O ESTRANGEIRO e a Ética do Absurdo
Lourenço Leite
A
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Evocação da justiça
a partir do rosto
de outrem , anunciada anteriormente , pretendeu desmoronar
a insensatez da indiferença
humana , inclusive
quando ela
atinge o limiar extremo
da aniquilação. A perspectiva que se abriu está em
consonância com
uma demonstração da ausência
de outrem , não
como sintoma
de indiferença , mas ,
sobretudo , com
a presença de algo
irremovível do destino humano .
Em decorrência
disso, a “protagonização” [2]
realizada por Camus, em O Estrangeiro ,
não pretende apenas
apresentar uma tipificação do personagem
central como
sendo alguém que
reflete uma atitude peculiar .
O comportamento do protagonista
reflete um tipo
de atitude encontrado no homem
de hoje , em
que , mesmo
sentindo “a terna indiferença
do mundo ”, que
faz parte de sua
característica individual ,
deseja , paradoxalmente ,
um tipo
de reconhecimento , a despeito de vir acompanhado de “gritos
de ódio ”.
Um dos
romances mais intrigantes e polêmicos da literatura do Séc. XX O Estrangeiro, de Camus é, sem embargo,
a obra prima da Ética do Absurdo. Merecedor de crítica e interpretação, não
permanecera indiferente ao olhar fulgurante e admirado de um dos maiores
representantes do existencialismo, Jean-Paul Sartre, que torna público sua
empolgada resenha, dando-nos, talvez, além de sua impressão, algumas chaves de
entendimento dessa obra:
Prefigurado
a partir de sua
obra : A Morte Feliz
(La Mort Heureuse), escrita em 1936/7 e publicada post mortem, em 1971, O Estrangeiro
(L’Étranger, de 1942), além de ser um romance , constitui-se num ensaio
metafórico sobre
o Absurdo , um
de seus temas
filosóficos mais pungentes ,
que se podem encontrar ,
igualmente , nos
escritos de O Mito
de Sísifo (Le Mythe de Sisyphe, de 1942), Calígula (Caligula, de
1944) e O Equívoco (Le
Malentendu, de 1944).
Ao passo
que, O Estrangeiro, é um romance, que
não se categoriza como realista nem fantástico, mas que possui, entretanto,
duas características literárias que marcaram o autor: o naturalismo e o
surrealismo francês. Narra a vida de um funcionário público, Meursault, que é
surpreendido em meio ao seu cotidiano com a notícia da morte de sua mãe. Após
obter alguns dias de licença de seu chefe, dirige-se ao asilo onde ela residira
nos seus últimos anos e, diante do velório e do enterro, não consegue chorar
sua morte, causando perplexidade entre os demais. Homem Solitário e sem demonstrações de afeto,
vive uma melancolia que é somente tolerada por sua namorada. Ao passear na
praia com amigos, é abordado por um Árabe que o faz se sentir ameaçado. Dessa
impressão vai surgir o ambiente propício para ele cometer um assassinato. Ao
ser preso e julgado, revive sob os moldes de sua subjetividade o confronto
entre si mesmo e o mundo, mas permanecendo fiel às suas verdades, o que causa
um enorme constrangimento entre seu advogado/promotor e os jurados, além de
escandalizar o capelão da prisão pela sua falta de fé na justiça divina. É
condenado, pela ironia do destino, não por ter assassinado uma pessoa, mas por
não ter chorado no enterro de sua mãe.
Camus dá o
nome de Meursault, protagonista
d´O Estrangeiro ,
a partir de duas realidades
marcantes da Argélia: O Mar (La Mer) e O Sol (Le Soleil), sublinhando, desse modo , a harmonia
de seu personagem
com os elementos
da natureza . O primeiro
será o bálsamo de M. e o segundo seu inferno [4].
Assim , descreve M. o Sol: “À
minha volta ,
era sempre
a mesma paisagem
luminosa , plena de Sol. O brilho do céu era insuportável ” [5] (CAMUS,
197-, p. 21).
O Sol para M. é
a representação do fora ,
do mundo em
que vivem as pessoas
sem cor [6]
e sem sentido [7],
porque não
buscam a verdade dentro de si mesma. Em contraposição , à noite ,
realidade prometéica[8]
dos que meditam na Solidão da melancolia ,
mostra-se como a real
possibilidade de se manter fiel
às convicções mais
profundas e lugar de abastecimento de seu ser . “A noite , nesta região ,
devia ser como
uma “trégua melancólica” (grifos
do autor ). Hoje ,
o Sol escaldante que
fazia estremecer a paisagem ,
tornava-a inumana e deprimente” [9] (CAMUS, 197-, p. 20).
Concernentemente
a atualidade do mito de Prometeu, Camus revigora-o em uma das passagens de seu
ensaio intitulado Prometeu nos Infernos que se encontra em Núpcias:
Que signifie
Prométhée pour l’homme d’aujourd’hui? On pourrait dire sans doute que ce
révolté dressé contre les dieux est le modèle de l’homme contemporain et que
cette protestation élevée, il y a des milliers d’années, dans les déserts de
la Scythie, s’achève aujourd’hui dans une convulsion historique qui n’a pas
son égale. Mais, en même temps, quelque chose nous dit que ce persécuté
continue de l’être parmi nous et que nous sommes encore sourds au grand cri
de la révolte humaine dont il donne le signal Solitaire (CAMUS, 1998, p. 119).
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Que significa Prometeu para o homem de
nossos tempos? Poder-se-ia dizer, provavelmente, que esse revoltado contra os
deuses é o modelo do homem contemporâneo e que o protesto lançado, há
milhares de anos, nos desertos da Cita deságua hoje numa convulsão histórica
sem igual. Contudo, ao mesmo tempo, algo nos faz pensar que aquele ser
perseguido continua vivendo sua sina entre nós e que ainda estamos surdos ao
tremendo grito da revolta humana cujo sinal Solitário ele nos
dá (CAMUS, 1979, p. 92).
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Mas, muito
embora Prometeu ainda esteja no panteão dos heróis de nossa época, ele não se
atualizou como um pungente paradigma da liberdade. Como asseverou Camus, a
presença das vozes ensandecidas de nosso tempo continua a perseguir o
filantropo da civilização:
L’homme
d’aujourd’hui est en effet celui qui souffre
|
[...] o
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Camus
emprega o conceito aristotélico de Catarse presente nas palavras “força e
violência” quando afirma: “as vozes
inimigas que insultaram (tivessem insultado) o vencido no passado seriam as mesmas que repercutem no limiar da
tragédia de Ésquilo: as da Força e da Violência”. A partir da Poética de
Aristóteles, a Tragédia, por sua vez, caracteriza-se fundamentalmente pelo “Terror
e Piedade (e) tem por efeito a purificação das emoções do caráter”,
(ARISTOTELES, 1979, p.245) a Catarse, portanto.
Consoante
essa análise caracterológica da interpretação dada por Camus ao mito de
Prometeu, o protagonista de O Estrangeiro, de modo igualmente absurdo e
paradoxal, hierofaniza um tipo de Prometeu às avessas, como um anti-herói. Ele
se abriga das intempéries do cotidiano no aconchego de seu quarto e na
comiseração de seus amigos. Não se vislumbra, portanto, a idéia de Solidariedade que é demonstrada n´O
Homem Revoltado. A ajuda como “cuidado” se dá apenas no âmbito das relações
interpessoais entre M. e seus amigos.
Poder-se-ia
ressaltar que
o impulso de Prometeu foi causado pela Hýbris,
enquanto que
o dos homens foi movido pela irreverência de
Dioniso, como se pode identificar
na Tragédia Grega .
Contudo , o homem
não é mais
o mesmo após
a expulsão do “paraíso ”,
isso denota que
ele firma-se no mundo
com altivez .
Apesar de ter
sido punido com o “trabalho
árduo ” [10]
e com a tarefa
de se tornar livre
dos deuses , de agora
em diante
vive com dignidade .
