponsabilidade” do condenado à morte. Tudo é permitido, visto que Deus não existe e se vai morrer. Todas as experiências são equivalentes, mas convém adquirir a maior quantidade possível delas. “O presente e a sucessão dos presentes diante duma alma incessantemente consciente é o ideal do homem absurdo” (SARTRE, 196-, p. 04).
Desse modo, Camus protagoniza a Ética do Absurdo na figura de M. como um anti-herói contemporâneo que profetisa, sem ser iniciado em mistérios, como ocorre com os heróis, a verdadeira liberdade de se ser, como se pode encontrar em Núpcias.
Il n’est pas toujours facile d’être un homme, moins encore d’être homme pur. Mais être pur, c’est retrouver cette patrie de l’âme où devient sensible la parenté du monde, où les coups du sang rejoignent les pulsations violentes du Soleil de deux heures (CAMUS, 1998, p. 48).

Nem sempre é fácil ser um homem e muito menos ser um homem puro. Ser puro, no entanto, significa reencontrar esta pátria da alma, onde se tornam sensíveis os laços profundos que nos unem ao mundo, onde as pulsações do sangue se confundem com as pulsações violentas do Sol das duas horas (CAMUS, 1979, p. 38).
A cumplicidade de M. é com a vida em sua decorrência. Ele a sente em suas entranhas que deixam Solver o líquido do Sol, transformado em essência vital. Mas essa indiferença tem um preço. O quinhão a ser pago, por contrariar a ordem estabelecida, como se na história da humanidade, é sempre com a própria vida. Como os demais anti-heróis, Meursault tem à mão a possibilidade de se retratar e admitir seu arrependimento, muito mais que a culpa. Assim como Sócrates, o primeiro anti-herói da história da Filosofia, Meursault não pretende voltar atrás e negar suas convicções profundas. Não é à toa que Camus, ao inserir o diálogo do capelão com o prisioneiro, dessacraliza a justiça divina e faz de M. um convertido ao paganismo. O Deus cristianizado, desse momento em diante, não tem a menor importância, como se em uma de suas falas, em O Estrangeiro:
“Pourquoi, m’a-t-il dit, refusez-vous mes visites?” J’ai répondu que je ne croyais pas en Dieu. Il a voulu savoir si j’en étais bien sûr et j’ai dit que je n’avais pas à me demander: cela me paraissait une question sans importance (CAMUS, 1999, p. 116). Selon lui, la justice des hommes n’était rien et la justice de Dieu tout. J’ai remarqué que c’était la première qui m’avait condamné (CAMUS, 1999, p. 118).

Por que, disse-me ele, tens recusado minhas visitas? Respondi que não acreditava em Deus. Quis saber se tinha certeza disso e eu respondi que não valia a pena fazer-me tal pergunta: parecia-me sem importância. [...] Na sua opinião, a justiça dos homens não era nada, e a justiça de Deus, tudo. Observei que fora a primeira que me condenara (CAMUS, 197-, p. 116-118).
Camus/Meursault não espera a efetivação da justiça divina oriunda de um mundo escatológico. A justiça, para ele, provém do poder humano que se encarna nas instituições e se dá pela “proferição” [26] da palavra de seus representantes. Nãojustiça humana sem que haja subjugação da verdade abSoluta. Esse paradoxo ético implantado por Camus na figura de Meursault, ao tempo que reduz toda noção de justiça a uma esfera da existência, destituindo, portanto, todo e qualquer sentido metafísico, coloca em suspensão seu interlocutor como alguém que preserva em integridade toda a transcendência possível que parte da vivência. Assim, Meursault concebe em verdade a pureza da transcendência ao viver radicalmente sua própria existência no mundo. Vivência essa que implica levar a termo todas as conseqüências de seus atos morais, bem como de sua crença numa verdade pura que, somente ela, pode libertá-lo. Contrariando, assim, a inquietante inquisição do capelão:
Je suis sûr qu´il vous est arivé de souhaiter une autre vie. Je lui ai répondu que naturellement, mais cela n´avait pas plus d´importance que de souhaiter d´être riche, de nager  très vite ou d´avoir une bouche mieux faite. [...] mais lui m´a arrêté et il voulait savoir comment je voyais cette autre vie. Alors, je lui ai crié : « une vie où je pourrais me souvenir de celle-ci » (CAMUS, 1999, p. 119).

Tenho certeza de que já lhe ocorreu desejar uma outra vida. Respondi-lhe que naturalmente, mas que isso era tão importante quanto desejar ser rico, nadar muito depressa ou ter uma boca mais bem feita. [...] mas ele me deteve e quis saber como eu imaginava essa outra vida. Então gritei: — uma vida na qual me pudesse lembrar desta vida (CAMUS, 197-, p. 119-120).