Le héros
enchaîné maintient dans la foudre et le tonnerre divins sa foi tranquille en
l’homme. C’est ainsi qu’il est plus dur
|
O herói acorrentado, mesmo sob o raio e o
trovão divinos, mantém inabalável sua fé no homem. Assim, ele é mais duro que
sua rocha, mais paciente que seu abutre. Melhor do que a revolta contra os
deuses é essa longa obstinação que faz sentido para nós; e essa admirável
vontade de não separar nem excluir nada que sempre reconciliou e reconciliará
o coração dolorido dos homens e as primaveras do mundo (CAMUS, 1979, p. 96).
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Meursault, esse anti-herói
prometeico, encontra-se igualmente
acorrentado pelas efígies do moralismo cristão .
Paradoxalmente , continuamente,
blasfemava ao negar a presença
estonteante do Sol que o impedia de refletir
sobre sua
própria condição .
Com efeito ,
pode-se verificar um
dos traços mais
marcantes da literatura
camusiana: o destino trágico .
O ímpeto de M. não
é sem razão .
A razão é o destino
que se torna
trágico , inevitavelmente sediado pelos elementos
da natureza . O Sol[11], assim
como se encontra
na Tragédia Grega ,
é uma das causas inebriantes do descomedimento . Essa desmedida
pode, facilmente, por analogia , ser identificada com a Hýbris dionisíaca [12]
em oposição
ao Métron[13]
apolíneo .
Vê-se, em
seguida , a entrega
do personagem de O Estrangeiro a um mundo de
subjetividade onde ele
permanece ‘si mesmo ’
(paradoxalmente movido pelo
impulso da Hýbris) e onde
as hipocrisias da sociedade
não tinham força
de transformação. O “Conhece-te a ti mesmo ”[14]
apolíneo , sob
influência nietzschiana, declina e cede lugar ao “Vem a ser o que tu és”, tal como se
verifica na citação seguinte
d´O Estrangeiro :
C’était le même éclatement rouge. Sur le sable, la mer
haletait de toute la respiration rapide et étouffée de ses petites vagues. Je
marchais lentement
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Era o mesmo
brilho vermelho. Na areia, o mar ofegava com toda a respiração rápida e
sufocada de suas pequenas ondas. Eu caminhava lentamente em direção às pedras
e sentia minha testa inchar, sob o Sol. Todo este calor me apertava, opondo-se a meus
passos. E cada vez que sentia o seu grande sopro quente no meu rosto,
trincava os dentes, fechava os punhos nos bolsos das calças, retesava-me todo
para triunfar sobre o Sol e essa embriaguez opaca que ele esparramava
sobre mim (CAMUS, 197-, p. 61).
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M. tenta a toda prova triunfar sobre o Sol. Sua resistência
empreende-se através de seu corpo diante desse desvario
do Sol ao fazer estardalhaços como
se quisesse lembrar ao anti-herói
que ele
não pode ser
de outro modo .
Nesse momento crucial
se pode testemunhar o limiar
do humano sob
os auspícios do destino
e a luta de superação
de si mesmo
pela presença
da consciência de culpa .
Natureza e Razão
são mostradas em
evidência , sem
se saber qual
delas será superada. O ato moral dessa narrativa
só se tornaria ético
se a natureza fosse superada pela razão .
Dès qu’il m’a vu, il s’est soulevé un peu et a
|
O protagonista está inteiramente
circunscrito em
um ambiente
repleto de elementos
naturais , notadamente os da praia , que o
conduzem em tautocronia a agir
sem razão
por causa do Sol. Cada
evento que
se sucede é mais importante
que a figura
ameaçadora do árabe . De súbito ,
Meursault percebe a figura de alguém (Árabe ) que poderia
trazer-lhe o inesperado ; verifica-se que a natureza ,
outrora eternamente
cúmplice e fiel ,
se paralisasse diante do estranho [15],
representado pela lâmina
de metal : “Havia já
duas horas que
o dia não
progredia duas horas que lançara âncora
num oceano de metal
fervilhante”. [16]
(CAMUS, 197-, p. 62-63).
O vapor que passara no horizonte era,
para M., como um bonde de sua existência que estaria perdendo. Há um desconforto
em M. diante da realidade como se ela fosse responsável por interromper uma
apreciação da vida, em estado de gozo, que ele não gostaria de perder nenhum
acontecimento, por mais efêmero que fosse ou por mais sem importância para os
demais a sua volta. Leia-se a continuação da narrativa de Camus para se
verificar como isso se dá:
J’ai pensé
|
Pensei que bastava dar meia-volta e tudo
estaria acabado. Mas, atrás de mim, comprimia-se toda uma praia vibrante de Sol.
Dei alguns passos em direção à nascente. O árabe não se mexeu. Apesar disso,
estava ainda bastante longe. Parecia sorrir, talvez por causa das sombras
sobre o seu rosto. Esperei (CAMUS,
197-, p. 62-63).
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M. pensou que era suficiente dar meia-volta , como
se faz perante situações
que causam desconforto .
Com isso ,
ele retomaria sua
cotidianidade e estaria a salvo da interpelação
do outro . A redução que
Camus elabora nessa passagem é tão extraordinária ,
que causa , igualmente como
a M., um estado
de estupor diante
do “outro ”. O homem
de hoje encarna, inevitavelmente essa atitude , quando se
recusa a acolher o estranho .
O absurdo da estranheza
se configura. Porque de um lado , o cotidiano comprime como
a M., “uma praia
vibrante de Sol”, mas de outro ,
expande “alguns passos
em direção à nascente ”. Dá-se a impressão
que M. quer
“voltar às origens ”
e que essa volta
evitaria uma catástrofe . Há um
instante fugaz
naquela situação inevitável
que insinua algo
de impedimento para
sua efetivação quando
ele vê
o Árabe sorrir . “Talvez , por
causa das sombras
sobre o seu
rosto ”. A sombra em contraposição ao brilho
do Sol relembra a “trégua
melancólica” que M. retrata
um pouco
antes de tudo
isso acontecer .
Ou seja, sem
a influência do Sol, talvez , a desgraça não teria lhe batido a porta .
La brulure du Soleil gagnait
|
A ardência do Sol
ganhava-me as
|
A presença do Sol não está apenas
na praia escaldante. Ela deita-se sobre
o corpo de M. e o faz transpirar
como em
estado de medo
e de profunda angústia .
Medo da perda
que faz doer-lhe a testa
como ocorrera no enterro
de sua mãe ,
contudo , coragem
de enfrentar a realidade
pura dos fatos .
O Sol, apesar
de desnorteá-lo perante outrem e a sociedade , paradoxalmente norteia-o na condução
de seus atos ,
fazendo de M. alguém sem história , isto é, sem passado e sem futuro . Está-se diante
de um fenômeno
que se passa
au jour[17],
à luz do dia
e não poderia
ser de outro modo . Se assim
o fosse, estar-se-ia ao abrigo de todo e qualquer
julgamento ético
que proviesse de um
ato praticado de noite .
Mas dei um passo, um só passo à frente.
E, desta vez, sem se levantar, o árabe tirou a faca, que ele me exibiu ao Sol.
A luz brilhou no aço e era como se uma longa lâmina fulgurante me atingisse
na testa. No mesmo momento, o suor acumulado nas sobrancelhas correu de
repente pelas pálpebras, recobrindo-as com um véu morno e espesso (CAMUS, 197-, p. 62-63).
|
Os gestos
de M. e do árabe associam-se e se fundem como numa dança
flamenca em que
as emoções foram traídas e a honra precisa ser restaurada. Não é
mais uma cena
de praia , de luta
e morte , onde
se podem observar os gestos
ameaçadores de faca
em punho
e de defesa com
os movimentos possíveis
do corpo . O lugar
do corpo em
destaque , que
deve ser protegido ,
não é o calcanhar ,
como o de Aquiles, mas
a testa , a fronte ,
os olhos . Isto
é, seu rosto
reflete o si mesmo
que se torna
vulnerável quando
o outro se aproxima. O resultado desse confronto é
o aparecimento em
sua testa
do suor que
escorre até suas
pálpebras como
se quisessem cegar seus
olhos . Se o Sol, reinando abSoluto sobre
a praia não
era suficiente
para mostrar-lhe sua
força , traduze-se em
forma de suor
numa simbiose da natureza
entre água
e sal . O suor
sintetiza a presença fulminante
do Sol em
seu corpo .