O desejo de M. não se realizará no além. Seu aborrecimento está completamente configurado na impossibilidade de poder continuar vivendo essa vida. Nãonenhum lampejo de resignação. Logo, nãoesperança: [...] “a esperança, ao contrário do que se crê, equivale à resignação. E viver não é resignar-se” [27] (CAMUS, 1979, p. 40).
O problema maior apresentado por Camus na atitude de M. perante o capelão, não é a simples recusa em se aceitar Deus como uma realidade transcendental ao mundo e ao homem, porém, a de mostrar um tipo de Deus metaforizado na ideologização do mistério do sagrado. A Igreja, representada na pessoa do capelão, obviamente é a detentora do poder de salvação, libertação e conscientização. O poder eclesiástico medieval ainda se faz presente naquele tipo de moralismo cristão que ao longo da história substituiu a noção de natureza humana pela de moral e que, segundo Camus, os filósofos tomaram-na como situação. No texto sobre o Exílio de Helena, em Núpcias, ele metaforiza sobre esse cristianismo antidionisíaco e sobre esse movimento impiedoso da razão:
C’est le christianisme qui a commencé de substituer à la contemplation du monde la tragédie de l’âme. Mais, du moins, il se référait à une nature spirituelle et, par elle, maintenait une certaine fixité. Dieu mort, il ne reste que l’histoire et la puissance. Depuis longtemps tout l’effort de nos philosophes n’a visé qu’à remplacer la notion de nature humaine par celle de situation, et l’harmonie ancienne par l’élan désordonné du hasard ou le mouvement impitoyable de la raison. Tandis que les Grecs donnaient à la volonté les bornes de la raison, nous avons mis pour finir l’élan de la volonté au coeur de la raison, qui en est devenue meurtrière (CAMUS, NOC. 1998: 137-138).

Foi o cristianismo que começou a substituir a contemplação do mundo pela tragédia da alma. Pelo menos, porém, referia-se a uma natureza espiritual e, através dela, mantinha certa constância. Deus morto, nada resta senão a história e a autoridade. Desdemuito todo o esforço de nossos filósofos tem tido como objetivo único o de substituir a noção de natureza humana pela de situação e, igualmente, a harmonia antiga pelo arrebatamento desordenado do acaso ou o movimento impiedoso da razão. Ao passo que os gregos impunham à vontade os limites da razão, pusemos como término desse arrebatamento da vontade o próprio cerne da razão, que, por isso, se tornou mortífera (CAMUS, 1979, p. 106).
O problema da recusa de Deus por M., verificado acima, é o mesmo encontrado na peça de teatro O Equívoco, de Camus: “tenho ódio desse mundo em que somos reduzidos a Deus”, esbraveja Martha. Camus, intencionalmente, toma o partido de M. para revelar concomitantemente sua repulsa a um tipo de filosofia que encontra explicações numa história que se coloca no trono de Deus e, em Núpcias, Camus adverte: “deixando de lado a natureza, o mar, a colina, a meditação dos entardeceres”.
Se de um lado, como se verificou recentemente, tem-se um personagem voltado para uma recusa das determinações exteriores, de outro há uma progressiva caminhada em direção ao cumprimento do destino. Numa de suas últimas divagações, Meursault, na prisão, traça o contraponto de sua vida absurda vivida no passado com a trama do destino em elegê-lo ele próprio:
Du fond de mon avenir, pendent toute cette vie absurde que j’avais menée, un souffle obscur remontait vers moi à travers des années qui n’étaient pas encore venus et ce souffle égalisait sur son passage tout ce qu’on me proposait alors dans les années pas plus réelles que je vivais. Que m’importaient la mort des autres, l’amour d’une mère, que m’importaient son Dieu, les vies qu’on choisit, les destins qu’on élit, puisqu’un seul destin devait m’élire moi-même et avec moi des milliards de privilégiés qui, comme lui, se disaient mes frères (CAMUS, 1999, p. 120).

Do fundo do meu futuro, durante toda esta vida absurda que eu levara, subira até mim, através dos anos que ainda não tinham chegado um sopro obscuro, e esse sopro igualava, à sua passagem, tudo o que me haviam proposto nos anos, não mais reais, que eu vivia. Que me importavam a morte dos outros, o amor de uma mãe, que me importava o seu Deus, as vidas que se escolhem, os destinos que se elege, que um destino devia eleger-me a mim próprio e, comigo, milhares de privilegiados que, como ele, se dizia meus irmãos (CAMUS, 197-, p. 121).