Ele não
pode escapar dessa presença .
Quisera poder sacudir o suor e o Sol.
Mes yeux étaient aveuglés derrière ce rideau de larmes
et de sel. Je ne sentais plus que les cymbales du Soleil sur mon front et, indistinctement, le glaive éclatant jailli du
couteau toujours en face de moi. Cette épée brûlante rongeait mes cils et
fouillait mes yeux douloureux. C’est alors que tout a vacillé. La mer a
charrié un souffle épais et ardent. Il m’a semblé que le ciel s’ouvrait sur
toute son étendue pour laisser pleuvoir du feu (CAMUS, 1999, p. 61-62).
|
O mesmo
Sol que
o fazia agir daquele modo ,
paradoxalmente , fazia-o sentir
o remorso antecipado de algo que ainda não havia
ocorrido, porém , estava preste a acontecer e já se antecipava em
lágrimas e em
sal . O Sol não apenas retine a pino em sua fronte , ele o
atinge como címbalos
de metal fervilhante. M. “lava a alma ’ antes de cometer o assassinato como
se o autojulgasse e o impedisse que toda e qualquer
forma de julgamento exterior (moral
ou jurídica )
pudesse se dar . Somente
na real possibilidade do “outro de si ”, como afirma Lévinas: no encontro
do face a face ,
é que o outro
se revela. O outro aqui
é visto como
grande ameaça ;
de modo que
a única saída
é exterminá-lo.
Tout mon être s’est tendu et j’ai crispé ma mainsur le
revolver. La gâchette a cédé, j’ai touché le ventre poli de la crosse et
c’est là, dans le bruit à la fois sec et assourdissant que tout a commencé. J’ai secoué la sueur et le Soleil (CAMUS, 1999, p. 61-62).
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Todo o meu ser se retesou e crispei a mão
sobre o revólver. O gatilho cedeu, toquei o ventre polido da coronha e foi
aí, no barulho, ao mesmo tempo seco e ensurdecedor, que tudo começou. Sacudi
o suor e o Sol (CAMUS, 197-, p. 62-63).
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Paralisado
pela força
causticante do Sol
Meursault cede ao infortúnio e cumpre o abominável ato do assassínio . A inevitabilidade do assassinato
estava se realizando. Tudo começou como diz M. Ele
sacode o suor e o Sol. Como
se fosse possível “sacudir ”
o Sol de cima
dele. Mas era
a maneira de se sentir
aliviado e poder se libertar
daquela chama ardente
que consumia seu
ser e o levara a praticar
o pior e o mais
grave de todos
os atos éticos :
matar o semelhante .
A ambigüidade de seu
ato continha, ao mesmo
tempo , amor
e ódio , acolhimento
e rejeição. Nele se digladiavam a natureza
e a razão . Era
como se M. quisesse impedir
que tudo
aquilo retrocedesse no tempo . “Felizmente era tarde , tarde demais ”, como
a mesma expressão
de Clamence que se verifica em A Queda . “Compreendi que
destruíra o equilíbrio do dia , o silêncio
excepcional de uma praia
onde havia sido feliz ” [18]
(CAMUS, 197-,
p. 62-63).
Somente
agora é que M. compreende. Ele toma consciência de seu ato. Torna-se humano
porque pode refletir sobre seus próprios atos e perceber a responsabilidade
implicada neles. Mas a sua tragicidade ainda não houvera acabado. Sua
autopunição requerera que ele evocasse as Mênades[19]
para que a desgraça se realizasse por completo e ele pudesse ser punido. Sem
isso, seu ato não possuiria nenhuma justificação de ser. “Então, atirei quatro vezes ainda num corpo inerte, em
que as balas se enterravam sem que se desse por isso” [20]
(CAMUS, 197-, p. 62-63).
Os últimos estalidos de Sol
naquela praia fazem de M. um homem exaurido de sorte que não pode mais impedir
que a desgraça se instaure. “E era como se desse quatro batidas secas na porta da desgraça” [21] (CAMUS, 197-, 62-63).
Quatro
batidas secas na porta da desgraça além de evocarem as vingadoras de crime de
sangue, anunciam, de forma apocalíptica, que o caos havia se reinstalado no
mundo e a sua reparação só poderia ocorrer em outra realidade. Naquele mundo da
praia onde antes estivera em harmonia, o sortilégio do destino estava a
destilar suas últimas gotas de encantamento.
No interior e no instante do ato do
crime está presente o julgamento. M. comete um assassinato acompanhado de
julgamento. O próximo instante para ele advirá livre e isento, como se viu
acima, de todo tipo de julgamento. A liberdade que o acompanhava antes do crime
deve estar presente depois. Ninguém, nem nenhuma instituição humana teriam
condições de julgar seu ato. Ele era senhor de sua existência porque seu ato
fora causado por algo exterior: o Sol era o
responsável. No tribunal, quando M. é interrogado, pode-se, literalmente, ouvir
de Camus a demonstração de que era o Sol a
causa do crime:
Quand le procureur s´est rassis, il y a eu un moment de
silence assez long. Moi, j´étais étourdi de chaleur et d´étonnement. Le
président a toussé un peu et sur un ton très bas, il m´a demandé si je
n´avais rien à ajouter. Je me suis levé et comme j´avais envie de parler,
j´ai dit, un peu au hasard d´ailleurs, que je n´avais pas eu l´intention de
tuer l´Arabe. Le président a répondu que c´était une affirmation, que
jusqu´ici il saisissait mal mon système de défense et qu´il serait heureux,
avant d´entendre mon avocat, de me faire préciser les motifs qui avaient
inspiré mon acte. J´ai dit rapidement, en mêlant un peu les mots et en me
rendant compte de mon ridicule, que c´était à cause du Soleil (CAMUS, 1999, p. 103).
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Quando o promotor se sentou, houve um
momento de silêncio bastante longo. Quanto a mim, estava atordoado pelo calor
e pela perplexidade. O presidente tossiu um pouco e, em tom muito baixo,
perguntou se eu tinha algo a acrescentar. Levantei-me e, como estava com
vontade de falar, disse, aliás, um pouco ao acaso, que não tinha tido
intenção de matar o árabe. O presidente respondeu que isto era uma afirmação;
que até então não percebera muito bem o meu sistema de defesa e que gostaria,
antes de ouvir o meu advogado, que eu especificasse os motivos que inspiraram
o meu ato. Disse rapidamente, misturando um pouco as palavras e consciente do
meu ridículo, que fora por causa do Sol. Houve risos na
sala (CAMUS, 197-, p. 104).
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O Sol como
realidade metafísica
se insere, igualmente , na noção de ser que só pode afirmar , havendo, nesse âmbito ,
uma impossibilidade de negação . O ser somente pode afirmar ,
logo , ele
sempre põe o ente ,
este , não
possui a real possibilidade de poder se por como ser . Vale
lembrar a expressão
heraclitiana, “todo ente
é no ser ”. No ser , tudo é afirmação. Vale salientar que esse entendimento
só tem sentido
se o Sol for visto
como realidade
metafísica . Ao contrário ,
ele não
passa de uma estrela
de quinta grandeza
do sistema Solar que
permite a fotossíntese no planeta terra . Sua força penetrante e desnorteadora, em
Meursault, se dão como dupla realidade : material e imaterial .
Pelas mãos de Camus é que se pode interpretar
esta última realidade .
Ele , Camus, faz-nos ir
além do brilho
do Sol que
cegam os olhos e a alma .
Ele traz a presença
dionisíaca do Sol como
divindade (metafísica )
que , além
de transformar os fatos ,
extasia a alma e a faz agir
em prol
da natureza (physis, como evolução
da natureza , no sentido
helênico arcaico ).
Concluir-se-ia, sem embargo ,
que a natureza
é também assassina .
Mas , se porventura ,
ela age desse modo ,
é porque o homem
está sem o abrigo
da sombra , isto
é, como afirmara o filósofo cego franco-esloveno, Bavcar, sem
a concepção do passado .
A presença de Dioniso, não
seria, portanto , a evocação
da ancestralidade para lembrar
ao homem o seu
esquecimento ? Assim ,
Meursault passa a ser
o representante do homem contemporâneo .
Aquele que
age sem culpa ,
porque nega o
passado .
O absurdo [...] manifesta
antes de tudo
um divórcio :
o divórcio entre
as aspirações do homem
para a unidade
e o dualismo insuperável
do espírito e da natureza ,
entre o impulso
do homem para
o eterno e o carácter finito da sua existência , entre
a “preocupação” que é a sua própria essência e a inutilidade
dos seus esforços .
A morte , o pluralismo
irredutível das verdades
e dos seres , a ininteligibilidade do real , o acaso , eis os pólos do
absurdo ! (SARTRE, 196-, p. 02).
Contudo, vale lembrar que Matar não pode ser suplantado pelo
Morrer. Não há um jogo dialético entre morte e vida. A superação da
transgressão não contém a possibilidade de se deixar morrer por um motivo que
venha ser testemunho de redenção de outrem. A redenção aqui se refere ao
próprio transgressor. Seu crime se justifica por um fator interno a si mesmo de
sobrevivência que evidencia a preservação de sua natureza. Não há, por
conseguinte, um crime de lógica como se verifica em O Homem Revoltado.
Se se pudesse categorizá-lo, seria enquadrado em um tipo de crime de paixão
consigo mesmo. O anuviamento[22]
da consciência de M. é provocado pela sua pura e ingênua paixão pela vida. Não
há, no sentido freudiano, um Super-Ego que lhe relembre o interdito.
Meursault é um
personagem vazio
que brota
de dentro para
fora . O Árabe ,
como ameaça
de morte , é a ameaça da morte de um tipo de “eu ”, quase Solipcista,
que põe em
risco a permanência
de uma interioridade plena e abSoluta. O Sol escaldante e estonteante, como
representação do mundo
sem sentido ,
anuvia a alma de Meursault e o faz reagir para preservar sua dignidade de homem
abSolutamente ético ,
impossibilidade paradoxal do agir humano . O paradoxo da impossibilidade ética
no agir de Meursault se dá pelo
fato de não
se poder vislumbrar , na conduta humana ,
uma moral aliada
a uma ética abSoluta. Só
se poderia pensar
uma ética abSoluta no âmbito
do divino . Com
efeito , essa impossibilidade, sob o olhar de Sartre,
confirma-se com esse
intento : É
certo que
o absurdo não
está no homem nem
no mundo , se os tomarmos separadamente ; mas como a característica essencial do homem
é “estar-no-mundo”, o absurdo acaba por identificar-se com pletamente
com a condição
humana (SARTRE, 196-, p. 03).
A morte do
Árabe é a morte do outro sem interlocução que
fere a subjetividade de Meursault. Matar aquele Árabe era , igualmente ,
matar qualquer
um que
se interpusesse em seu
caminho . Não
se trata de uma xenofobia
às avessas nem
de uma atitude imperialista que
aniquila o outro cultural. Camus nunca pretendeu defender
uma forma de ideologização cultural dominante sob forma sub-reptícia em suas obras . O que
está em jogo
é a condição humana
vista em
sua pureza
e em sua
integridade que
devem ser preservadas, isto
é, a Natureza Humana .
O mundo , para
Camus, é destituído de sentido e, a única forma de restituí-lo,
é ir ao encontro
do absurdo da existência .
Mas , assim
como M., o homem
de hoje precisa
formar uma consciência ,
mesmo em
meio ao absurdo .
Somente ela
poderá mostrar que
a absurdidade do cotidiano , enquanto
repetição deve ser abolida. Exceção
se faz, apenas , quando
a repetição adquirir
um sentido
sisifiano, isto é, encontrar
sentido na própria
repetição . Desse modo ,
estar-se-ia superando as determinações
fatídicas da existência e o homem seria elevado
a mais nobre
categoria ontológica :
a de Ser , além
de um Ente
que pode ser .
A abolição
do absurdo do dia
a dia quer
dizer , em
Camus, que o homem
quando estiver alienado
em seus
próprios hábitos ,
tal como
Meursault antes da condenação
à morte ou os
habitantes de Oran antes
de sobrevir à peste ,
deve tomar algum
tipo de consciência .
Somente ela
pode levar à comparação de realidades
distintas que se superpõem, tornam-se
equivalentes, mas devem ser
diferenciadas. Resta, desse modo , um desafio a ser
transposto. O absurdo que começa a se
instalar no mundo
tem como ambiente
propício de sua
propagação a indolência
dos hábitos que
se repetem no cotidiano . A repetição
toma uma forma
sisifiana em que
a punição dos deuses
sobrepõe-se a toda e qualquer possibilidade de revolta
e de indignação , consoante
Camus em O Mito de Sísifo:
L’absurde est sa tension la plus extrême, celle qu’il
maintient constamment d’un effort Solitaire, car il sait
|
O
|
O sentimento de culpa ,
esperado por todos ,
não se faz presente
em Meursault após
ter matado
o Árabe . Ao ser levado à prisão e a julgamento , o personagem
de Camus intriga a todos
ao pronunciar seu
verdadeiro sentimento
diante da morte .
Seja da sua mãe ,
seja do árabe , em
referência ao O Estrangeiro .
Le juge s’est alors levé, comme s’il
|
O juiz levantou-se,
|
O estado de tédio de M., além de contrariar as expectativas do juiz
e do promotor , mostra
o quanto ele
reassumiu sua vida
medíocre como
se estivesse ainda no seu quarto ou a passear pela praia . O novo contexto para M. não lhe indica ainda
nada . Tudo
lhe é indiferente ,
enfadonho , tedioso ,
ausente . Quisera poder
se livrar daquela situação
imediatamente . Sua
noção de tempo
está acima de toda
e qualquer duração
que venha a lhe
permitir pensar sobre o ocorrido. Aquele
contexto não
passava para ele
de pura encenação
teatral . Não
havia vítima a ser
redimida nem algoz
a ser julgado. Ali
ele era
realmente o verdadeiro
Estrangeiro que ,
talvez , Camus, tenha conseguido traçar ao longo de todo o romance .
Estrangeirice[23]
essa que é momentânea ,
apesar de se esperar
que ela
se perpetue até o fim
da narrativa .
A estrangeiridade como chancela de
Meursault configura um caráter despatriado que se confronta todo o tempo com a
equivalência dos entes. Ele não se identifica nem tem afinidade por ninguém.
Sua individualidade é integral e se funda numa fissura hereditária como se pode
ver, por analogia, na interpretação de Deleuze sobre A Besta Humana de
Émile Zola. A despeito da fissura de seu caráter seus atos não se repetem como
sintomas psicológicos. O que há como descreve Deleuze é um encontro do instinto
e do objeto, como se verifica adiante:
O encontro do instinto
e do objeto forma
uma idéia fixa ,
não um
sentimento . Se Zola romancista
intervém nos seus
romances , é primeiro
para dizer aos leitores : atenção ,
não acreditem que
se trate de sentimentos . Célebre é a insistência
com a qual
Zola, tanto em
A Besta Humana ,
como em
Thérèse Raquin, explica que os criminosos não
têm remorsos . E os amantes
não têm igualmente
amor — salvo
quando o instinto
soube verdadeiramente “colar de novo ”
tornar-se evolutivo . Não se trata de
amor , não
se trata de remorso
etc., mas de torções ,
de estalidos ou ,
ao contrário , de acalmias, de
apaziguamentos, nas relações entre temperamentos
sempre estendidos por
cima da fissura .
(DELEUZE, 1998, p. 333).
A sociedade
em que
o drama está inserido não espera de Meursault a verdade nua e crua de um
homem sem
passado e sem
futuro . Ela
se prende a ele para
garantir a sua
continuidade. Contudo , muito embora ele esteja sendo julgado por
um assassinato ,
sua vida
pregressa o condena, muito mais que o ato moral de matar a um semelhante .