Note-se que o paroxismo implantado por Camus nessa obra, ao tempo que iSola o personagem das malhas do destino, reconhece que ele está submetido a ele. Onde estaria a salvação do homem absurdo senão quando assume a atitude de revolta e distanciamento? Viver em um mundo em que a verdade não cabe é, como assinala a Filosofia, estar em constante busca da verdade fora do mundo. Este tema é, a propósito, tratado por Camus em seu ensaio filosófico, O Mito de Sísifo, no qual descreve a configuração e a postura do homem diante deste mundo:


L‘absurde naît de cette confrontation entre l’appel humain et le silence déraisonnable du monde. C’est cela qu’il ne faut pas oublier. C’est à cela qu’il faut se cramponner parce que toute la conséquence d’une vie peut en naître. L’irrationnel, la nostalgie humaine et l’absurde qui surgit de leur tête-à-tête, voilà les trois personnages du drame qui doit nécessairement finir avec toute la logique dont une existence est capable (CAMUS, 1998, p. 46-47).



O absurdo nasce desse confronto entre o apelo humano e o silêncio despropositado do mundo. É isso que não se deve esquecer. É a isso que é preciso se agarrar, pois toda a conseqüência de uma vida pode nascer daí. O irracional, a nostalgia humana, o absurdo que surge do diálogo entre eles: eis os três personagens do drama que deve, necessariamente, acabar  com toda a lógica de que uma existência é capaz (CAMUS, 1989, p. 43).
No entanto, apesar de Meursault se manter indiferente a tudo que o cerca, quando se depara com a fronteira da existência, ele consegue perceber com sutil diferença a absurdidade da indiferença. Seu rosto foi revelado aos outros que detêm o poder de executar sua morte. Se houve momentos em que ele foi “estrangeiro para os outros”, haverá momentos em que ele se tornará “estrangeiro para si mesmo. A partir desse momento é que se pode falar de morte. Camus, se de um modo tece a vida de M. como as Fiandeiras, de outro mostra seu poder de salvá-lo da morte por execução. É preciso destacar o momento em que o protagonista atinge o ápice de sua existência: quando ele torna-se estrangeiro para si mesmo. Nesse auge do romance o personagem central não contém mais nenhuma reserva de si que possa ser utilizada como arma de defesa. A estadia na prisão humaniza Meursault e toda a sua descendência. Ou seja, todos aqueles que enveredam pelo campo do vazio, da alienação no cotidiano, da indiferença, da estranheza e da ausência diante do outro. A comiseração de si sentida por M. precederá a Solidariedade. Assassinar o Árabe, em verdade, tinha como último propósito, o assassinato de Meursault. A morte em O Estrangeiro é fundamentalmente metafórica. Daí o árabe sem nome. Mas Camus também comete um ato de compaixão com seu personagem: em seus últimos suspiros de agonia e de desespero diante da morte, M. deixa de ser um deus onipotente. Vale rever a descrição dada por Camus em O Homem Revoltado quando da agonia de Cristo no Gólgota:
La nuit du Golgotha n’a autant d’importance dans l’histoire des hommes que parce que dans ces ténèbres la divinité, abandonnant ostensiblement ses privilèges traditionnels, a vécu jusqu’au bout, désespoir inclus, l’angoisse de la mort. [...] Pour que le dieu soit un homme, il faut qu’il désespère (CAMUS, 1998, p. 52).

A noite do Gólgota só tem tanta importância na história dos homens porque nessas trevas a divindade, abandonando ostensivamente os seus privilégios tradicionais, viveu até o fim, incluindo o desespero, a angústia da morte. [...] Para que o deus seja um homem, é preciso que ele se desespere (CAMUS, 1997, p. 50).
Meursault espera e deseja ser reconhecido, mesmo que isso seja demonstrado por lampejos de ódio quando ocorrer sua execução. Isso provaria que não estaria . A Solidão de seu ser, vivida na melancolia cotidiana, não suplantaria a falta do outro. O outro, no final do romance, impõe-se como um ser de presença quesentido à vida, mesmo que esta seja absurda e contraditória, conSolidando assim em O Estrangeiro:
À ce moment, et à la limite de la nuit, des sirènes ont hurlé. Elles annonçaient des départs pour un monde qui maintenant m’était à jamais indifférent. Pour la première fois depuis bien longtemps, j’ai pensé à maman. Il m’a semblé que je comprenais pourquoi à la fin d’une vie elle avait pris un “fiancé”, pourquoi elle avait joué à recommencer. Là-bas, là-bas aussi, autour de cet asile où des vies s’éteignaient, le soir était comme une trêve mélancolique. Si près de la mort, maman, devait s’y sentir liberée et prête à tout revivre. Personne n’avait le droit de pleurer sur elle. Et moi aussi, je me suis senti prêt à tout revivre. Comme si cette grande colère m’avait purgé du mal, vidé d’espoir, devant cette nuit chargée de signes et d’étoiles, je m’ouvrais pour la première fois à la tendre indifférence du monde. De l’éprouver si pareil à moi, si fraternel enfin, j’ai senti que j’avais été heureux, et que je l’étais encore. Pour que tout soit consommé, pour que je me sente moins seul, il me restait à souhaiter qu’il y ait beaucoup de spectateurs le jour de mon exécution et qu’ils m’accueillent avec des cris de haine (CAMUS, 1999, p. 121-122).