Vê-se a singular caricatura
de uma sociedade moralista que
aguarda, a qualquer instante ,
julgar e condenar aqueles que , entre ela ,
cavam um fosso
abissal . Camus, por
meio de Meursault, em
O Estrangeiro ,
descreve assim esse
incômodo social
dos guardiães da honra :
J’ai essuyé la sueur qui couvrait mon visage et je n’ai
repris un peu conscience du lieu et de moi-même
|
Enxuguei o
|
A atitude
de M. contraria uma moral sedimentada e
conSolidada em
um tipo
de sociedade que
se protege da diferença . Por analogia ,
pode-se notar que
M. ao ser julgado possibilita que
os representantes mores daquela sociedade pudessem reafirmar sua decente moralidade .
A exemplo do risco
que ela
corria, acrescenta Camus, nos argumentos seguintes ,
à fala do promotor ,
a indignação e a surpreendente
falta de arrependimento
de Meursault:
“Sans doute, ajoutait-il, nous ne saurions le lui
reprocher. Ce qu’il ne saurait acquérir, nous ne pouvons nous plaindre qu’il
en manque.
|
Não
poderíamos, sem dúvida, acrescenta ele, censurar-lhe uma coisa destas. O que
ele não poderia adquirir, não podemos queixar-nos de que lhe falte. Mas, no
que se refere a este tribunal, a verdade negativa da tolerância deve
transformar-se na virtude menos fácil, mas mais elevada da justiça.
Sobretudo, quando um vazio de um coração, assim como o que descobrimos neste
homem, se torna um abismo onde a sociedade pode sucumbir (CAMUS, 197-, p.
103).
|
O perigo que
Meursault poderia causar
naquele tipo de sociedade
seria mais devastador
que a dominação
colonialista francesa; mais aniquilador que o nazismo
da guerra mundial que
adviria. “Em nossa
sociedade qualquer
homem que
não chora
no funeral da mãe
corre o risco de ser
condenado à morte ”, resume Camus, desse modo , O Estrangeiro , no seu
Prefácio da primeira
edição americana .
Ora , Camus, como
bem afirma em
seu resumo , mostra um herói que não joga o jogo , por isso é condenado. Meursault é um
eterno exilado em
uma sociedade sem
pátria ética .
Ele vive à margem ,
na periferia da moral
estabelecida, onde os códigos e as normas
não têm força .
Daí a insistência do promotor em desviar completamente
o objeto do julgamento
de Meursault para outro foco
que iria repercutir
visceralmente nos jurados .
“[...] um homem que matava moralmente
a mãe devia ser
afastado da sociedade dos homens ,
exatamente como
o que levantava a mão
criminosa contra
o autor de seus
dias ” [24] (CAMUS, 197-, p. 103).
Meursault, quando na prisão,
depara-se com sua própria verdade e se mostra como alguém indiferente a tudo e
a todos. Mas, pouco a pouco, sua lembrança materna vai dando vida a um tênue
sentimento de felicidade, mesmo atrás das grades. Sua existência começa a ter
sentido, paradoxalmente, nos dias que antecedem sua execução.
J’ai souvent pensé alors
|
Nessa
|
Maman disait souvent qu’on n’est jamais tout à fait
malheureux. Je l’approuvais dans ma prison, quand le ciel se colorait et
qu’un nouveau jour glissait dans ma cellule. Parce que aussi bien, j’aurais
pu entendre des pas et mon coeur aurait pu éclater (CAMUS, 1999, p. 113).
|
Mamãe
costumava dizer que nunca se é completamente infeliz. Mesmo na prisão,
concordava com ela, quando o céu se coloria e um novo dia se insinuava na
minha cela. Porque poderia ter ouvido passos, e meu coração poderia ter
explodido (CAMUS, 197-, p. 113).
|
Esse homem
sem preocupação com o futuro e a viver com migalhas do passado não se pretende
ser metafísico ou realista. Meursault é a hierofania da condição humana dos
nossos tempos que se mostra sem culpa e sem arrependimento. Seu desconforto
diante dos atos morais não passa de um estado de espírito em que ele permanece
entediado. Mas é aí que reside o perigo para um tipo de sociedade que se
alimenta da mentira. Meursault é a própria ameaça encarnada que poderá desencadear
a desestruturação dessa mesma sociedade fincada em moralismos. Sem qualquer ato
heróico, como igualmente afirma Camus no Prefácio[25]
de O Estrangeiro, Meursault concorda
em morrer pela verdade. No entanto, jamais pretendera se suicidar, como bem
sinalizara Sartre (SITUAÇÕES IV) em seu comentário sobre M.:
O homem absurdo não se
suicidará: quer viver ,
sem renunciar
a nenhuma das suas certezas ,
sem porvir ,
sem esperança ,
sem ilusão ,
e também sem
resignação. O homem absurdo
afirma-se na revolta . Fixa a morte com uma atenção
apaixonada e esta fascinação
liberta-o: conhece a “divina irresponsabilidade”
do condenado à morte . Tudo
é permitido , visto
que Deus
não existe e se vai morrer .
Todas as experiências são equivalentes, mas
convém adquirir a maior
quantidade possível
delas. “O presente e a sucessão
dos presentes diante
duma alma incessantemente
consciente é o ideal
do homem absurdo ”
(SARTRE, 196-, p. 04).
Desse modo , Camus protagoniza a Ética
do Absurdo na figura
de M. como um
anti-herói contemporâneo
que profetisa, sem
ser iniciado em mistérios , como ocorre com
os heróis , a verdadeira liberdade de se ser , como se pode encontrar em Núpcias .
Il n’est pas toujours facile d’être un homme, moins
encore d’être homme pur. Mais être pur, c’est retrouver cette patrie de l’âme
où devient sensible la parenté du monde, où les coups du sang rejoignent les
pulsations violentes du Soleil de deux heures (CAMUS, 1998, p. 48).
|
Nem sempre é fácil ser um homem e muito
menos ser um homem puro. Ser
puro, no entanto, significa reencontrar esta pátria da alma, onde se tornam
sensíveis os laços profundos que nos unem ao mundo, onde as pulsações do
sangue se confundem com as pulsações violentas do Sol
das duas horas (CAMUS, 1979, p. 38).
|
A cumplicidade de M. é com
a vida em
sua decorrência .
Ele a sente em
suas entranhas
que deixam Solver o líquido
do Sol, transformado em
essência vital .
Mas essa indiferença
tem um preço .
O quinhão a ser pago , por contrariar a ordem
estabelecida, como se vê na história
da humanidade , é sempre
com a própria
vida . Como
os demais anti-heróis ,
Meursault tem à mão a possibilidade de
se retratar e admitir seu arrependimento ,
muito mais
que a culpa .
Assim como
Sócrates, o primeiro anti-herói
da história da Filosofia ,
Meursault não pretende voltar
atrás e negar
suas convicções
profundas. Não é à toa
que Camus, ao inserir
o diálogo do capelão
com o prisioneiro ,
dessacraliza a justiça divina e faz de M. um
convertido ao paganismo . O Deus cristianizado, desse momento
em diante ,
não tem a menor
importância , como
se vê em
uma de suas falas ,
em O
Estrangeiro :
“Pourquoi, m’a-t-il dit, refusez-vous
|
Por que,
disse-me ele, tens recusado minhas visitas? Respondi que não acreditava em
Deus. Quis saber se tinha certeza disso e eu respondi que não valia a pena
fazer-me tal pergunta: parecia-me sem importância. [...] Na sua opinião, a
justiça dos homens não era nada, e a justiça de Deus, tudo. Observei que fora
a primeira que me condenara (CAMUS, 197-, p. 116-118).
|
Camus/Meursault
não espera a
efetivação da justiça divina oriunda
de um mundo
escatológico. A justiça , para
ele , provém do poder
humano que
se encarna nas instituições e se dá pela “proferição” [26]
da palavra de seus
representantes. Não há justiça humana sem que haja subjugação da verdade abSoluta. Esse
paradoxo ético
implantado por Camus na figura de Meursault, ao tempo
que reduz toda
noção de justiça
a uma esfera da existência ,
destituindo, portanto , todo e qualquer
sentido metafísico ,
coloca em suspensão
seu interlocutor
como alguém
que preserva em
integridade toda
a transcendência possível
que parte
da vivência . Assim ,
Meursault concebe em verdade
a pureza da transcendência
ao viver radicalmente
sua própria
existência no mundo .
Vivência essa que
implica levar a termo
todas as conseqüências de seus atos morais , bem como de sua crença numa verdade pura que , somente ela , pode
libertá-lo. Contrariando, assim , a
inquietante inquisição do capelão :
Je suis sûr qu´il vous est arivé de souhaiter une autre
vie. Je lui ai répondu
|
Tenho certeza de que já lhe ocorreu
desejar uma outra vida. Respondi-lhe que naturalmente, mas que isso era tão
importante quanto desejar ser rico, nadar muito depressa ou ter uma boca mais
bem feita. [...] mas ele me deteve e quis saber como eu imaginava essa outra
vida. Então gritei: — uma vida na qual me pudesse lembrar desta vida (CAMUS,
197-, p. 119-120).
|
O desejo de M. não
se realizará no além . Seu aborrecimento está completamente
configurado na impossibilidade de poder continuar vivendo essa vida .
Não há nenhum
lampejo de resignação. Logo , não há esperança : [...] “a esperança ,
ao contrário do que
se crê, equivale à resignação. E viver não é resignar-se” [27] (CAMUS, 1979, p. 40).
O problema
maior apresentado por Camus na atitude de M. perante o capelão, não é a simples
recusa em se aceitar Deus como uma realidade transcendental ao mundo e ao
homem, porém, a de mostrar um tipo de Deus metaforizado na ideologização do
mistério do sagrado. A Igreja, representada na pessoa do capelão, obviamente é
a detentora do poder de salvação, libertação e conscientização. O poder
eclesiástico medieval ainda se faz presente naquele tipo de moralismo cristão
que ao longo da história substituiu a noção de natureza humana pela de moral e
que, segundo Camus, os filósofos tomaram-na como situação. No texto sobre o Exílio
de Helena, em Núpcias, ele metaforiza
sobre esse cristianismo antidionisíaco e sobre esse movimento impiedoso da
razão:
C’est le christianisme qui a commencé de substituer à
la contemplation du monde la tragédie de l’âme.
|
Foi o
|
O problema da recusa de Deus
por M., verificado acima ,
é o mesmo encontrado na peça de teatro O
Equívoco , de Camus: “tenho ódio desse mundo
em que
somos reduzidos a Deus ”, esbraveja Martha. Camus, intencionalmente , toma
o partido de M. para
revelar concomitantemente
sua repulsa
a um tipo
de filosofia que
só encontra
explicações numa história
que se coloca no trono
de Deus e, em
Núpcias , Camus adverte:
“deixando de lado
a natureza , o mar ,
a colina , a meditação
dos entardeceres ”.
Se de um
lado, como se verificou recentemente, tem-se um personagem voltado para uma
recusa das determinações exteriores, de outro há uma progressiva caminhada em
direção ao cumprimento do destino. Numa de suas últimas divagações, Meursault,
na prisão, traça o contraponto de sua vida absurda vivida no passado com a
trama do destino em elegê-lo ele próprio:
Du fond de mon avenir, pendent toute cette vie absurde
que j’avais menée, un souffle obscur remontait vers moi à travers des années
qui n’étaient pas encore venus et ce souffle égalisait sur son passage tout
ce qu’on me proposait alors dans les années pas plus réelles que je vivais. Que
m’importaient la mort des autres, l’amour d’une mère, que m’importaient son
Dieu, les vies qu’on choisit, les destins qu’on élit, puisqu’un seul destin
devait m’élire moi-même et avec moi des milliards de privilégiés qui, comme
lui, se disaient mes frères (CAMUS, 1999, p. 120).
|
Do
|
Note-se que o paroxismo
implantado por Camus nessa obra , ao tempo que iSola o personagem das malhas
do destino , reconhece que
ele está submetido a ele . Onde
estaria a salvação do homem absurdo senão quando assume a atitude de revolta e distanciamento ?
Viver em um mundo em que a verdade não cabe é, como assinala a Filosofia ,
estar em constante busca
da verdade fora
do mundo . Este
tema é, a propósito ,
tratado por
Camus em seu
ensaio filosófico, O Mito de Sísifo, no qual descreve a configuração
e a postura do homem
diante deste mundo :
L‘absurde naît
de cette confrontation
|
O
|
No entanto , apesar
de Meursault se manter indiferente
a tudo que
o cerca , quando
se depara com a fronteira
da existência , ele
consegue perceber com
sutil diferença
a absurdidade da indiferença . Seu
rosto foi revelado aos outros que
detêm o poder de executar
sua morte . Se
houve momentos em
que ele
foi “estrangeiro para os outros ”, haverá momentos
em que
ele se tornará “estrangeiro para si mesmo ”. A
partir desse momento
é que se pode falar
de morte . Camus, se de um
modo tece a vida
de M. como as Fiandeiras, de outro mostra seu poder de salvá-lo da morte por execução . É preciso
destacar o momento
em que
o protagonista atinge o ápice
de sua existência :
quando ele
torna-se estrangeiro para
si mesmo .
Nesse auge do romance
o personagem central
não contém mais
nenhuma reserva de si
que possa ser
utilizada como arma
de defesa . A estadia
na prisão humaniza Meursault e toda
a sua descendência .
Ou seja, todos
aqueles que
enveredam pelo campo
do vazio , da alienação
no cotidiano , da indiferença ,
da estranheza e da ausência diante
do outro . A comiseração
de si sentida
por M. precederá a Solidariedade. Assassinar
o Árabe , em verdade , tinha como último propósito ,
o assassinato de Meursault. A morte em O Estrangeiro é fundamentalmente
metafórica. Daí o árabe sem
nome . Mas
Camus também comete um
ato de compaixão
com seu
personagem : em
seus últimos
suspiros de agonia
e de desespero diante
da morte , M. deixa
de ser um deus onipotente .
Vale rever a descrição dada por Camus em O
Homem Revoltado quando
da agonia de Cristo
no Gólgota:
La nuit du Golgotha n’a autant d’importance dans
l’histoire des hommes
|
A noite do Gólgota só tem tanta
importância na história dos homens porque nessas trevas a divindade,
abandonando ostensivamente os seus privilégios tradicionais, viveu até o fim,
incluindo o desespero, a angústia da morte. [...] Para que o deus seja um
homem, é preciso que ele se desespere (CAMUS, 1997, p. 50).
|
Meursault espera e deseja ser reconhecido, mesmo
que isso
seja demonstrado por lampejos de ódio
quando ocorrer
sua execução .
Isso provaria que
não estaria só .