Neste momento, e no limite da noite, soaram sirenes. Anunciavam partidas para um mundo que me era para sempre indiferente. Pela primeira vez em muito tempo, pensei em mamãe. Pareceu-me compreender por que, ao fim de uma vida, arranjara umnoivo”, porque recomeçara. , também , ao redor daquele asilo onde as vidas se apagavam, a noite era como trégua melancólica. Tão perto da morte, mamãe deve ter-se sentido liberada e pronta a reviver tudo. Ninguém, ninguém tinha o direito de chorar por ela. Também eu me sinto pronto a reviver tudo. Como se esta grande cólera me tivesse purificado do mal, esvaziado de esperança, diante desta noite carregada de sinais e de estrelas, eu me abria pela primeira vez à terna indiferença do mundo. Por senti-lo tão parecido comigo, tão fraternal, enfim, senti que fora feliz e que ainda o era. Para que tudo se consumasse, para que me sentisse menos , faltava-me desejar que houvesse muitos espectadores no dia da minha execução e que me recebessem com gritos de ódio  (CAMUS, 197-, p. 122).
Camus assevera ainda, no Prefácio de O Estrangeiro, que a verdadeira expressão provinda do coração humano revela mais do que se sente. Esse sentimento sem nome e sem destino toma corpo no homem que pensa sua própria existência e a vive como se fosse a única. Nessa singularidade, o personagem de O Estrangeiro revela, concomitantemente, a Solidão e a revolta de Camus diante de uma sociedade que nega a diferença. Viver, segundo Camus, pela óptica desta obra, é estar em constante ambigüidade. É o que também reconhece Joël Malrieu comentando O Estrangeiro: “O Estrangeiro, Meursault é um personagem extremamente contraditório” e O Estrangeiroum romance pleno de ambigüidades para que se possa reduzi-lo à ilustração de uma filosofia, não importa qual seja” (MALRIEU, 1999, p. 170).
Além da ambigüidade de Meursault, Camus, nesse romance, oportuniza-se em indicar a diferença entre a “noção” e o “sentimento” de absurdo, cuja reflexão de Sartre (SITUAÇÃO IV) explicita-a:
[...] não se deve considerar O Estrangeiro como uma obra inteiramente gratuita. Camus distingue, o disse­mos, entre o sentimento e a noção do absurdo. Escreve a este respeito: “Como as grandes obras, os sentimentos pro­fundos significam sempre mais do que o que dizem cons­cientemente... Os grandes sentimentos passeiam com eles o seu universo esplêndido ou miserável” (O Mito de Sísifo). [28] E acrescenta um pouco mais adiante: ´O sentimento do absurdo não é o mesmo que a noção do absurdo. Fundamenta-a, e nada mais. Não se resume nela...` Poderia dizer-se que O Mito de Sísifo pretende dar-nos essa noção e que O Estrangeiro quer inspirar-nos o sentimento. A ordem de publicação das duas obras parece confirmar esta hipótese. O Estrangeiro, que apareceu primeiro, mergulha-nos sem comentários no ´clima` do absurdo; o ensaio vem em seguida para iluminar a paisagem. Ora, o absurdo é o divórcio, o desajustamento. O Estrangeiro será, pois, um romance do desajustamento, do divórcio, da inadaptação. Daí a sua hábil construção: por um lado, o fluxo quotidiano e amorfo da realidade vivida; por outro, a recomposição edificante dessa realidade pela razão humana e o raciocínio. Pretende-se que o leitor, tendo sido primeiro posto em presença da realidade pura, a torne a encontrar, sem a reconhecer na sua transposição racional. Daí nascerá o sentimento do absurdo, isto é, da impotência em que estamos de pensar com os nossos conceitos, com as nossas palavras, os acontecimentos do mundo (SARTRE, 196-, p. 09).
Frente a isso, em Meursault não há, portanto, como nos heróis trágicos, uma tomada de consciência. Logo, como se poderia enveredar por um caminho de interpretação do herói que, para não sucumbir, deixa-se desconsertar por um rito de despedaçamento[29]? Sua consciência é a sua própria inconsciência natural que margeia o mundo social evitando o seu leito caudaloso. Prestes a ser executado, Meursault revive o inverno do mundo, contrariamente ao que Camus, em Núpcias, previra e sentira em sua terra natal: “em pleno inverno, aprendia por fim que existia em meu ser um verão invencível”.