A Solidão de seu
ser , vivida
na melancolia cotidiana ,
não suplantaria a falta
do outro . O outro ,
no final do romance ,
impõe-se como um
ser de presença que dá sentido
à vida , mesmo
que esta seja absurda
e contraditória , conSolidando assim
em O
Estrangeiro :
À ce moment, et à la limite de la nuit, des sirènes ont
hurlé. Elles annonçaient des départs pour un monde qui maintenant m’était à
jamais indifférent. Pour la première fois depuis bien longtemps, j’ai pensé à
maman. Il m’a semblé que je comprenais pourquoi à la fin d’une vie elle avait
pris un “fiancé”, pourquoi elle avait joué à recommencer. Là-bas, là-bas
aussi, autour de cet asile où des vies s’éteignaient, le soir était comme une
trêve mélancolique. Si près de la mort, maman, devait s’y sentir liberée et
prête à tout revivre. Personne n’avait le droit de pleurer sur elle. Et moi
aussi, je me suis senti prêt à tout revivre. Comme si cette grande colère
m’avait purgé du mal, vidé d’espoir, devant cette nuit chargée de signes et
d’étoiles, je m’ouvrais pour la première fois à la tendre indifférence du
monde. De l’éprouver si pareil à moi, si fraternel enfin, j’ai senti que
j’avais été heureux, et que je l’étais encore. Pour que tout soit consommé,
pour que je me sente moins seul, il me restait à souhaiter qu’il y ait beaucoup
de spectateurs le jour de mon exécution et qu’ils m’accueillent avec des cris
de haine (CAMUS, 1999, p. 121-122).
|
Neste
|
Camus
assevera ainda , no Prefácio
de O Estrangeiro ,
que a verdadeira expressão
provinda do coração humano
revela mais do que
se sente. Esse sentimento
sem nome
e sem destino
toma corpo
no homem que
pensa sua
própria existência
e a vive como se fosse a única . Nessa singularidade, o personagem
de O Estrangeiro revela, concomitantemente , a Solidão e a revolta de
Camus diante de uma sociedade
que nega a diferença . Viver , segundo Camus, pela
óptica desta obra ,
é estar em constante ambigüidade . É o que também
reconhece Joël Malrieu comentando O Estrangeiro : “O Estrangeiro ,
Meursault é
um personagem
extremamente contraditório ”
e O Estrangeiro “um romance
pleno de ambigüidades
para que se
possa reduzi-lo à ilustração de uma filosofia , não
importa qual seja” (MALRIEU, 1999, p. 170).
[...] não se deve considerar O
Estrangeiro como
uma obra inteiramente
gratuita . Camus distingue, já o dissemos, entre
o sentimento e a noção
do absurdo . Escreve a este respeito : “Como as grandes
obras , os sentimentos
profundos significam sempre mais do que o que dizem
cons cientemente ...
Os grandes sentimentos
passeiam com eles
o seu universo
esplêndido ou
miserável ” (O Mito
de Sísifo). [28] E
acrescenta um pouco
mais adiante :
´O sentimento do absurdo
não é o mesmo
que a noção
do absurdo . Fundamenta-a, e nada mais . Não se resume nela...` Poderia
dizer-se que O Mito
de Sísifo pretende dar-nos essa noção
e que O Estrangeiro
quer inspirar-nos o sentimento . A ordem
de publicação das duas obras parece confirmar esta hipótese .
O Estrangeiro , que apareceu primeiro , mergulha-nos
sem comentários
no ´clima ` do absurdo ;
o ensaio vem em
seguida para iluminar a paisagem . Ora , o absurdo
é o divórcio , o desajustamento .
O Estrangeiro será, pois , um romance do desajustamento ,
do divórcio , da inadaptação .
Daí a sua hábil
construção : por
um lado ,
o fluxo quotidiano e amorfo da realidade vivida ; por outro , a recomposição
edificante dessa realidade
pela razão
humana e o raciocínio .
Pretende-se que o leitor ,
tendo sido primeiro posto
em presença
da realidade pura ,
a torne a encontrar , sem
a reconhecer na sua
transposição racional . Daí nascerá o sentimento do absurdo ,
isto é, da impotência
em que
estamos de pensar com
os nossos conceitos ,
com as nossas palavras ,
os acontecimentos do mundo (SARTRE, 196-, p. 09).
A “paradoxalidade”
ética encontrada no romance
O Estrangeiro só pode ser compreendida sob uma reflexão
antidialética. Esta, enquanto modo de se pensar a realidade do mundo do
homem , não
engendra nada . Catam seus elementos
de reflexão a partir
de algo posto
pela razão
consciente de si
mesma em
que o real ,
tão-somente, só pode ser
pensado se tornado objeto .
O que provém do cotidiano ,
à maneira argelina vivida
por Camus, não
tem a menor importância
para a Filosofia
Moderna , pois
tudo já
está posto nele mesmo .
Ao contrário , do modo
perceptivo dialético, a compreensão filosófica se daria por
um tipo
de analética[30] entre o concreto
(mundo ) e o real .
Nesse “momento analético” [31]
o homem é visto
num novo tipo
de totalidade em
que liberdade
e essência aliam-se em
prol de sua
compreensão . A analogia ,
portanto , far-se-ia entre
o real e o concreto
da existência e, não
exclusivamente , pela
analogia entre
o real e o pensado. Com
efeito , aquilo
que é rechaçado pela
dialética antitética de superação traria à tona
os efeitos ligados às suas causas . O nexo necessário entre efeito e causa não dependeria exclusivamente da razão ,
mas da coisa ,
ela mesma .
Em vista
disso, o estilo camusiano envereda por caminhos que pretendem revelar , em meio ao seu presente paroxismo , a inevitabilidade da noção
de tempo descontínuo
como caráter
próprio do absurdo .
Concernentemente , recorre-se à interpretação dada
por Sartre em
referência ao estilo
da narrativa camusiana:
É a pluralidade dos instantes
incomunicáveis que
finalmente detectará a pluralidade dos seres .
O que o nosso
autor aproveita de Hemingway é, portanto , a descontinuidade
das suas frases
cortadas que
se ajusta à descontinuidade do tempo . Agora com preendemos melhor
o estilo da sua
narração : cada
frase é um
presente . Mas
não é um
presente indeciso
que mancha e
se alastra um pouco
no presente seguinte .
A frase é nítida ,
sem rebarbas ,
fechada em si
mesma ; está separada da frase seguinte por um vazio , como o instante de Descartes
está separado do instante seguinte . Entre
cada frase
e a seguinte , o mundo
aniquila-se e renasce: a palavra , desde o momento
em que
se eleva, é uma criação ex nihilo;
uma frase de O Estrangeiro
é uma ilha . E nós
caímos em cascata
de frase em
frase , de nada
em nada
(SARTRE, 196-, p. 12).
Délibérément, le monde a été amputé de ce qui fait sa
permanence : la nature, la mer, la colline, la méditation des soirs. Il n’y a
plus de conscience
|
Deliberadamente o
|
Todavia, ao
se ler seu testemunho sobre suas primeiras influências literárias, poder-se-ia concluir
que Camus está inserido no mesmo espírito das obras Les îles de Jean
Granier[34]
e Les nourritures terrestres de André Gide, conforme transcrição, em
seguida, da coletânea brasileira A
Inteligência e o Cadafalso:
Voilà pourquoi il est indécent de proclamer aujourd’hui
|
[...]
|
A história , concebida de uma meditação
toupeira , assinalada
por Camus, não
consegue explicar o universo
natural que
havia antes dela nem
a beleza que
está acima . Por
isso , as expressões
humanas, causticantes do dia-a-dia , só adquirem sentido
se se aprendeu a viver sob
o Sol, sem ,
contudo , se deixar
de lado à recusa intermitente
do julgamento dos atos
que causam dano
a outrem , como
se verá mais adiante
no capítulo sobre
“O Grito da Culpa ” baseado na obra A Queda .
[...] quando
se inicia a leitura do livro , não
parece que se está em
presença dum romance ,
mas antes
duma melopéia monótona, do canto fanhoso
dum árabe . Pode acreditar-se então
que o livro
seja parecido com uma dessas árias de que fala Courteline, que
“se vão e não
voltam mais ” e que
se interrompem repentinamente , sem que se saiba porquê . Mas , a pouco e pouco , a obra
organiza-se por si
só diante
dos olhos do leitor
e revela a sólida infra-estrutura
que a suporta. Nenhum
pormenor é inútil ,
todos são
retomados mais adiante
e lançados na contenda ; e, quando fechamos o livro ,
compreendemos que não
podia começar doutra maneira ,
nem podia ter
outro fim :
neste mundo que
se nos pretende apresentar
como absurdo
e donde se extirpou cuidadosamente a causalidade, o menor
incidente tem importância ;
não há um
único que
não contribua para
conduzir o protagonista
ao crime e à pena
de morte . O Estrangeiro
é uma obra clássica ,
uma obra de ordem ,
composta a propósito
do absurdo e contra
o absurdo (SARTRE, 196-, p. 12).
[1] Ao Prof. Jacques Salah, por
ter me
mostrado as filigranas do brilho do Sol em
O Estrangeiro
de Camus.