A “paradoxalidade” ética encontrada no romance O Estrangeiro pode ser compreendida sob uma reflexão antidialética. Esta, enquanto modo de se pensar a realidade do mundo do homem, não engendra nada. Catam seus elementos de reflexão a partir de algo posto pela razão consciente de si mesma em que o real, tão-somente, pode ser pensado se tornado objeto. O que provém do cotidiano, à maneira argelina vivida por Camus, não tem a menor importância para a Filosofia Moderna, pois tudo está posto nele mesmo. Ao contrário, do modo perceptivo dialético, a compreensão filosófica se daria por um tipo de analética[30] entre o concreto (mundo) e o real. Nesse “momento analético” [31] o homem é visto num novo tipo de totalidade em que liberdade e essência aliam-se em prol de sua compreensão. A analogia, portanto, far-se-ia entre o real e o concreto da existência e, não exclusivamente, pela analogia entre o real e o pensado. Com efeito, aquilo que é rechaçado pela dialética antitética de superação traria à tona os efeitos ligados às suas causas. O nexo necessário entre efeito e causa não dependeria exclusivamente da razão, mas da coisa, ela mesma. Em vista disso, o estilo camusiano envereda por caminhos que pretendem revelar, em meio ao seu presente paroxismo, a inevitabilidade da noção de tempo descontínuo como caráter próprio do absurdo. Concernentemente, recorre-se à interpretação dada por Sartre em referência ao estilo da narrativa camusiana:
É a pluralidade dos instantes incomunicáveis que finalmente detectará a pluralidade dos seres. O que o nosso autor aproveita de Hemingway é, portanto, a descontinuidade das suas frases cortadas que se ajusta à descontinuidade do tempo. Agora com­preendemos melhor o estilo da sua narração: cada frase é um presente. Mas não é um presente indeciso que mancha e se alastra um pouco no presente seguinte. A frase é nítida, sem rebarbas, fechada em si mesma; está separada da frase seguinte por um vazio, como o instante de Descartes está separado do instante seguinte. Entre cada frase e a seguinte, o mundo aniquila-se e renasce: a palavra, desde o momento em que se eleva, é uma criação ex nihilo; uma frase de O Estrangeiro é uma ilha. E nós caímos em cascata de frase em frase, de nada em nada (SARTRE, 196-, p. 12).
Assim como o “mundo aniquila-se e renasce”, os atos morais praticados por M. não se ligam a nada, por conseguinte, não instaura ética alguma. A Fênix de Meursault renasce das cinzas no instante seguinte.
Em suas descrições sobre o verão da Argélia é que se pode encontrar uma explicação, não-somente, para a falta de ética, mas, igualmente, para a falta de religião e de arte de Meursault, antecipada em Núpcias:
Délibérément, le monde a été amputé de ce qui fait sa permanence : la nature, la mer, la colline, la méditation des soirs. Il n’y a plus de conscience que dans les rues, parce qu’il n’y a d’histoire que dans les rues, tel est le décret. Et à sa suite, nos oeuvres les plus significatives témoignent du même parti pris (CAMUS, NOC. 1998: 137).

Deliberadamente o mundo foi amputado daquilo que constitui sua permanência: a natureza, o mar, a colina, a meditação dos entardeceres. A consciência existe nas ruas porque nas ruas a história existe, segundo o que está decretado. Conseqüen-temente, portanto, nossas mais significativas obras são um testemunho dessa mesma parcialidade (com profundidade) [32] (CAMUS, 1979, p. 105/106).
Com efeito, O Sol poderá ser considerado “origem-originante” [33] de um ato moral se for pensado analogicamente pela razão. Sem se poder meditar sobre os entardeceres, como indica Camus, tampouco se podem vislumbrar as primaveras do mundo. O ocaso, por subsecutivo, não deve apenas remeter ao fim da vida, mesmo que seja ao final de um dia, ou ao seu início em outra vida, mas ao que se viveu porque o crepúsculo é memorial da aurora da vida. Daí poder-se-ia inferir o acentuado pessimismo camusiano em que o espírito de revolta não cede lugar ao otimismo escatológico de algo que não se vive.
Todavia, ao se ler seu testemunho sobre suas primeiras influências literárias, poder-se-ia concluir que Camus está inserido no mesmo espírito das obras Les îles de Jean Granier[34] e Les nourritures terrestres de André Gide, conforme transcrição, em seguida, da coletânea brasileira A Inteligência e o Cadafalso:
Eu tinha vinte anos quando li este livro pela primeira vez na Argélia. O golpe que recebi, a influência que ele exerceu sobre mim e muitos de meus amigos, pode ser comparado ao choque provocado sobre toda uma geração por Les nourritures terrestres. Mas a revelação que Les îles nos trazia era de outra ordem. Combinava conosco enquanto a exaltação de Gide deixava-nos ao mesmo tempo, admirativos e perplexos. Não precisávamos, com efeito, ser libertados das ataduras da moral, nem de cantar os frutos da terra. Estavam ao nosso alcance, na luz. Bastava mordê-los. Para alguns de nós, a miséria e o sofrimento existiam, é claro. Simplesmente, nós os recusávamos com toda a força de nosso sangue jovem. A verdade do mundo estava apenas em sua beleza e nas alegrias que oferecia. Vivíamos assim no mundo da sensação, na superfície do mundo, entre as cores, as ondas, o cheiro bom da terra. [...] fazíamos profissão de felicidade, com inSolência. Precisávamos, ao contrário, ser desviados um pouco de nossa avidez, arrancados enfim da nossa feliz barbárie. É claro que, se pregadores sombrios passeassem por nossas praias lançando anátemas sobre o mundo e os seres que nos encantavam, nossa reação teria sido violenta, ou sarcástica. Necessitávamos de mestres mais sutis e que um homem nascido em outras plagas, por exemplo, apaixonado também pela luz e pelo esplendor dos corpos, viesse dizer-nos, em uma linguagem inimitável, que estas aparências eram belas, mas que iriam perecer e que era preciso amá-las desesperadamente (CAMUS, 1998, p. 119-120).
Em sua análise crítica da tardia modernidade filosófica, Camus, em Núpcias, obra de 1936/7, contém a base metafísica de todo o seu pensamento ulterior, inclusive para se poder entender o paradoxo do agir de Meursault em O Estrangeiro. Com ela, presenteia aqueles que pensam desse modo originário com uma síntese inigualável da trajetória do pensamento ocidental, hipostasiado por Nietzsche, evidentemente, que, a título de conclusão desse capítulo, merece ser reescrito:
Voilà pourquoi il est indécent de proclamer aujourd’hui que nous sommes les fils de la Grèce. Ou alors nous en sommes les fils renégats. Plaçant l’histoire sur le trône de Dieu, nous marchons vers la théocratie, comme ceux que les Grecs appelaient Barbares et qu’ils ont combattus jusqu’à la mort dans les eaux de Salamine. Si l’on veut bien saisir notre différence, il faut s’adresser à celui de nos philosophes qui est le vrai rival de Platon. “Seule la ville moderne, ose écrire Hegel, offre à l’esprit le terrain où il peut prendre conscience de lui-même.” Nous vivons ainsi le temps des grandes villes. On cherche en vain les paysages dans la grande littérature européenne depuis Dostoïevski. L’histoire n’explique ni l’univers naturel qui était avant elle, ni la beauté qui est au-dessus d’elle. Elle a donc choisi de les ignorer. Alors que Platon contenait tout, le nos-sens, la raison et le mythe, nos philosophes ne contiennent rien que le non-sens ou la raison, parce qu’ils ont fermé les yeux sur le reste. La taupe médite (CAMUS, 1998, p. 137).

[...] hoje em dia é indecente proclamar que somos filhos da Grécia. Ou, então, somos seus filhos renegados. Ao colocar a história no trono de Deus, caminhamos em direção à teocracia, tal como aqueles que os gregos denominavam bárbaros e contra os quais combateram até a morte nas águas de Salamina. Se quisermos apreender a fundo a diferença existente entre nós e os antigos gregos, teremos de interpelar o único de nossos filósofos que é o verdadeiro rival de Platão. “Somente a cidade moderna”, atreve-se a escrever Hegel, “oferece ao espírito o terreno propício pra que ele tome consciência de si mesmo”. Vivemos, pois, a era das grandes cidades. Em vão buscamos as paisagens na grande literatura européia posterior a Dostoievski[35]. A história não explica nem o universo natural que havia antes dela, nem a beleza que lhe está por cima. Assim, sua escolha foi a de ignorar ambas as coisas. Ao passo que Platão continha tudo, o disparate, a razão e o mito, nossos filósofos nada contêm a não ser o disparate (sic.)[36] ou a razão, porque fecharam os olhos para o resto. A toupeira medita (CAMUS, 1979, p. 105-106).
A história, concebida de uma meditação toupeira, assinalada por Camus, não consegue explicar o universo natural que havia antes dela nem a beleza que está acima. Por isso, as expressões humanas, causticantes do dia-a-dia, adquirem sentido se se aprendeu a viver sob o Sol, sem, contudo, se deixar de lado à recusa intermitente do julgamento dos atos que causam dano a outrem, como se verá mais adiante no capítulo sobre “O Grito da Culpabaseado na obra A Queda.
Em última análise, O Estrangeiro, de Camus, mesmo demonstrando-se como uma narrativa de cunho desordenado perante a lógica do discurso (do que se instituiu “Romance”, desde Cervantes), logra alcançar um novo estilo em que, através do viés do absurdo do cotidiano da existência, pode-se antever um sentido humano. Mesmo que a inexorabilidade interpretativa de Camus não auxilie, ao menos nesse romance, pode-se, sempre, recorrer a uma releitura dessa obra ou a uma de suas anteriores análises, tais como a de Sartre:
[...] quando se inicia a leitura do livro, não parece que se está em presença dum romance, mas antes duma melopéia monótona, do canto fanhoso dum árabe. Pode acreditar-se então que o livro seja parecido com uma dessas árias de que fala Courteline, que “se vão e não voltam mais” e que se interrompem repentinamente, sem que se saiba porquê. Mas, a pouco e pouco, a obra organiza-se por si diante dos olhos do leitor e revela a sólida infra-estrutura que a suporta. Nenhum pormenor é inútil, todos são retomados mais adiante e lançados na contenda; e, quando fechamos o livro, compreendemos que não podia começar doutra maneira, nem podia ter outro fim: neste mundo que se nos pretende apresentar como absurdo e donde se extirpou cuidadosamente a causalidade, o menor incidente tem importância; nãoum único que não contribua para conduzir o protagonista ao crime e à pena de morte. O Estrangeiro é uma obra clássica, uma obra de ordem, composta a propósito do absurdo e contra o absurdo (SARTRE, 196-, p. 12).