[2] Apesar
de não existir
em língua
portuguesa a palavra PROTAGONIZAÇÃO optou-se por este neologismo a fim
de se poder melhor
afirmar a tipificação que
Camus dá ao personagem central de sua obra O Estrangeiro .
[4] Em
concernência a isso , o filósofo cego e fotógrafo
franco-esloveno Evgen Bavcar em uma de suas explanações
sobre o contraste
da luz , destacadamente
em Porto Alegre quando do Fórum Social
Munidal de 2003, destaca que o Sol zenit é aquele que não faz sombras em cima de um objeto . A sombra ,
portanto , não
representaria aí o passado
nem o futuro ,
somente o presente .
Meursault seria este objeto enebriado de Sol que não vê nem sente seu passado nem seu futuro . Está inteiramente
tomado pela natureza ,
portanto , destituído de juízo de valor ,
daí a possibilidade de inocentá-lo. (N. do A.).
[5] Autour de moi
c’était toujours la même campagne lumineuse gorgée de Soleil. L’éclat du ciel était insoutenable
(CAMUS, 1999, p. 21).
[7] Sem sentido aqui, ainda permanece destituído de uma razão que justifique se viver desse ou daquele modo.
[8] Esta realidade
prometéica só tem sentido
se vista a partir
do momento em
que Prometeu, ao cair
da tarde quando
a águia de Zeus retornava ao Olimpo , reconstituía seu
fígado (o órgão
do humor para
os gregos ) à luz
de Réia (a lua ). (N. do A.).
[9] Le soir, dans ce pays, devait être comme une trêve mélancolique.
Aujourd’hui, le Soleil
débordant qui faisait tressaillir le paysage le rendait inhumain et déprimant
(CAMUS, 1999, p. 20).
[10] Trabalho árduo, fadigoso (pónos, em
grego, em oposição a ergo) — descrição dada por Hesíodo na interpretação
do mito de Prometeu em Os Trabalhos e Os Dias após a punição impingida por
Zeus. (N. do A.).
[11] SOL — Enquanto termo figurado, O Sol designa-se dos seguintes modos: desejo, cólera, suor, fogo, chuva de
fogo, espada, brilho, calor, inSolação, luz, luminosidade, verão, aquecer,
latejar, címbalo, espada de luz, ar inflamado, ardência, queimadura, lâmina
fulgurante. (N. do A.).
[12] Vale lembrar que Dioniso, ao ser entronizado
na Polis Grega e metaforizado na literatura euripidiana, assume uma forma
representativa de transgressão que é impecavelmente
mostrada na tragédia As Bacantes. (N. do A.).
[13] Métron — medida , do grego . Noção que exprime a real
conduta humana
que Aristóteles retoma em sua Ética à Nicômacos como
“meio termo ”
do agir humano .
(N. do A.).
[14] Conhece-te a ti mesmo — oráculo de Apolo incrito no pórtico
de Delfos na época de Sócrates, representa o ponto de partida da filosofia helênica
(grega ). (N. do A.).
[15] O estranho aqui é ameaçador, como se analisou
anteriormente no capítulo sobre A Indiferença em Face do Extremo.
[16] Il y avait déjà deux heures que la journée n’avançait plus, deux
heures qu’elle avait jeté l’ancre dans un océan de métal bouillant (CAMUS,
1999, p. 61-62).
[17] Au jour, em português “de dia ”, é uma expressão
corriqueira que
merece uma ressalva: o sentido aqui se dá quando
se pode entender o “de dia ”,
em oposição
´de noite ` encontrada na linguagem coloquial ,
possui um sentido
interessante de demonstrar algo
que só
é cabível durante
o dia , embaixo
do Sol, sem abrigo
da sombra . Querer-se-ia dizer
que um
ato moral
implicado em julgamento
não poderia
ser realizado às escuras. (N. do A.).
[18] J’ai compris que j’avais détruit l’équilibre du jour, le silence
exceptionnel d’une plage où j’avais été heureux (CAMUS, 1999, p. 61-62).
[19] Mênades — vingadoras de crimes de sangue; ou
as tresloucadas que se encontram na mitologia grega. (N. do A.).
[20] Alors, j’ai tiré encore quatre fois sur un corps inerte où les balles
s’enfonçaient sans qu’il y parût (CAMUS, 1999, p. 61-62).
[21] Et c’était comme quatre coups brefs que je frappais sur la porte du
malheur (CAMUS, 1999, p. 61-62).
[22] Optou-se pelo substantivo “Anuviamento” como
um neologismo ,
pelo fato do adjetivo ´anuviado` designar apenas uma decorrência
e não uma causa ,
como se verificou em
vocábulos anteriores .
(N. do A.).
[23] Estrangeirice no sentido de estrangeiridade,
do ponto de vista filosófico, em que o estrangeiro se põe à prova fora de sua
verdadeira pátria. (N. do A.).
[24] (...) un homme
qui tuait moralement sa mère se retranchait de la société des hommes au même
titre que celui qui portait une main meurtrière sur l’auteur de ses jours
(CAMUS, 1999, p. 102).
[25] Publicado em 1955 na edição americana de
L’étranger. (N. do A.).
[26] Proferição aqui entendida como sentido
judaico-cristão em que ao se pronunciar a palavra o verbo se faz carne, ou
seja, o ser se instaura pela via da palavra e não pela via da idéia, como na
concepção da filosofia grega. (N. do A.).
[27] [...] l’espoir, au contraire de ce qu’on croit, équivaut à la résignation.
Et vivre, c’est ne pas se résigner (CAMUS, 1998, p. 49).
[29] Despedaçamento — alusão ao Diásparagmos
(vide Mito de Orfeu, Dioniso) que se encontra nos ritos de passagem da Jornada
do Herói. (N. do A.).
[30] O termo
analético foi localizado, mui apropriadamente para esse contexto ,
no pensamento sobre
a exterioridade da Filosofia
da Libertação de Enrique Dussel
(1934-Mendoza, Argentina) que , assim como o
argelino Camus, foi rechaçado pela filosofia acadêmica
da razão totalizante que anula o mistério e
senta no trono de Deus
sem , contudo ,
criar nada , porque sua fonte não produz vida ; é estéril
na sua própria
origem porque
destituída de Sol. (N. do A.).
[31] Momento Analético — segundo Enrique Dussel, esse modo de se
compreender o homem em sua totalidade, prende-se ao conceito de “exterioridade”
que é o âmbito que se situa além do fundamento da totalidade. O âmbito da
exterioridade é real somente pela existência da liberdade humana. A mera
substantividade real do homem adquire agora toda a sua peculiaridade, sua
indeterminação própria, sua essência de carregar uma história, uma cultura; é
uma coisa que se autodetermina livremente, responsavelmente: é pessoa, rosto e
mistério. Analético quer indicar o fato real humano pelo qual todo homem, todo
grupo ou povo, se situa sempre “além” (anó-) do horizonte da totalidade. A
dialética negativa já não é suficiente. O momento analético é o ponto de apoio
de novos desdobramentos. O momento dialético nos abre ao âmbito metafísico (que
não é o ôntico das ciências fáticas nem o ontológico da dialética negativa),
referindo-se semanticamente ao outro. Sua categoria própria é a de exterioridade; por isso, o ponto de partida
de seu discurso metódico (método mais científico que dialético-positivo), é a
exterioridade do outro; seu princípio não é o de identidade, mas de separação,
distinção (DUSSEL, s.d., p. 163-164).
[32] Com profundidade — o destaque é do autor.
[33] Origem-originante — possui um sentido que
remete não apenas ao que está lá atrás, mas, sobretudo, está sempre se impondo
como causa determinante. (N. do A.).
[34] O romancista Jean Grenier foi professor de
filosofia no colégio em que Camus estudou, em Argel, tornando-se figura central
na formação intelectual e literária do escritor. (N. do A.).
[35] Devido a enorme influência da literatura
francesa sofrida por Camus, exceção se faz a obras como as de André Breton,
Lautréamont, Arthur Rimbaud, André Gide, Malraux, Faulkner. (N. do A.).
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