Paradoxalmente, por conseguinte, o destino trágico de Meursault é, talvez, o mesmo destino do homem contemporâneo, que, de um lado, margeia o cotidiano no anonimato da consciência, de outro, vive em estado de plena racionalidade encontrando explicações para todos os seus atos morais e éticos. A ambigüidade humana não é apenas prerrogativa de Meursault nem dos argelinos ou de todo povo do Magrebe. Ela sempre esteve presente em toda história da humanidade e, talvez, isso é que torna o homem verdadeiramente humano, porque único em sempre dever ser o que é. Camus, assim como Nietzsche, admite essa medida e prefigura-a em uma de suas descrições das experiências vividas nas Núpcias de Verão em Argélia: “Não é fácil tornar-se aquilo que se é reencontrar nossa medida profunda” (CAMUS, 1979, p. 11).






[1] Ao Prof. Jacques Salah, por ter me mostrado as filigranas do brilho do Sol em O Estrangeiro de Camus.
[2] Apesar de não existir em língua portuguesa a palavra PROTAGONIZAÇÃO optou-se por este neologismo a fim de se poder melhor afirmar a tipificação que Camus dá ao personagem central de sua obra O Estrangeiro.
[3] Diásparagmos — do grego, arte do despedaçamento no sentido iniciático.
[4] Em concernência a isso, o filósofo cego e fotógrafo franco-esloveno Evgen Bavcar em uma de suas explanações sobre o contraste da luz, destacadamente em Porto Alegre quando do Fórum Social Munidal de 2003, destaca que o Sol zenit é aquele que não faz sombras em cima de um objeto. A sombra, portanto, não representaria o passado nem o futuro, somente o presente. Meursault seria este objeto enebriado de Sol que não nem sente seu passado nem seu futuro. Está inteiramente tomado pela natureza, portanto, destituído de juízo de valor, daí a possibilidade de inocentá-lo. (N. do A.).
[5] Autour de moi c’était toujours la même campagne lumineuse gorgée de Soleil. L’éclat du ciel était insoutenable (CAMUS, 1999, p. 21).
[6] Sem cor remete a falta do brilho do Sol, realidade metafórica do cotidiano. (N. do A.).
[7] Sem sentido aqui, ainda permanece destituído de uma razão que justifique se viver desse ou daquele modo.
[8] Esta realidade prometéica tem sentido se vista a partir do momento em que Prometeu, ao cair da tarde quando a águia de Zeus retornava ao Olimpo, reconstituía seu fígado (o órgão do humor para os gregos) à luz de Réia (a lua). (N. do A.).
[9] Le soir, dans ce pays, devait être comme une trêve mélancolique. Aujourd’hui, le Soleil débordant qui faisait tressaillir le paysage le rendait inhumain et déprimant (CAMUS, 1999, p. 20).
[10] Trabalho árduo, fadigoso (pónos, em grego, em oposição a ergo) — descrição dada por Hesíodo na interpretação do mito de Prometeu em Os Trabalhos e Os Dias após a punição impingida por Zeus. (N. do A.).
[11] SOL — Enquanto termo figurado, O Sol designa-se dos seguintes modos: desejo, cólera, suor, fogo, chuva de fogo, espada, brilho, calor, inSolação, luz, luminosidade, verão, aquecer, latejar, címbalo, espada de luz, ar inflamado, ardência, queimadura, lâmina fulgurante. (N. do A.).
[12] Vale lembrar que Dioniso, ao ser entronizado na Polis Grega e metaforizado na literatura euripidiana, assume uma forma representativa de transgressão que é impecavelmente mostrada na tragédia As Bacantes. (N. do A.).
[13] Métron — medida, do grego. Noção que exprime a real conduta humana que Aristóteles retoma em sua Ética à Nicômacos comomeio termo” do agir humano. (N. do A.).
[14] Conhece-te a ti mesmooráculo de Apolo incrito no pórtico de Delfos na época de Sócrates, representa o ponto de partida da filosofia helênica (grega). (N. do A.).
[15] O estranho aqui é ameaçador, como se analisou anteriormente no capítulo sobre A Indiferença em Face do Extremo.
[16] Il y avait déjà deux heures que la journée n’avançait plus, deux heures qu’elle avait jeté l’ancre dans un océan de métal bouillant (CAMUS, 1999, p. 61-62).
[17] Au jour, em português “de dia”, é uma expressão corriqueira que merece uma ressalva: o sentido aqui se dá quando se pode entender o “de dia”, em oposição ´de noite` encontrada na linguagem coloquial, possui um sentido interessante de demonstrar algo que é cabível durante o dia, embaixo do Sol, sem abrigo da sombra. Querer-se-ia dizer que um ato moral implicado em julgamento não poderia ser realizado às escuras. (N. do A.).
[18] J’ai compris que j’avais détruit l’équilibre du jour, le silence exceptionnel d’une plage où j’avais été heureux (CAMUS, 1999, p. 61-62).
[19] Mênades — vingadoras de crimes de sangue; ou as tresloucadas que se encontram na mitologia grega. (N. do A.).
[20] Alors, j’ai tiré encore quatre fois sur un corps inerte où les balles s’enfonçaient sans qu’il y parût (CAMUS, 1999, p. 61-62).
[21] Et c’était comme quatre coups brefs que je frappais sur la porte du malheur (CAMUS, 1999, p. 61-62).
[22] Optou-se pelo substantivo “Anuviamento” como um neologismo, pelo fato do adjetivo ´anuviado` designar apenas uma decorrência e não uma causa, como se verificou em vocábulos anteriores. (N. do A.).
[23] Estrangeirice no sentido de estrangeiridade, do ponto de vista filosófico, em que o estrangeiro se põe à prova fora de sua verdadeira pátria.  (N. do A.).
[24] (...) un homme qui tuait moralement sa mère se retranchait de la société des hommes au même titre que celui qui portait une main meurtrière sur l’auteur de ses jours (CAMUS, 1999, p. 102).
[25] Publicado em 1955 na edição americana de L’étranger. (N. do A.).
[26] Proferição aqui entendida como sentido judaico-cristão em que ao se pronunciar a palavra o verbo se faz carne, ou seja, o ser se instaura pela via da palavra e não pela via da idéia, como na concepção da filosofia grega. (N. do A.).
[27] [...] l’espoir, au contraire de ce qu’on croit, équivaut à la résignation. Et vivre, c’est ne pas se résigner (CAMUS, 1998, p. 49).
[28] Nota em parentêses do autor.
[29] Despedaçamento — alusão ao Diásparagmos (vide Mito de Orfeu, Dioniso) que se encontra nos ritos de passagem da Jornada do Herói. (N. do A.).
[30] O termo analético foi localizado, mui apropriadamente para esse contexto, no pensamento sobre a exterioridade da Filosofia da Libertação de Enrique Dussel (1934-Mendoza, Argentina) que, assim como o argelino Camus, foi rechaçado pela filosofia acadêmica da razão totalizante que anula o mistério e senta no trono de Deus sem, contudo, criar nada, porque sua fonte não produz vida; é estéril na sua própria origem porque destituída de Sol. (N. do A.).
[31] Momento Analético — segundo Enrique Dussel, esse modo de se compreender o homem em sua totalidade, prende-se ao conceito de “exterioridade” que é o âmbito que se situa além do fundamento da totalidade. O âmbito da exterioridade é real somente pela existência da liberdade humana. A mera substantividade real do homem adquire agora toda a sua peculiaridade, sua indeterminação própria, sua essência de carregar uma história, uma cultura; é uma coisa que se autodetermina livremente, responsavelmente: é pessoa, rosto e mistério. Analético quer indicar o fato real humano pelo qual todo homem, todo grupo ou povo, se situa sempre “além” (anó-) do horizonte da totalidade. A dialética negativa já não é suficiente. O momento analético é o ponto de apoio de novos desdobramentos. O momento dialético nos abre ao âmbito metafísico (que não é o ôntico das ciências fáticas nem o ontológico da dialética negativa), referindo-se semanticamente ao outro. Sua categoria própria é a de exterioridade; por isso, o ponto de partida de seu discurso metódico (método mais científico que dialético-positivo), é a exterioridade do outro; seu princípio não é o de identidade, mas de separação, distinção (DUSSEL, s.d., p. 163-164).
[32] Com profundidade — o destaque é do autor.
[33] Origem-originante — possui um sentido que remete não apenas ao que está lá atrás, mas, sobretudo, está sempre se impondo como causa determinante. (N. do A.).
[34] O romancista Jean Grenier foi professor de filosofia no colégio em que Camus estudou, em Argel, tornando-se figura central na formação intelectual e literária do escritor. (N. do A.).
[35] Devido a enorme influência da literatura francesa sofrida por Camus, exceção se faz a obras como as de André Breton, Lautréamont, Arthur Rimbaud, André Gide, Malraux, Faulkner. (N. do A.).
[36] Convém melhor: sem sentido (nos-sens).

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